Os seres humanos não nascem livres, mas alcançam a liberdade quando se convertem naquilo que são verdadeiramente, observa Marilena Chaui. “O desejo realizado aumenta nossa força para existir e pensar” e se chama alegria, “sentimento que temos de que nossa capacidade para existir aumenta”
Márcia Junges
Márcia Junges
“A obra spinozana é fecunda porque Spinoza é o filósofo que nos libera do peso esmagador da tirania do imaginário da transcendência, imaginário do medo e do terror (medo de Deus, medo dos homens, medo do desejo, medo dos governantes, medo dos governados, medo do povo, medo da mudança), que nos faz compreender os afetos em lugar de maldizê-los, que nos convida à alegria do pensamento e a descobrir que a liberdade é a potência do corpo e da mente para a pluralidade simultânea, e que não somos apenas partes do ser absolutamente infinito, e sim tomamos parte nessa infinitude”. A constatação é da filósofa Marilena Chaui na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Ela explica que Spinoza é o filósofo da liberdade porque ergueu-se “contra os poderes estabelecidos e as tradições do pensamento teológico-metafísico, afrontou, em sua vida, os riscos e perigos decorrentes de sua coragem, que se expressa em sua obra ao percorrer os caminhos tanto da gênese necessária da servidão humana individual e política, quanto da gênese necessária da liberdade humana individual e política”. A servidão humana em suas mais variadas formas e erroneamente pensada como liberdade é um dos temas centrais na filosofia desse pensador, bem como a ligação entre mente e corpo. “A ligação entre a mente e o corpo não é algo que acontece a ambos, mas é o que ambos são quando são corpo e mente humanos. Porque são efeitos simultâneos da atividade de dois atributos substanciais de igual potência e de igual realidade, corpo e mente não estão numa relação hierárquica de comando, o corpo comandando a mente na paixão e no vício, a mente assumindo o comando sobre o corpo na ação e na virtude. Corpo e mente são isonômicos, isto é, estão sob as mesmas leis e sob os mesmos princípios, expressos diferenciadamente. Rompe-se, portanto, a longa tradição filosófica que definira a mente como superior ao corpo e devendo ter comando sobre ele”.
IHU On-Line - Por que Spinoza é um filósofo da liberdade?
IHU On-Line - Por que Spinoza é um filósofo da liberdade?
Marilena Chaui - No subtítulo do Tratado Teológico-Político, Spinoza esclarece que a obra foi escrita para demonstrar que a liberdade de filosofar não só é compatível com a preservação da paz, mas que “não pode ser abolida sem que, simultaneamente, sejam abolidas a paz do Estado e a própria liberdade”. Por sua vez, o subtítulo do Tratado Político explica que a obra visa demonstrar qual a ordem institucional que permite a preservação da paz e da liberdade mesmo em regimes políticos monárquicos e aristocráticos, tendo como pano de fundo aquele regime político fundado justamente na liberdade, isto é, a democracia. E a Parte V da Ética, que expõe o objetivo nuclear da obra magna de Spinoza, traz como subtítulo: “Da potência do intelecto, ou seja, da liberdade humana”.
O que preocupa Spinoza? A servidão humana, em todas as suas formas, ilusoriamente imaginada como liberdade. Por este motivo, voltou seu pensamento para as causas reais e os efeitos reais da servidão como ilusão de liberdade. Ao fazê-lo, buscou caminhos pelos quais a verdadeira liberdade pudesse tornar-se desejada e accessível a todos os seres humanos. Localizou em sua época os lugares onde se alojavam as causas da servidão: superstição religiosa, tirania teológica, despotismo político, ignorância filosófica e científica. Buscou as causas dessas servidões e as encontrou em nós mesmos enquanto seres passionais. Indagou, então, o que poderia ser feito para governar as paixões de maneira a desfazer a superstição religiosa, quebrar a tirania teológica, derrubar o despotismo político e alcançar o saber verdadeiro, oferecendo sua própria filosofia como expressão desse caminho liberador.
De fato, distanciando-se de toda a tradição da filosofia, que identifica a liberdade e o exercício da vontade como livre arbítrio para escolher uma entre alternativas contrárias, Spinoza afasta a imagem da vontade como causa livre e concebe a liberdade como ação que segue necessária e exclusivamente da natureza do agente, ou como lemos na última definição com que abre a Parte I da Ética: é livre o que existe somente pela necessidade de sua natureza - trata-se de Deus - e age somente pela necessidade de sua natureza - trata-se tanto de Deus como do homem. Assim como Deus é necessário para sua própria essência, o ser humano é necessário pela potência da causa imanente que o produz, qual seja, a potência de Deus. Exprimindo a potência divina que lhe é imanente, o ser humano é uma potência singular de existir e agir que pode ser determinada pelas operações de causas externas e ser subjugada por elas na paixão, mas que, ao contrário, pode também exercer-se ativamente quando está internamente determinada pela natureza do agente, que é, assim, a causa interna necessária, completa e total do que deseja, pensa, sente e faz, e é isto sua liberdade.
Spinoza é o filósofo da liberdade porque, erguendo-se contra os poderes estabelecidos e as tradições do pensamento teológico-metafísico, afrontou, em sua vida, os riscos e perigos decorrentes de sua coragem, que se expressa em sua obra ao percorrer os caminhos tanto da gênese necessária da servidão humana individual e política quanto da gênese necessária da liberdade humana individual e política.
