Ainda no começo da passeata de ontem no Rio, eu a observava de uma calçada da avenida Rio Branco quando um rapaz abriu o que parecia uma niqueleira e a esticou na minha direção. Como quem recolhe a mão, fintando mais um propagandista que distribui panfletos de produtos nas ruas, recusei. Ele insistiu: “É um oráculo, pode pegar”.
Mário Magalhães
Mário Magalhães
Dentro da aparente niqueleira, espremiam-se papeizinhos dobrados, como se fossem provérbios que acompanham biscoitos da sorte em restaurantes chineses. Reparei que o moço que me presenteava tinha embaixo de um braço um livro com poesias de Bertolt Brecht. Apanhei o papelzinho e o guardei num bolso da calça.
A multidão tomara a Rio Branco, na esquina com a avenida Presidente Vargas, pontualmente às 17h26. Só às 18h25 o cortejo entrou por completo na antiga Avenida Central. Mais de cem mil jovens proporcionaram a maior manifestação política da cidade desde as jornadas do Fora, Collor, de 1992. Evocaram também a Campanha das Diretas, em 1984, e a legendária Passeata dos 100 Mil, em outro mês de junho, nos idos de 1968. Só que ontem havia mais gente.
Sem comando
A diferença não foi só numérica, quase tudo aparentou ser diferente. A manifestação não tem comando. Logo, inexiste porta-voz. Como não erguem um palanque, ninguém discursa. Ninguém declara seu fim. Meros dois modestos carros de som foram vistos, com oradores ouvidos apenas por seus pares. O protesto é articulado por uma comissão, que o convoca pela internet. Uma enorme faixa em pano amarelo atravessou a avenida, em maiúsculas: “SOMOS A REDE SOCIAL”. Espalharam-se cartazes com o mote “Saímos do Facebook”.
As bandeiras comuns são a revogação do aumento das passagens de ônibus de R$ 2,75 para R$ 2,95 e o direito democrático de protestar. É pouco para identificar um eixo, e o cenário se desenha nebuloso. Cada manifestante parece ter uma agenda customizada, uma passeata para chamar de sua.
O norte-americano John Reed escrevinhou um relato clássico sobre a Revolução Russa de 1917, “Dez dias que abalaram o mundo”. Como na terra dos czares era preto no branco, o jornalista produziu uma narrativa brilhante, mas linear. Reed penaria para contar o que houve ontem. Eu já sabia que um filósofo que decretou o fim da história não passa de um fanfarrão. Mas não supunha que tudo pudesse ser tão complexo como o que se descortinou.
Só constatei duas unanimidades. A primeira, contra as tarifas. Como demonstrou o jornal “Extra”, desde 2007 os bilhetes de ônibus, trem e barcas no Rio subiram mais do que a inflação. Fui de metrô para o Centro, pagando R$ 3,50, aumento de 52,17% nos últimos seis anos, em contraste com IPCA de 41,73%. A mulher do governador Sergio Cabral foi sócia de um escritório de advocacia que representa _ou representava_ a empresa particular que opera o metrô, uma concessão do Estado.
“Sexo é amor, sacanagem é R$ 2,95”, li em um cartaz. Poucos segmentos dos negócios convivem com tanta promiscuidade público-privada quanto o dos transportes. Talvez sem ter noção do que seja uma greve geral, milhares de vozes a propuseram: “1, 2, 3, 4, 5 mil, abaixa a tarifa ou paramos o Brasil”. Ameaçaram não passar pela roleta: “Se a passagem não baixar, eu vou pular”. E se associaram aos trabalhadores: “Ô motorista, ô cobrador, me diz aí se o seu salário aumentou”.
Vilão
O único vilão comum foi Sergio Cabral. O aumento das passagens foi concedido pelo prefeito Eduardo Paes, mas era a Polícia Militar, estadual, que vinha reprimindo os manifestantes em atos anteriores. Junta, a Rio Branco só entoou uma palavra de ordem, em seis palavras: “Ei, Cabral, vai tomar no cu”. É um tradicional xingamento de estádios de futebol, do tipo de ofensa que a Fifa pretende abolir no Brasil. Os blocos puxados pelo PSOL e pelo PSTU, duas agremiações de esquerda, repetiram o mantra: “Cabral é ditador”.
