Mobilidade social e espacial em Berlim
Com 3,4 milhões de habitantes e com uma população flutuante que pode chegar, nas épocas de pico, a 500 mil pessoas/dia, Berlim pode ser considerada uma metrópole de tamanho médio entre as grandes metrópoles do mundo. É uma cidade-capital bastante acolhedora para quem nela chega ou vive. Com um sistema de transporte público denso e muito entrelaçado percorrendo sua área 99% plana, Berlim permite uma mobilidade confortável e na maioria das vezes precisa. O artigo é de Flávio Aguiar.
Flávio Aguiar
Berlim - Pode-se descrever a Berlim de hoje como uma cidade-capital bastante acolhedora para quem nela chega ou vive. Com um sistema de transporte público denso e muito entrelaçado percorrendo sua área 99% plana, Berlim permite uma mobilidade confortável e na maioria das vezes precisa. É possível obter pela internet, por exemplo, informações detalhadas, com a precisão do minuto, sobre os melhores itinerários e meios de transporte de qualquer ponto para qualquer outro ponto da cidade.
Com 3,4 milhões de habitantes e com uma população flutuante que pode chegar, nas épocas de pico, a 500 mil pessoas/dia, Berlim pode ser considerada uma metrópole de tamanho médio entre as grandes metrópoles do mundo. Pode-se sintetizar isso em imagens. Berlim é uma cidade cujo porte ainda é compatível com o tamanho médio do corpo humano. Prova disso é que Berlim é uma cidade feita para pedestres, em grande parte, e ciclistas. O número destes aumentou geometricamente nos últimos anos, e na área central da cidade, depois da reunificação, o bairro de Mitte, os pedestres representam 35% dos deslocamentos. O carro individual ainda é o meio de transporte mais utilizado na cidade, mas o número de veículos dessa natureza está diminuindo, em proporção ao número de habitantes.
Berlim é um palimpsesto histórico, um território onde construções e áreas recobrem outras configurações mais antigas que desapareceram às vêzes sem deixar traço visível para o visitante menos experiente. É muito comum encontrar um prédio com janelas de traçado antigo, revelando pés direitos muito altos internamente, com uma fachada rutilantemente nova. Isso se deve aos bombardeios da Segunda Guerra. Prédios que não foram destruídos tiveram seu estuque externo comprometido pelos tremores provocados pelas bombas, e com o passar do tempo esse revestimento teve de ser substituído por outro mais novo.
Ou veja-se uma área nobre da cidade, a Alexanderplatz, em frente ao edifício da Prefeitura. Hoje ela é uma ampla área praticamente vazia de prédios, bastante arborizada. Pois ali, antes da Segunda Guerra, havia um dos bairros mais populosos, pobres e aguerridos de Berlim, sede de muitos movimentos operários de resistência tanto às organizações para-militares nazistas quanto ao próprio Exército muitas vezes enviado para reprimi-los. Como esta, há outras áreas semelhantes, como a chamada Rote Insel, no bairro de Schöneberg, onde nasceu Marlene Dietrich, também sede de movimentos operários e conhecida por suas votações à esquerda. Ali a repressão nazista foi metódica e implacável, destruindo as organizações de trabalhadores.
Mas agora Berlim está se tornando um palimpsesto de outra natureza. A antiga ex-capital, dividida durante a Guerra Fria, foi substituída por uma cidade reunificada que tornou-se a nova capital da nova Alemanha. Isso está introduzindo mudanças notáveis na sua paisagem urbana e social, com o afluxo de novos atores e deslocamentos impensáveis dez anos atrás.
A condição de capital trouxe para a cidade uma população por vezes flutuante, mas sempre densa, e “endinheirada”: executivos, gente de governo, diplomatas. O avanço das idéias neo-liberais nas últimas décadas tornou o ensino superior público basicamente pago na Alemanha. Berlim é uma exceção, onde o ensino superior continua gratuito. Isso atrai estudantes de todo o país, também trazidos pelo fato de que aluguéis, em Berlim, costumavam ser baratos.
A confluência desses dois “exércitos de ocupação” está modificando radicalmente o perfil tradicional de bairros antigos. Dois exemplos significativos são Kreuzberg e Friedrichs’Hain, antes separados pelo muro, hoje vizinhos a ponto de terem administrações em comum. Kreuzberg era o “bairro turco” por excelência da cidade. Ainda o é, em grande parte. Mas não é mais só isso. É também o bairro das festas “punk”, ocupado em parte por uma nova população estudantil e por condomínios fechados e caros destinados a classes mais altas e afluentes – algumas vezes formadas pelos descendentes dos antigos imigrantes que tiveram sucesso financeiro.