De fato, distanciando-se de toda a tradição da filosofia, que identifica a liberdade e o exercício da vontade como livre arbítrio para escolher uma entre alternativas contrárias, Spinoza afasta a imagem da vontade como causa livre e concebe a liberdade como ação que segue necessária e exclusivamente da natureza do agente, ou como lemos na última definição com que abre a Parte I da Ética: é livre o que existe somente pela necessidade de sua natureza - trata-se de Deus - e age somente pela necessidade de sua natureza - trata-se tanto de Deus como do homem. Assim como Deus é necessário para sua própria essência, o ser humano é necessário pela potência da causa imanente que o produz, qual seja, a potência de Deus. Exprimindo a potência divina que lhe é imanente, o ser humano é uma potência singular de existir e agir que pode ser determinada pelas operações de causas externas e ser subjugada por elas na paixão, mas que, ao contrário, pode também exercer-se ativamente quando está internamente determinada pela natureza do agente, que é, assim, a causa interna necessária, completa e total do que deseja, pensa, sente e faz, e é isto sua liberdade.
Spinoza é o filósofo da liberdade porque, erguendo-se contra os poderes estabelecidos e as tradições do pensamento teológico-metafísico, afrontou, em sua vida, os riscos e perigos decorrentes de sua coragem, que se expressa em sua obra ao percorrer os caminhos tanto da gênese necessária da servidão humana individual e política quanto da gênese necessária da liberdade humana individual e política.
IHU On-Line - Como liberdade e necessidade se entrecruzam na obra desse pensador?
Marilena Chaui - Certamente, dentre os aspectos mais surpreendentes e perturbadores da ética spinozana estão a afirmação da necessidade livre ou da livre necessidade e a subversão dos conceitos de paixão e ação. A definição da liberdade como o que segue da necessidade da essência ou natureza de um ser é o núcleo da mudança dos conceitos de paixão e ação.
Para a tradição, paixão e ação eram termos reversíveis: a paixão era o lugar de recepção de uma ação, seu terminus ad quem; a ação, lugar de onde partia uma operação, seu terminus a quo, posições que podem inverter-se, de sorte que, por exemplo, na relação entre a alma e o corpo, aquilo que é uma paixão da alma será uma ação do corpo e o que é uma ação da alma, paixão do corpo. Com Spinoza, porém, paixão e ação deixam de ser termos reversíveis para se tornar intrinsecamente distintas, de tal maneira que a uma mente passiva não corresponde um corpo ativo, nem a um corpo passivo corresponde uma mente ativa, pois corpo e mente são passivos ou ativos juntos e simultaneamente, visto que a mente humana é ideia de seu corpo (percepção da vida corporal) e ideia da ideia do corpo ou ideia si (percepção da vida mental).
Cada ser singular, expressão determinada da potência absolutamente infinita da substância, é uma potência singular de existir e agir, um conatus ou esforço de auto-perseveração no ser. Como potência singular de existir e agir, nosso corpo e nossa mente, operando em simultâneo, são passivos quando determinados pela força de potências externas – são causa parcial ou inadequada do que se passa em nós; e são ativos quando determinados exclusivamente pelas leis necessárias de sua própria essência – são causa adequada ou total do que se passa em nós. Ser causa adequada é ser livre. Mas não só isso. Espinosa demonstra que aquele que tem um corpo apto à pluralidade de afecções simultâneas tem uma mente apta à pluralidade de ideias simultâneas, de maneira que a liberdade humana, deixando de identificar-se com o exercício do livre arbítrio como escolha voluntária entre possíveis, é potência para o múltiplo simultâneo quando este se explica apenas pelas leis necessárias de nossa natureza. A virtude não é senão a própria liberdade como força do corpo e da mente para afirmar-se como causa adequada ou causa eficiente interna total de suas ações, isto é, para ser plenamente uma potência de agir que encontra em si mesma a causa total de suas ações. Eis porque a Ética enfatiza a ideia de plura simul, isto é, de pluralidade simultânea, ao demonstrar a força do corpo (sua aptidão para a multiplicidade simultânea de afecções) e a da mente (sua aptidão para a multiplicidade simultânea de afetos e ideias).
Necessidade como interioridade
Capacidade para o múltiplo simultâneo ou potência para o plura simul, a liberdade não se encontra, portanto, na distância entre mim e mim mesma, distância que, usando a razão e a vontade, eu procuraria preencher com algo que não sou eu mesma, isto é, com o objeto de uma escolha ou com um fim. Ao contrário, a liberdade é a proximidade máxima de mim comigo mesma, a identidade do que sou e do que posso. É essa ideia da liberdade que permite a Spinoza fazer uma demonstração espantosa, a saber, que se nascessemos livres isso não significaria que estaríamos inteiramente imersos no bem e banhados pelo conhecimento dele, e sim que não teríamos sequer como formar qualquer conceito de bem e mal, pois não teríamos nenhuma experiência de uma distância entre nós e nós mesmos. Isso significa que não nascemos livres, e sim nos tornamos livres quando nos tornamos aquilo que realmente somos, isto é, uma potência de agir que se exerce segundo a necessidade interna e plena de sua natureza.
Como se observa, a necessidade não é pensada por Spinoza como operação cega, repetitiva, externa ao agente ou externa ao efeito. Pelo contrário, necessidade significa interioridade, o que brota internamente da natureza de alguma coisa, o que define a essência de um ser, o que exprime a potência de existir e de agir de um ser. Quando um ser age em conformidade com as disposições internas que definem sua natureza, sua essência e sua potência, isto é, quando o que ele pensa, sente, deseja e faz não é causado por forças externas que o coagem nesta ou naquela direção, mas é determinado internamente pela força de sua própria natureza, então ele é livre. A liberdade não se opõe à necessidade, e sim a exprime. A liberdade se opõe à passividade, ao poder de causas externas sobre algo ou alguém que se deixa determinar por elas em lugar de determinar-se a si mesmo pela necessidade interna de sua natureza.