Embora não faltassem cartazes contra o prefeito, não prosperaram os cânticos contra ele. Nem contra a presidente Dilma Rousseff, do PT, aliada de Paes e Cabral, ambos do PMDB. Como até então se desconhecia pronunciamento dela sobre a mobilização, multiplicaram-se folhas A-4 xerocadas com o apelo “Manifeste-se, Dilma”.
Um ator segurou uma cartolina: “Dilma, você foi perseguida e presa na ditadura. Ontem fomos perseguidos e alguns presos no Maracanã. Como você consegue dormir sabendo disso?”. Onde escrevera “Nova ditadura”, o artista riscou a segunda palavra e a substituiu por “Dilmadura”.
Depois do governador, o Judas mais malhado foi a Copa do Mundo de 2014 _e a das Confederações, em curso. Ao contrário do que prognosticaram certos analistas, a proximidade dos torneios não arrefeceu as críticas, e sim as vitaminou. A massa gritou, desprezando a preposição: “A Copa, a Copa, a Copa eu abro mão, eu quero mais dinheiro pra saúde e educação!”. Alunos do Colégio Pedro II também não se disciplinaram pelo protocolo da Fifa: “Ô, ô, ô, foda-se a Copa!”.
Faixas e cartazes reiteraram: “Legado não é cimento”; “Não vai ter Copa”; Copa pra quem?”; “Brasil 3 x 0 Japão – E daí? O Japão ganha em saúde, transporte, educação…”; “1 Maracanã = 40 anos de hospital universitário”; “Enquanto te exploram vc grita gol”; “Caguei pro hexa”. E por aí em diante, com palavrões ou não.
Os meios de comunicação também foram alvejados pelos pulmões, que sopraram sobretudo contra o comentarista Arnaldo Jabor, da TV Globo. “Jabor arregão”, atacou um cartaz. Desinformado, descobri na internet que o jornalista havia esculhambado os manifestantes. Noutro recado, colaram o rosto de José Luiz Datena dentro de uma televisão, ao lado da reprimenda: “Datena, quem faz baderna é a polícia”.
Rebeldes com causas
Na contramão de críticas que os maldizem como rebeldes sem causa, os manifestantes evidenciaram que têm causas sem fim. O movimento galvanizou frustrações e desejos, a partir da gota d’água do aumento das tarifas. Estandartes improvisados pediam de tudo, e talvez nem nos anos 1960 tenha se erguido um como este: “Não combata a repressão com homofobia. Dar o cu é bom!”.
Homo ou heterossexuais, quase todos são jovens. Como milho estourando na panela de pipoca, eles saltitavam berrando: “Quem não pula quer aumento, quem não pula quer aumento!”. Mais puxado que spinning na academia. Uma barreira biológica para os mais vividos, que foram poucos.
“Senhor, chega pra lá, por favor”, escutei de um garoto _jamais fora tratado como “senhor” num protesto, cobrindo-o como repórter ou protestando noutros tempos. “Tá escrevendo poesia?”, abordou-me um adolescente, ao me flagrar anotando no caderno. “Quem me dera ter inspiração”, respondi. “Pois eu já fiz a minha poesia hoje”, ele emendou, abrindo uma pequena faixa de pano com o toque: “Tá foda”.
Podia mesmo estar, mas não por causa de repressão. Para evitar um morto como o estudante Edson Luis, baleado em março de 1968, a PM se retirou da Rio Branco. Só havia uns poucos homens do 5º BPM na esquina com Presidente Vargas, e outros na Cinelândia _mais tarde sobreviria a encrenca. O cheiro dominante era o de vinagre, levado pela garotada para minimizar o efeito de bombas de gás lacrimogêneo.
“Legalize o vinagre”, ironizavam. Seria pedir muito banheiros químicos na Cinelândia, infestada pelo odor de urina… O Rio testemunhou o maior protesto de ontem no país, mas o que vitaminou os jovens daqui foi a revolta com a violência da polícia paulista na quinta-feira, disseram-me estudantes.
Eles recorreram a músicas de décadas que não viveram para traduzir em pequenos cartazes suas broncas e aspirações. Reescreveram Cazuza, “Nossos inimigos estão no poder”, sem nomear os antagonistas. Regressaram a Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Viajaram dois séculos, com o Hino da Independência, no refrão adotado como lema por uma organização guerrilheira dos anos 1960 e 70: “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Cederam à música sertaneja: “Seu guarda eu não sou delinquente”. E reverenciaram Renato Russo: “Que país é esse?”, “Somos os filhos da revolução”. Assim, nas ruas, consagram-se os clássicos musicais.