Friedrichs’Hain era um antigo bairro operário da Berlim Oriental. Hoje, muitas de suas indústrias tornaram-se esqueletos vazios, e o bairro foi literalmente tomado por uma população jovem, estudantil e boêmia, sendo um dos principais pontos do agito noturno da capital alemã. O mesmo está acontecendo com Neuköln, antigamente um bairro operário e de gente pobre que vem sendo pouco a pouco substituída por jovens afluentes de todas as categorias sociais.
Isso quer dizer que as populações pobres – e em Berlim esse contingente não é pequeno – foram sendo afastadas para mais longe do novo centro, em direção a bairros como Marzahn-Hellersdorf, do lado leste, ou Spandau, do lado oeste.Enquanto isso um bairro como Prenzlauerberg, que fora um bairro operário durante a DDR, passou a ser ocupado também por estudantes, artistas e boêmios, atraídos pelos baixos aluguéis. Porém mais recentemente um outro tipo de público, mais abastado, passou a se interessar pelas residências, não para alugá-las, mas para comprá-las, devido a seu baixo preço.
Em conseqüência desses movimentos, hoje Prenzlauerberg é dos bairros mais caros de Berlim central, e mesmo aquele primeiro “exército de ocupação”, de estudantes e artistas, está sendo banido pelos altos preços.
Os mais pobres também se deslocaram para a periferia, muitas vezes para habitações subsidiadas, verdadeiros “projetos Cingapura” da capital alemã, que hoje atendem a cerca de 400 mil habitantes, contingente que cresce de ano para ano, sobretudo graças à precarização das aposentadorias, tendência que se acentuou a partir da crise de 2007/8.
Esse é um outro dado significativo na paisagem social berlinense. Com a diminuição do valor das aposentadorias, mais e mais aposentados vêem-se na contingência de buscar complementos salariais, no mais das vezes através de subempregos, precários e mal pagos. Não é raro também ver-se idosos catando latinhas de cerveja ou refrigerante nos lixos da cidade, outra forma de compensar a baixa pensão ou assistência recebida do Estado.
Ainda assim, Berlim continua bastante acolhedora. Comparativamente a outras capitais da Europa, é muito barato viver aqui. Como descreveu uma vez a conservadora The Economist (Berlin: poor but sexy), um apartamento reformado de quatro peças aqui custa tanto ou menos quanto uma claustrofóbica quitinete em Londres ou Paris.
Com 3,4 milhões de habitantes e com uma população flutuante que pode chegar, nas épocas de pico, a 500 mil pessoas/dia, Berlim pode ser considerada uma metrópole de tamanho médio entre as grandes metrópoles do mundo. Pode-se sintetizar isso em imagens. Berlim é uma cidade cujo porte ainda é compatível com o tamanho médio do corpo humano. Prova disso é que Berlim é uma cidade feita para pedestres, em grande parte, e ciclistas. O número destes aumentou geometricamente nos últimos anos, e na área central da cidade, depois da reunificação, o bairro de Mitte, os pedestres representam 35% dos deslocamentos. O carro individual ainda é o meio de transporte mais utilizado na cidade, mas o número de veículos dessa natureza está diminuindo, em proporção ao número de habitantes.
Berlim é um palimpsesto histórico, um território onde construções e áreas recobrem outras configurações mais antigas que desapareceram às vêzes sem deixar traço visível para o visitante menos experiente. É muito comum encontrar um prédio com janelas de traçado antigo, revelando pés direitos muito altos internamente, com uma fachada rutilantemente nova. Isso se deve aos bombardeios da Segunda Guerra. Prédios que não foram destruídos tiveram seu estuque externo comprometido pelos tremores provocados pelas bombas, e com o passar do tempo esse revestimento teve de ser substituído por outro mais novo.