Liberdade, capacidade para pluralidade simultânea de afecções e afetos corporais e de ideias e afetos mentais significa potência de autodeterminação ou autonomia decorrente da necessidade da natureza do agente. Somos livres graças à necessidade, e não contra ela.
IHU On-Line - Como pode ser compreendido o conceito de “Deus sive natura”, que lhe rendeu a reputação de panteísta?
Marilena Chaui - Na verdade, Spinoza não é um panteísta. O panteísmo afirma que tudo (pan) é deus (théos), mas não é isso o que diz Spinoza. O que ele demonstra é que tudo o que existe, existe em Deus e sem Deus nada pode ser nem ser concebido, e que Deus é causa eficiente imanente de todas as coisas. Ora, essas demonstrações têm como fundamento o primeiro axioma da Ética, que enuncia que “tudo o que é, ou é em si e concebido por si ou é em outro e concebido por meio de outro”, evidenciando, assim, a diferença ontológica entre duas maneiras de ser. Não nos esqueçamos também que na Parte I da Ética, Spinoza demonstra que no mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si deve-se dizer que Ele é causa de todas as coisas e, na Parte II, demonstra que a essência de Deus não pertence à essência das coisas singulares, e sim as constitui. Haveria panteísmo se, na Parte I, Spinoza houvesse dito que Deus é todas as coisas singulares, mas ele demonstra que Deus é causa eficiente imanente de todas elas; e se ele tivesse demonstrado, na Parte II, que a essência de Deus pertence à essência de todas coisas singulares, mas ele demonstra exatamente o contrário, ao demonstrar que a essência de Deus não pertence às essências das coisas singulares justamente porque ela as causa, isto é, as constitui.
Spinoza parte de um conceito muito preciso, o de substância, isto é, de um ser que existe em si e por si, que pode ser concebido em si e por si e sem o qual nada existe nem pode ser concebido. Toda substância é substância por ser causa de si (causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência de todos os seres do universo. Causa de si inteligível em si e por si mesma, a essência da substância é constituída por infinitos atributos infinitos em seu gênero, isto é, por infinitas ordens de realidade simultâneas, sendo por isso uma essência infinitamente complexa e internamente diferenciada: ela é o ser absolutamente infinito. Existente em si e por si, essência absolutamente complexa, a substância absoluta é potência absoluta de auto-produção e de produção de todas as coisas. A existência e a essência da substância são idênticas à sua potência ou força infinita para existir em si e por si, para ser internamente complexa e para fazer existir todas as coisas. Ora, se uma substância é o que existe em si pela força de sua própria potência que é idêntica à sua essência, e se esta é a complexidade infinita de infinitas ordens infinitas de realidade, torna-se evidente que só pode haver uma única substância, caso contrário teríamos que admitir um ser absolutamente infinito limitado por outro ser infinito, o que é absurdo. Há, portanto, uma única e mesma substância absolutamente infinita na qual ser e agir são o mesmo e que constitui o universo inteiro. Essa substância absolutamente infinita é Deus.
Modos da substância
Ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência, Deus faz existir todas as coisas singulares que O exprimem porque são efeitos imanentes de Sua potência infinita. Há, assim, como enuncia o primeiro axioma da Ética, duas maneiras de ser e existir: a da substância e seus atributos (a existência em si e por si) e a dos efeitos da substância ou de seus atributos (a existência em outro e por outro). A esta segunda maneira de existir, Spinoza dá o nome de modos da substância. A substância é em si e concebida por si; os modos são em outro e concebidos por meio de outro, isto é, são efeitos necessários produzidos pela potência dos atributos substanciais. A distinção de essência entre Deus e seus modos e entre a causa e o efeito impede, portanto, que a expressão Deus sive Natura seja interpretada como panteísta.
IHU On-Line - Qual é a fundamentação para a afirmação de que a filosofia de Spinoza é determinista e, portanto, incompatível com a liberdade?
Marilena Chaui - A filosofia de Spinoza é uma ontologia da necessidade que se opõe à tradição teológica da metafísica como ciência do possível e do contingente. O objeto dessa tradição são os universais como essências possíveis, concebidas pelo intelecto divino criador e que passam à existência por um ato contingente da vontade divina criadora. Em outras palavras, a ideia teológica da criação do mundo como ato da livre vontade divina que contingentemente escolhe os possíveis introduz o possível e o contingente na metafísica. A imagem da criação do mundo significa que, na origem, a realidade está marcada com o selo da contingência radical porque o mundo é criatura de um poder voluntário absoluto e transitivo, que, sendo voluntário, causa contingentemente (ou, como diz Duns Scotus , uma causa inteligente é voluntária e uma causa voluntária causa contingentemente) e, sendo transitivo, separa-se do efeito ao causá-lo.
O núcleo da metafísica do possível e do contingente é a distinção, em Deus, entre potentia e potestas, potência e poder, decisiva para marcar a presença da vontade divina como ação contingente que escolhe um possível dentre possíveis contrários. Uma potestas é uma facultas, e como tal pode ou não exercer-se; e a vontade, enquanto faculdade, é uma potestas. Por sua potentia absoluta, Deus é onipotente; por sua potestas absoluta, exerce voluntaria e contingentemente seu poder. Por conseguinte, tudo o que se encontra na potência de Deus não é necessariamente tudo o que o poder de Deus quer, ou seja, o possível é mais vasto do que o necessário, e este provém de uma escolha contingente pela qual a potestas Dei escolhe um possível contido em sua potentia e o faz passar à existência.