Contra partidos
Se um manifestante ostentava a mensagem “Viva la revolución”, uma outra fustigava petistas: “Contra os petralhas”. A manifestação não foi nem de esquerda nem de direita, mas o confronto a permeou, mesmo que boa parte da audiência possa não ter se dado conta.
Os brados contra a corrupção foram incansáveis: “O povo acordou, o povo decidiu, ou acaba a roubalheira ou paramos o Brasil!”. Por escrito: “Políticos safados, parem de roubar”. Sobrou para Renan Calheiros. Desfraldaram-se apelos contra a PEC 37.
Da rejeição ao aumento das passagens, derivaram sugestões de estatização do transporte. Desfilaram camisas do MST e de Che Guevara, adesivos da marcha da maconha, bandeiras rubro-negras das Brigadas Populares, faixas do movimento negro e o alarme: “Não seja capitalizado pela direita golpista”.
Para uns, o foco era a corrupção. Para outros, aspirações sociais. No fundo, tudo constitui política, na geleia geral brasileira nunca tão eloquente como ontem.
Uma das maiores novidades trazidas pela multidão foi a aversão a partidos políticos. “Não tenho partido!”, proclamavam coros. Na Cinelândia, um rapaz enrolado na bandeira nacional e com óculos de motoqueiro resmungava para os amigos: “Eu odeio esse pessoal de partido”. Ao passar por bandeiras do PSTU, centenas de jovens repreenderam: “Sem partido! Sem partido!”.
Na Rio Branco, ecoou a profissão de fé: “O povo unido não precisa de partido!”. O contra-ataque também foi vigoroso: “O povo unido jamais será vencido!”. Uma professora universitária interpretou: um ato em disputa. Nem a bola de cristal tem ideia de quem no ano que vem se beneficiará eleitoralmente pela rebeldia novidadeira, por mais carona que queiram pegar: o PPS gravou seu programa de TV em meio à aglomeração. Não faltarão pitacos e previsões de especialistas.
Entre as siglas partidárias, nada assombrou mais do que a ausência do PT, o campeão das manifestações populares cariocas desde o princípio da década de 1980. Não percebi uma só bandeira vermelha com a estrela _o partido ocupa a vice-prefeitura e várias secretarias municipais e estaduais. Nem do PSB. Do PDT, duas _Leonel Brizola recebeu uma homenagem acidental, de um homem que exibia uma folha denunciando: “Farsa, urna eletrônica, caô do caralho”. Se os aliados de Dilma sumiram, também fizeram forfait os oposicionistas do PSDB e do DEM.
Uma síntese dos constrangimentos foi a discrição da UNE, presente com algumas bandeirolas no fim do cortejo, no bloco da União da Juventude Socialista. A UNE é controlada por estudantes do PC do B, sigla à qual a UJS se vincula. Os jovens convidavam quem acenava das janelas dos prédios: “Vem, vem, vem pra rua contra o aumento!”.
Faltou informar que quem aprovou a nova tarifa foi o prefeito cujo governo o PC do B integra. Bem como participa da gestão do Estado, a cujo chefe, Sergio Cabral, subordina-se a PM que tem batido nos jovens. Tirando PSOL e PSTU, todos os partidos mais conhecidos estão desconfortáveis com a conjuntura inédita.
Contra tudo
O sentimento que animou a multidão foi o de mudança. Querem participar e mudar, mesmo que não saibam o que pôr no lugar. São contra tudo e todos. Disseminam-se os símbolos de que nada será como antes. Eram raros os panfletos impressos, e incalculáveis os digitadores de celulares. Artistas celebrizados em atos políticos de outrora não compareceram. Agora, emerge a nova geração, feito atrizes como Leandra Leal e Georgiana Góes. Muitos reeditaram os caras-pintadas de 1992, lambuzando o rosto com tinta verde e amarela. Mas se destacaram as máscaras do filme “V de Vingança”. E lenços tapando o rosto, como nas rebeliões da primavera árabe.
No outono carioca, a zona sul, da geografia mais bem alimentada da cidade, dominou. Como em 1968 e 92 _em 1984, operários marchavam rumo aos comícios das Diretas vestidos com seus macacões. Contudo, acorreram escolas inteiras da zona norte, públicas e privadas. Todos os alunos sob o papel picado que chovia dos edifícios.