Ou veja-se uma área nobre da cidade, a Alexanderplatz, em frente ao edifício da Prefeitura. Hoje ela é uma ampla área praticamente vazia de prédios, bastante arborizada. Pois ali, antes da Segunda Guerra, havia um dos bairros mais populosos, pobres e aguerridos de Berlim, sede de muitos movimentos operários de resistência tanto às organizações para-militares nazistas quanto ao próprio Exército muitas vezes enviado para reprimi-los. Como esta, há outras áreas semelhantes, como a chamada Rote Insel, no bairro de Schöneberg, onde nasceu Marlene Dietrich, também sede de movimentos operários e conhecida por suas votações à esquerda. Ali a repressão nazista foi metódica e implacável, destruindo as organizações de trabalhadores.
Mas agora Berlim está se tornando um palimpsesto de outra natureza. A antiga ex-capital, dividida durante a Guerra Fria, foi substituída por uma cidade reunificada que tornou-se a nova capital da nova Alemanha. Isso está introduzindo mudanças notáveis na sua paisagem urbana e social, com o afluxo de novos atores e deslocamentos impensáveis dez anos atrás.
A condição de capital trouxe para a cidade uma população por vezes flutuante, mas sempre densa, e “endinheirada”: executivos, gente de governo, diplomatas. O avanço das idéias neo-liberais nas últimas décadas tornou o ensino superior público basicamente pago na Alemanha. Berlim é uma exceção, onde o ensino superior continua gratuito. Isso atrai estudantes de todo o país, também trazidos pelo fato de que aluguéis, em Berlim, costumavam ser baratos.
A confluência desses dois “exércitos de ocupação” está modificando radicalmente o perfil tradicional de bairros antigos. Dois exemplos significativos são Kreuzberg e Friedrichs’Hain, antes separados pelo muro, hoje vizinhos a ponto de terem administrações em comum. Kreuzberg era o “bairro turco” por excelência da cidade. Ainda o é, em grande parte. Mas não é mais só isso. É também o bairro das festas “punk”, ocupado em parte por uma nova população estudantil e por condomínios fechados e caros destinados a classes mais altas e afluentes – algumas vezes formadas pelos descendentes dos antigos imigrantes que tiveram sucesso financeiro.
Friedrichs’Hain era um antigo bairro operário da Berlim Oriental. Hoje, muitas de suas indústrias tornaram-se esqueletos vazios, e o bairro foi literalmente tomado por uma população jovem, estudantil e boêmia, sendo um dos principais pontos do agito noturno da capital alemã. O mesmo está acontecendo com Neuköln, antigamente um bairro operário e de gente pobre que vem sendo pouco a pouco substituída por jovens afluentes de todas as categorias sociais.
Isso quer dizer que as populações pobres – e em Berlim esse contingente não é pequeno – foram sendo afastadas para mais longe do novo centro, em direção a bairros como Marzahn-Hellersdorf, do lado leste, ou Spandau, do lado oeste.Enquanto isso um bairro como Prenzlauerberg, que fora um bairro operário durante a DDR, passou a ser ocupado também por estudantes, artistas e boêmios, atraídos pelos baixos aluguéis. Porém mais recentemente um outro tipo de público, mais abastado, passou a se interessar pelas residências, não para alugá-las, mas para comprá-las, devido a seu baixo preço.
Em conseqüência desses movimentos, hoje Prenzlauerberg é dos bairros mais caros de Berlim central, e mesmo aquele primeiro “exército de ocupação”, de estudantes e artistas, está sendo banido pelos altos preços.
Os mais pobres também se deslocaram para a periferia, muitas vezes para habitações subsidiadas, verdadeiros “projetos Cingapura” da capital alemã, que hoje atendem a cerca de 400 mil habitantes, contingente que cresce de ano para ano, sobretudo graças à precarização das aposentadorias, tendência que se acentuou a partir da crise de 2007/8.
Esse é um outro dado significativo na paisagem social berlinense. Com a diminuição do valor das aposentadorias, mais e mais aposentados vêem-se na contingência de buscar complementos salariais, no mais das vezes através de subempregos, precários e mal pagos. Não é raro também ver-se idosos catando latinhas de cerveja ou refrigerante nos lixos da cidade, outra forma de compensar a baixa pensão ou assistência recebida do Estado.
Ainda assim, Berlim continua bastante acolhedora. Comparativamente a outras capitais da Europa, é muito barato viver aqui. Como descreveu uma vez a conservadora The Economist (Berlin: poor but sexy), um apartamento reformado de quatro peças aqui custa tanto ou menos quanto uma claustrofóbica quitinete em Londres ou Paris.
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