O momento imediatamente visível da ruptura spinozana com essa tradição teológico-metafísica encontra-se no acontecimento gigantesco instituído com a abertura da Ética, cuja primeira definição enuncia: “por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve existência, ou seja, cuja natureza não pode ser concebida senão existente”. Spinoza concebe a causa de si como existência necessária da essência (ou, para usarmos uma linguagem anacrônica, como auto-posição do ser) e deduz da causa de si a necessidade que constitui a ação livre do ser absoluto, pois, é livre o que existe somente pela necessidade de sua natureza e se determina por si só a agir. Deus é causa livre porque age pela necessidade de sua natureza, e não pela escolha contingente de sua vontade. Isso significa, em primeiro lugar, que a essentia, a potestas e a potentia de Deus são idênticas e, portanto, em segundo, que tudo o que é segue necessariamente da essência/potência divina.
Por seu turno, o grande operador lógico e ontológico da filosofia spinozana é também enunciado logo no início da Ética como seu primeiro axioma: “tudo o que é, ou é em si ou é em outro”. É em si e concebido por si o ser absolutamente infinito ou a substância constituída por infinitos atributos infinitos em seu gênero. É em outro e concebido por meio de outro o que segue necessariamente da essência do ser absolutamente infinito, ou seja, da natureza de seus atributos. O que é em si é necessário por sua essência, pois é causa de si; o que é em outro é necessário por sua causa, pois é efeito imanente da potência absoluta, expressão determinada da essência do ser absoluto. Donde a conclusão da Parte I da Ética: “na natureza das coisas nada há de contingente”. Eis porque Spinoza afirma que as coisas singulares são chamadas de contingentes quando, considerando apenas a essências delas, nada encontramos que ponha necessariamente sua existência ou que a exclua necessariamente; e são chamadas possíveis quando, considerando apenas as causas pelas quais devem ser produzidas, não sabemos se estão determinadas a produzi-las. Possível e contingente são privação de conhecimento verdadeiro seja de uma essência, seja de uma causa.
Ordem e conexão necessária
A ontologia do necessário, entretanto, não significa que Spinoza seja determinista. De fato, o determinismo opera com a noção de sequência causal linear de acontecimentos que se sucedem sempre da mesma maneira a partir de um conjunto pré-determinado de causas. Spinoza, porém, graças à ideia da substância como ser absolutamente infinito e absolutamente complexo, constituído por infinitos atributos infinitos que são infinitas ordens de realidade simultâneas, pensa a causalidade: 1) como causalidade eficiente imanente, isto é, como presença da causa no efeito que a exprime de maneira determinada; e 2) como redes infinitas de acontecimentos que se entrecruzam e se modificam uns aos outros e não, à maneira determinística, como sequência linear uniforme e repetitiva de causas e efeitos. Em suma, Spinoza fala em ordem e conexão necessária de causas, portanto, em pluralidade causal simultânea de conexões, concatenações e ramificações de acontecimentos.
IHU On-Line - Em que sentido Spinoza rompe com a tradição greco-latina da contingência do páthos e da impossibilidade de uma ciência das paixões e ações humanas?
Marilena Chaui - Desde Aristóteles , a tradição clássica e cristã sempre considerou o páthos um acidente do éthos, um predicado que não possui de si ou por si essência ou uma natureza, e que é contrariedade e contradição que acontecem a um sujeito. O páthos é o que faz um homem desigual a si mesmo. É a voz da contingência, o instável ou, como repetirão incansavelmente os moralistas, é a inconstância humana. Se a ética se ocupava com as disposições do éthos enquanto phýsein ou por natureza, oferecendo-lhe um quadro de hábitos ou de virtudes e vícios conformes à sua natureza, em contrapartida, o páthos ou as paixões enquanto paixões sempre foram postas no campo da retórica, porque, sendo acidentes ou contingentes, delas só poderia haver arte, jamais ciência, uma vez que, como dissera Aristóteles, só há ciência do necessário. Se é verdade, julgava a tradição, que por natureza somos impulso, tendência e inclinação, se é verdade que por natureza somos apetite e desejo, todavia a natureza pode ser contrariada pelo páthos e deste não pode haver um saber apodítico, pois é um acontecer contingente e não há ciência do acidente nem do contingente. Por que, entretanto, não colocá-lo na dialética? Por que dar-lhe o lugar central na retórica? Porque sua instabilidade e inconstância indicam que é maleável, que pode mudar de direção e de sentido, se for movido por uma força maior do que a sua. Ele é, por excelência, objeto de persuasão. A retórica é, para a ética, o complemento indispensável, uma arte persuasiva e curativa que auxilia a ação da vontade para a conduta conforme ao bem e à virtude.
Spinoza possui dois antecessores que desqualificaram o papel da retórica no interior da ética: ele conhece a declaração de Descartes, quando este escreve que seu intuito não é “explicar as paixões enquanto orador, nem mesmo como filósofo moral, mas somente enquanto físico”; e certamente não ignora a distinção que Hobbes estabelece entre os matemáticos, que ensinam, e os dogmáticos, que desejam persuadir, ou seja, entre os que procedem dos princípios e inferem de premissas as verdades das proposições e os que “escreveram sobre as faculdades, as paixões e os costumes dos homens ou sobre a filosofia moral” e que, além de não removerem dúvidas, as multiplicaram em controvérsias sem fim. No entanto, apesar desses predecessores, Spinoza afirma no prefácio à Parte III da Ética que, até agora, ninguém explicou as forças dos afetos nem a potência de nossa mente para moderá-los. É a referência à moderação que distingue Spinoza não só dos moralistas retóricos, mas também de Descartes e Hobbes, pois todos eles atribuíram à vontade livre guiada pela razão o poder para dominar e governar os afetos. Ora, a recusa spinozana da vontade livre afasta a tradição e os dois contemporâneos do filósofo. A moderação dos afetos é obra da razão e não o império absoluto da vontade sobre as paixões.