Como não foram providenciadas fotos de todo o trajeto da passeata, jamais se saberá com exatidão quantas almas havia. Técnicos avaliaram em 100 mil. Recorri a um método conhecido. O mapa do iPhone estima em no mínimo 900 metros a distância entre a Igreja da Candelária, início da caminhada, e a esquina de Rio Branco com rua Araújo Porto Alegre, na chegada. A largura da Rio Branco é de 33 metros. Portanto, ao menos 29.700 metros quadrados.
A concentração de indivíduos por metro quadrado é menor quando as pessoas se movimentam. Às 18h26, porém, a marcha parou, porque todo o espaço havia sido preenchido, e os da frente estacionaram. Esse quadro implica quatro a sete manifestantes por metro quadrado. Veterano de protestos nos anos 1980, eu nunca vira massa tão compacta. Mas nas calçadas a concentração era menor. Com sobriedade, é possível calcular a densidade em quatro por metro quadrado, o que resultaria em 118.800 presentes.
Baixando para três por metro quadrado, o número cairia para 89.100. Ocorre que na Cinelândia, depois do ponto final da passeata, havia perto de 5.000 pessoas à espera (uma parte nas escadarias do Teatro Municipal, como registra a foto lá em cima). Nas ruas adjacentes, também se notavam agrupamentos abundantes. Ainda com essa média, o total passaria dos cem mil de 1968, quando existiam menos habitantes no Rio _no passado houve mais presentes, relativamente. Perguntei a um participante do ato de mais de quatro décadas atrás e ele confirmou que o de ontem foi mais numeroso. Talvez tenha reunido 120 mil pessoas.
Feridos
A cada correria, elas reagiam: “Sem violência! Sem violência! Sem violência!”. Foi assim na Cinelândia, às 18h47. Pouco depois das 19h, milhares se desgarraram, seguindo um carro de som rumo à Assembleia Legislativa. Às 19h57, manifestantes que bebiam no Amarelinho se levantaram para ver na TV do bar as imagens ao vivo da Globonews. “É na Alerj”, alguém esclareceu. “Pô, tava tão bom”, lamentou um passante. Uma garota alertou: “Aí, galera, a chapa tá quente na Alerj!”. Uma mulher de branco convocou: “Vamos pra Alerj, tão batendo nas pessoas!”.
No caminho, defronte ao prédio do Ministério da Educação projetado pela equipe de Lúcio Costa, os tímpanos tremeram: “Sem vandalismo! Sem vandalismo! Sem vandalismo!”.
Já era tarde. Diante da sede do Legislativo estadual, um número reduzido de vândalos atirava rojões, pedras e coquetéis molotov contra policiais militares, queimava pelo menos um automóvel e depredava outros. A PM respondia com bombas. Mais tarde, conforme testemunhas, também com balas de borracha e “de verdade”, ou seja, de chumbo. Houve feridos, levados para o hospital. Sem sucesso, a maioria dos jovens apelou aos baderneiros: “Não perde o foco! Não perde o foco!”.
A passeata pujante havia terminado na Rio Branco. Para a Alerj, dirigiram-se alguns manifestantes, que carregaram quem não queria parar. Mas foram poucos os que invadiram o Palácio Tiradentes, onde se instala a assembleia, e o picharam. Foi daquele terreno que Tiradentes partiu para a forca. Naquelas tribunas, discursaram políticos de direita, como Carlos Lacerda, de centro, como Juscelino Kubitschek, e de esquerda, como Luiz Carlos Prestes.
Uma reflexão que não justifica a arruaça: em um país com tamanha desigualdade, como o Brasil, a baderna nem de longe se assemelha à de jovens da periferia de Paris, que queimam até milhares de automóveis numa noite. Os vândalos destoaram na caminhada de paz.
Oráculo
Só no metrô, de volta para casa, lembrei-me do oráculo. No papel comprido e estreito, estava escrito em letras azuis de impressora, com o crédito para o livro “O gato Malhado e a andorinha Sinhá”, de Jorge Amado: “Não sou tão tolo a ponto de achar-me capaz de entender o coração de uma mulher, quanto mais o de uma andorinha”.
Pensei cá comigo: nem coração de mulher, nem de andorinha. Enigma cabeludo é essa passeata dos mais de 100 mil.
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