Potência de agir
A crermos nos moralistas, escreve Spinoza, os afetos humanos são pecados e vícios com os quais o homem, pretendendo ser um império num império (imperium in imperio), perturba a ordem da Natureza e se desnatura. Opondo-se a eles, Spinoza declara, no prefácio à Parte III da Ética, que pretende “demonstrar com uma razão certa aquilo que proclamam ser contrário à razão, vão, absurdo e horrendo”. Spinoza propõe um oxímoro: demonstrar racionalmente o que é proclamado irracional, vão, absurdo e horrendo. Desse modo, o que pareceria uma empreitada insensata - a razão tratando do que seria sua própria negação – é realmente racional e, em contrapartida, o que parecia uma atitude sensata – condenar os afetos como vícios e as inépcias dos homens – é verdadeiramente insano.
Por que é possível demonstrar geometricamente a natureza, a origem e as forças dos afetos e, assim, afirmar a possibilidade de uma ciência dos afetos? Responde Spinoza: nada acontece na Natureza por algum vício dela, mas tudo acontece por sua virtude, que não é senão sua potência de agir, ou seja, as leis e regras naturais necessárias, unas e sempre as mesmas em toda parte, que determinam o aparecimento de todas as coisas e suas mudanças. Ou seja, o argumento afirma a necessidade e universalidade das operações naturais e da ordem natural.
Pela Parte I da Ética, sabemos que a essência e potência de Deus são idênticas, que essa identidade se chama Natureza Naturante quando a contemplamos como substância absolutamente infinita, causa eficiente imanente às suas modificações infinitas e finitas, e se chama Natureza Naturada quando a contemplamos como ordem e conexão necessária de modificações infinitas e finitas imanentes às suas causas produtoras. A unicidade da substância absolutamente infinita e sua imanência aos seus efeitos torna absurda a suposição de que estes - ou a Natureza Naturada e, nela, a natureza humana – possam ser ou causar vício e que qualquer deles possa estar fora ou acima da Natureza ou desnaturar-se. Além disso, Spinoza recupera o sentido original de virtus como força, desprendendo-a da opinião e do costume para localizá-la nas operações e ações naturais, na causalidade eficiente ou leis e regras com que a Natureza universal e necessariamente produz todas as coisas e suas mudanças. Em outras palavras, se a potência de agir ou virtude da Natureza é una e sempre a mesma em todas as suas partes, não pode haver partes da Natureza contrárias a ela ou independentes dela: o homem, portanto, não pode ser um poder rival da Natureza e contrário a ela – um imperium in imperio -, nem seus afetos podem ser considerados vícios de sua vontade. Donde a conclusão spinozana: a necessidade, unidade, identidade e universalidade das operações naturais exigem que seja uma só e a mesma a maneira de conhecer a natureza das coisas, sejam estas quais forem. Em outras palavras, a natureza humana, os afetos, as paixões e as ações humanas são parte da Natureza e devem ser conhecidos, entendidos e explicados pelas mesmas leis e regras com que são entendidas e explicadas todas as coisas naturais.
Ciência dos afetos
Spinosa desembaraça os afetos da carga valorativa que pesava sobre eles e impedia seu conhecimento: todos os afetos, sejam quais forem, seja qual for o valor que a eles se atribua, seja qual for seu significado na vida dos indivíduos, são, considerados em si mesmos, naturais e necessários porque seguem da atividade necessária da causalidade natural.
A afirmação de que os afetos seguem da necessidade e força da Natureza e de que eles são coisas singulares são pontos decisivos para que possa ser instituída uma ciência dos afetos. De fato, a Parte I da Ética demonstra que tudo o que existe e opera na Natureza segue da necessidade e perfeição da essência e potência da substância absolutamente infinita e que por isso mesmo tudo o que existe exprime de maneira certa e determinada a essência e potência do ser absolutamente infinito. Dessa maneira, a causalidade eficiente imanente da substância una e única levará à demonstração de que os afetos seguem necessariamente dessa causalidade. Por outro lado, as duas primeiras partes da Ética demonstram que as coisas singulares são modos finitos de atributos divinos infinitos (são expressões finitas imanentes aos seus atributos infinitos) ou seres cuja existência é determinada (são efeitos determinados pela ordem e conexão necessária de causas determinadas).
Pela Parte I, sabemos que todas as coisas singulares, por serem modificações finitas de seus atributos infinitos, não são apenas efeitos determinados, mas também causas determinadas, pois tudo na Natureza está determinado a produzir efeitos necessários e na Natureza nada há de contingente. Pela Parte II, sabemos que uma coisa singular é uma individualidade quando seus constituintes operam simultânea e conjuntamente como uma causa única que produz um efeito único e que essa causalidade define a essência da coisa singular como conatus ou esforço de “perseveração” no ser. Assim, ao apresentar os afetos como coisas singulares, Spinoza os apresenta ontologicamente como efeitos necessários de causas naturais determinadas e eles próprios como causas de efeitos determinados e os insere na ordem e rede necessária de conexões causais da Natureza Naturada. Dessa maneira, os afetos negativamente valorados não são vícios, nem os positivamente valorados são virtudes; não são modelos universais de má ou boa conduta: são coisas singulares, isto é, efeitos singulares necessários de causas singulares necessárias e eles próprios causas determinadas de efeitos determinados. Os afetos não são naturais porque empiricamente constatamos sua existência, mas porque, ontologicamente, são coisas singulares, portanto possuem causas naturais determinadas e são causas naturais determinadas e, por conseguinte, podem ser perfeitamente conhecidos, pois conhecer é conhecer pela causa.
Afastado o pressuposto que dera à retórica seu lugar no interior da ética – a impossibilidade de determinar as causas do páthos porque que contingente e inconstante - pela afirmação de que os afetos são coisas singulares – portanto, efeitos necessários de causas determinadas e causas necessárias de efeitos determinados – é afastada também sua imagem como algo vão, absurdo e horrendo. A naturalidade dos afetos e, portanto, sua necessidade, os fazem inteligíveis quando considerados em si mesmos e deles é possível uma ciência more geométrico. A ética pode, finalmente, deixar de ser uma arte sobre o páthos para tornar-se uma ciência apodítica sobre o páthos e o éthos. Por isso Spinoza fora tão enfático ao escrever que, até ele, “ninguém, que eu saiba”, determinara a origem, a natureza e as forças dos afetos e o que podemos fazer para moderá-los.
IHU On-Line - Como desejo, paixão e ação se imbricam na ética spinozana?
Marilena Chaui - O ser humano, união de um corpo e de uma mente, é um modo singular finito, efeito imanente da atividade de dois dos atributos substanciais: como modo produzido pela potência imanente do atributo pensamento, ele é uma ideia ou mente; como modo produzido pela potência imanente do atributo extensão, ele é um corpo. Este é uma singularidade complexa constituída por uma diversidade e pluralidade de corpúsculos relacionados entre si pela concordância e equilíbrio de suas proporções de movimento e repouso. Sistema complexo de movimentos internos e externos, o corpo pressupõe e põe a intercorporeidade como originária, porque, enquanto indivíduo singular, ele é uma união de corpos e porque sua vida se realiza na coexistência com outros corpos externos. Um corpo, demonstra Spinoza, é tanto mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isto é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais. Por seu turno, a mente, está intrinsecamente ligada a seu objeto porque ela não é senão operação de pensá-lo. Ora, explica Spinoza, o primeiro objeto que constitui a atividade pensante da mente humana é o seu corpo e por isso ela não é senão ideia do corpo. É da natureza da mente estar ligada ao seu corpo porque ela é operação de pensá-lo e ele é o objeto pensado (imaginado, concebido, compreendido, desejado) por ela; além disso, porque ela é um poder para a reflexão, ela é também ideia da ideia do corpo, ou seja, é ideia de si mesma, ou ideia da ideia do corpo. A ligação entre a mente e o corpo não é algo que acontece a ambos, mas é o que ambos são quando são corpo e mente humanos. Porque são efeitos simultâneos da atividade de dois atributos substanciais de igual potência e de igual realidade, corpo e mente não estão numa relação hierárquica de comando, o corpo comandando a mente na paixão e no vício, a mente assumindo o comando sobre o corpo na ação e na virtude. Corpo e mente são isonômicos, isto é, estão sob as mesmas leis e sob os mesmos princípios, expressos diferenciadamente. Rompe-se, portanto, a longa tradição filosófica que definira a mente como superior ao corpo e devendo ter comando sobre ele. A mente, demonstra Spinoza, só tem conhecimento de si pelo conhecimento das afecções de seu corpo, isto é, da vida de seu corpo, e quanto mais rica e complexa for a experiência corporal (ou o sistema das afecções corporais), tanto mais rica e complexa será a experiência mental, ou seja, tanto mais a mente será capaz de perceber e compreender uma pluralidade de coisas e quanto mais rica a experiência mental, mais rica e complexa a reflexão, isto é, o conhecimento que a mente terá de si mesma.
Do que a mente é ideia? Da vida de seu corpo, isto é, das afecções corporais. Quando estas aumentam ou diminuem a potência de existir do corpo e a da mente, são afetos, ou como enuncia Spinoza: “por afeto entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do próprio corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as ideias destas afecções”. Uma vez que somos expressões finitas da causalidade imanente da substância absolutamente infinita, somos, como ela, causas eficientes – um conatus, potência de existir e agir. Por isso nosso ser é definido pela intensidade maior ou menor da força para existir - no caso do corpo, da força maior ou menor para afetar outros corpos e ser afetado por eles; no caso da mente, da força maior ou menor para pensar. A variação da intensidade da potência para existir depende da qualidade de nossos afetos e, portanto, da maneira como nos relacionamos com as forças externas, sempre muito mais numerosas e mais poderosas do que a nossa. O desejo realizado aumenta nossa força para existir e pensar. Chama-se alegria, definida por Spinoza como o sentimento que temos de que nossa capacidade para existir aumenta. O desejo frustrado diminui nossa força para existir e pensar. Chama-se tristeza, definida por Espinosa como o sentimento que temos de que nossa capacidade para existir diminui. Todos os demais afetos são derivados dos três originários: desejo, alegria e tristeza.
Causa adequada e causa inadequada
Há duas maneiras diversas de realizarmos a causalidade que somos. Somos uma causa inadequada quando algo acontece em nós sem que de¬penda inteiramente de nosso ser, mas da potência de causas externas que nos co¬mandam de fora; somos causa parcial do que se passa em nós e por isso somos passivos. A paixão exprime nossa causalidade eficiente inadequada. Podemos, porém, ser causa adequada quando o que acontece em nós e fora de nós depende apenas de nosso ser e somente por ele é explicado; somos causa total ou completa do que se passa em nós e fora de nós e por isso somos ativos. A ação exprime nossa causalidade eficiente adequada. Ser causa inadequada é encontrar fora de si a causa de nosso desejo; ser causa adequada é encontrar na força interna do corpo e da mente a causa plena de nosso desejo. Eis porque o desejo é definido por Spinoza como causa eficiente que pode ser determinada do exterior, na paixão, e do interior, na ação. No en¬tanto, e isso é essencial, quer seja causa inadequada quer adequada, o desejo é sempre conatus, esforço de “perseveração” da existência. Isto significa, em primeiro lugar, que o desejo nos exprime tanto na passividade como na atividade e, como consequência, em segundo, que a passagem da paixão à ação não é passagem do desejo ao poderio imperial da vontade, nem é supressão do desejo pela razão, mas mudança qualitativa do próprio desejo, que passa de causa inadequada à adequada. Por isso Spinoza demonstra que os mesmos desejos que experimentamos quando passivos podemos experimentar quando ativos.
Que é, pois, o desejo? Responde Spinoza: “O desejo é a própria essência do homem enquanto conce¬bida como determinada a fazer algo por uma afecção dela mesma”. Alfa e ômega da essência humana, o desejo é o que nos faz agir e abarca a totalidade da vida afetiva, não se distinguindo do apetite, do impulso ou da volição. Nele e com ele é tecida a irredutível individualidade de nossas vidas. Somos desejo e nossos desejos são nós.
Força do corpo e fraqueza da mente, a imaginação pode levar-nos a confundir imagens e ideias, operação corporal e operação intelectual. Nessa confusão vive a paixão e nela se enreda o desejo. Que diferença há, na mente, entre imaginar e entender? Imaginar é construir ideias com imagens, mediadores trazidos pelo corpo em suas relações com os outros corpos. Entender é produzir somente pela própria força do intelecto ideias que se encadeiam e se articulam segundo necessidades lógicas e causais. A imagem nada nos ensina sobre a natu¬reza de nosso corpo, dos outros corpos, de nossa mente e das outras mentes, pois sua função não é ensinar e conhecer, mas representar relações que envolvem o estado atual de nosso corpo e o dos corpos exteriores. A imagem corporal, transformada na mente em ideia imaginativa, torna-se um véu interposto entre nós e nós mesmos.
Ora, como potência de pensar, a mente passa a exercer com as ideias imaginativas sua aptidão espontânea de articular, encadear, relacionar, diferenciar e juntar ideias as quais, por serem imaginativas, não oferecem à mente as razões do que está articulando, encadeando, relacionando, diferenciando ou unindo. Como consequência, em lugar de entender, a mente passa a fabricar cadeias imaginárias de causas, efeitos e finalidades abstratas com que supre a falta de conhecimento verdadeiro. Eis porque os desejos imaginários, nascidos das imagens e das ideias imaginativas, nos arrastam em direções opostas e nos deixam desamparados, amando e odiando as mesmas coisas, afirmando-as e negando-as ao mesmo tempo. Ocultando-nos de nós mesmos, o véu das ideias imaginativas induz à inversão entre o desejante e o desejado: cremos que, externo a nós, o desejado ou o indesejado é a causa do desejo ou da aversão que vivenciamos. Por esse motivo, a coisa externa (ou a potência das coisas externas) comanda o que se passa em nós e não só esta¬mos possuídos pela exterioridade, mas nela depositamos nosso ser e nossa vida, submetidos à perda iminente e continua das coisas desejadas, ameaçados pela frustração e pela insaciável carência. Por dependermos delas em vez delas dependerem de nós, nosso conatus deixa-se determinar por elas, enfraquecendo-se ao fortalecê-las.
Véu das imagens
Ora, uma paixão, demonstra Spinoza, nunca é vencida por uma razão, mas apenas por outra paixão mais forte e contrária; e uma paixão forte só é vencida por uma ação mais forte e contrária. A ação – porque depende inteiramente do agente como causa adequada ou total dos efeitos - é sempre mais forte ou potente do que uma paixão, mesmo que esta seja muito forte; por conseguinte, o afeto ativo é mais forte do que o afeto passivo. Uma vez que a razão enquanto razão não tem poder algum para frear ou coibir a paixão, mas, também, uma vez que pensar é a potência e virtude própria da mente, como desenvolver essa potência ou essa atividade se a paixão nos deixa mergulhados no campo imaginativo? Como passamos da condição de causa inadequada à de causa adequada ou auto-determinada? Responde Spinoza: um conhecimento verdadeiro somente vence uma paixão se ele próprio for experimentado como um afeto, pois o conhecimento verdadeiro do bom e do mau nada mais é do que o afeto de alegria ou de tristeza quando dele somos conscientes. Se o trabalho do pensamento for experimentado por nós afetivamente, será mais forte do que o afeto passional. Pensar é o agir da mente como causa adequada de seus afetos e ideias, e essa ação é o mais forte dos afetos ativos. Se desejar saber for sentido por nós como alegria e se ignorar for por nós experimentado como fraqueza e tristeza, a razão iniciará seu percurso no interior do desejo, e não contra ele.
Levantar o véu das imagens rumo às ideias é o ato com que a mente, por si mesma, se torna capaz de compreender que o desejo tem nos outros (humanos e coisas) apenas a ocasião, pois tem como causa nosso conatus e que, portanto, o desejo se origina em nós e parte de nós rumo aos outros e às coisas. Compreender o desejo e sua origem, eis a ação da mente. Pensar, portanto, não significa deixar de desejar, e sim saber por que desejamos e o que desejamos. Assim, em lugar de pre¬tender agir sobre o corpo para dominá-lo, a mente ativa esforça-se para co¬nhecê-lo e conhecer-se, referindo o desejo à sua causa interna, isto é, ao seu corpo e a si mesma. Tor¬nando-se capaz de reflexão, a mente torna-se capaz de interpretar seus afetos e de conviver com a potência imaginante de seu corpo. A razão não nos corta do mundo nem nos separa de nosso corpo; como ação intelectual, é simplesmente uma maneira melhor e mais feliz de estar no mundo, de sermos corpo e mente, pois, explica Spinoza, “o desejo de viver feliz, isto é, de ser, agir e viver, é a própria essência do homem ou o cona¬tus pelo qual cada um se esforça para conservar seu ser”.
IHU On-Line - Como analisa a atualidade do pensamento de Spinoza em nossos dias?
Marilena Chaui - Sabemos, por exemplo, que Einstein declarou que a teoria da relatividade geral, ao identificar espaço e tempo, matéria e energia, conduz a uma filosofia e que esta é a de Spinoza, pois, como dissera Eddington, explicando o sentido da relatividade geral, “o universo é Deus pensando”. Essas declarações têm levado muitos físicos contemporâneos a estudar a ideia spinozana de Natureza em busca dos pontos de contato entre ela e a física einsteniana. Da mesma maneira, muitos têm insistido no parentesco entre a obra de Spinoza e a de Freud : a teoria espinosana das relações entre a mente e o corpo, do desejo como essência do ser humano, da imaginação como relação de espelhamento entre o eu e o outro, a afirmação de Spinoza de que a razão não vence um afeto, mas somente um afeto mais forte e contrário vence outro e que a razão só vence um afeto se ela própria for afetiva, a concepção spinozana da passagem da passividade à atividade como trabalho interpretativo que a mente realiza sobre seus afetos para descobrir-se como causa deles, tudo isto, dizem vários estudiosos, leva-nos diretamente à psicanálise. Outros intérpretes, que acompanharam o processo de constituição do pensamento de Marx (que leu e anotou o Tratado Teológico-Político), consideram inegável que ele deve a Spinoza muito do que elaborou na teoria da alienação, na crítica à ideia burguesa de contrato social e, sobretudo, na compreensão do peso do poder teológico-político na Alemanha, que lhe permitiu fazer a critica da filosofia política de Hegel ; para tais intérpretes, o verdadeiro predecessor de Marx não é Hegel, mas Spinoza. A atualidade do pensamento de Spinoza tem sido objeto de vários estudos que tratam da presença da obra spinozana nas diferentes tendências do pensamento contemporâneo (fenomenologia, psicanálise, marxismo, literatura, ciências da natureza), como é o caso de duas coletâneas recentes: Spinoza au XXe. Siècle (Paris: Publications de la Sorbonne, 2007), organizada por Olivier Bloch e Quel avenir pour Spinoza?Enquête sur les spinozismes à venir (Paris: Kimé, 2001), organizada por Lorenzo Vinciguerra.
De nossa parte, além dos aspectos que mencionamos acima, outros dois, provenientes do pensamento político de Spinoza (e que aqui não temos condição de desenvolver), nos parecem de enorme relevância para refletirmos sobre a política contemporânea: a democracia como realização coletiva da vida livre, graças à afirmação da imanência do poder à sociedade, a partir da identificação entre direito e poder e da exposição da gênese da vida política como ação do sujeito político como multitudo; o segundo aspecto é a crítica da teologia política, abrindo para nossa reflexão um caminho para compreendermos e criticarmos os fundamentalismos religiosos ou o retorno da religião como fundamento da política e, portanto, da transcendência do poder, fonte de toda tirania. Estes dois aspectos nos permitem ler Spinoza como crítico avant la lettre de Carl Schmitt , apologeta da teologia política, pensador do nazismo e, paradoxalmente, hoje cultuado por muita gente de esquerda.
A alegria do pensamento
De maneira geral, fomos acostumados a estudar os filósofos do passado com duas atitudes opostas: ou como inteiramente determinados por sua época e, portanto, irremediavelmente superados e ultrapassados, ou como gênios que são eternos por sua genialidade, como se não houvesse qualquer diferença entre sua época e a nossa. Esses dois hábitos interpretativos rivais são gêmeos, pois ambos esquecem o que é propriamente um clássico e o que é uma obra de pensamento. Um clássico, escreveu certa vez Merleau-Ponty , é aquele que sempre terá alguma coisa a nos dizer porque, ao pensar, nos deu o que pensar; no modo como enfrentou as questões de seu tempo e a elas ofereceu respostas, ensina-nos a interrogar nosso próprio tempo. Uma obra de pensamento é grande quando é fecunda. E é fecunda quando nos faz pensar para além dela, mas graças a ela. Ela nos dá a pensar porque cria, por sua própria força, um campo de pensamento no qual aprendemos a ouvir uma interrogação que abre caminho para a nossa.
A obra spinozana é fecunda porque Spinoza é o filósofo que nos libera do peso esmagador da tirania do imaginário da transcendência, imaginário do medo e do terror (medo de Deus, medo dos homens, medo do desejo, medo dos governantes, medo dos governados, medo do povo, medo da mudança), que nos faz compreender os afetos em lugar de maldizê-los, que nos convida à alegria do pensamento e a descobrir que a liberdade é a potência do corpo e da mente para a pluralidade simultânea, e que não somos apenas partes do ser absolutamente infinito, e sim tomamos parte nessa infinitude.
Graduada, mestre, doutora e pós-doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, Marilena Chaui é professora nessa instituição. De sua vasta produção bibliográfica, destacamos: Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa (São Paulo: Companhia das Letras, 2011), Política em Espinosa (São Paulo: Cia. das Letras, 2003), Nervura do Real. Imanência e Liberdade em Espinosa (São Paulo: Companhia das Letras, 1999) e Espinosa: uma filosofia da liberdade (5ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 1995). É editora responsável pelos Cadernos Espinosanos, membro do Conselho Editorial da Revista Studia Spinozana e do Instituto Spinoza de Jerusalém.
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