terça-feira, 30 de outubro de 2012

Conheça a história do líder mongol Gêngis Khan


Ele ficou marcado por sua fúria em combate. Hoje uma nova faceta do líder mongol ganha força: a de hábil e visionário administrador do comércio internacional

Flávia Ribeiro
Nômade, pobre e analfabeto, Temujin nasceu e cresceu nas estepes da Mongólia na Idade Média. Tinha por volta de 13 anos quando planejou e executou o assassinato do meio-irmão, Begter, pouco mais velho que ele. Recrutou o irmão mais novo, Khasar, para juntos matarem Begter com duas flechadas certeiras: Khasar atirou pela frente e Temujin pelas costas. Ele já não aguentava ter que se submeter a Begter - que, desde a morte do pai (supostamente envenenado), assumira o comando do pequeno clã familiar. A gota d’água foi a disputa por uma cotovia caçada por Temujin, quando Begter se valeu de sua recém-conquistada posição de chefe da família para comer a caça do mais novo.


Temujin se tornaria Gêngis Khan, o homem que nunca aceitou se submeter à vontade de outros. "Ele nasceu num mundo muito duro. Viu cedo que precisava lutar para sobreviver. Não poderia ceder poder ao irmão. Não poderia ceder poder a ninguém", analisa o antropólogo Jack Weatherford, professor da Macalester College, de Minnesota (EUA), autor de Gengis Khan e a Formação do Mundo Moderno e The Secret History of the Mongol Queens: How the Daughters of Genghis Khan Rescued His Empire (Crown Publishers, 2010).

Lembrado como o conquistador bárbaro e cruel que dominou toda a Ásia, o Oriente Médio e a Europa Oriental no século 13 ao custo de milhares (ou milhões) de mortos, Gêngis Khan foi, mais do a imagem de sanguinário, o homem que lançou as bases da globalização ao ligar o mundo ocidental ao oriental de forma nunca vista antes. "Ele começou o primeiro grande sistema de comunicação e comércio internacional da história. Gêngis Khan estabeleceu as fundações do mundo moderno", afirma Weatherford.


No Império Mongol, que ele levou 20 anos para criar e outros tantos para consolidar, era possível ir da China ao Oriente Médio e à Europa por uma rede de estradas protegidas, ao comercializar produtos usando padrões de peso e câmbio definidos por um poder centralizado. No século 13, já circulava pelas terras tomadas por Gêngis Khan o papel-moeda, impresso em gráficas, 200 anos antes de Johannes Gutemberg criar a impressão com tipos móveis no Ocidente. Iletrados, os mongóis mantinham pessoas de cada povo conquistado em importantes postos da administração pública. Recrutavam especialistas de outras nações para seguir com eles: astrônomos muçulmanos, engenheiros chineses (que construíam canhões), mineiros germânicos... Gente de culturas e religiões distintas conviviam pacificamente.

"Gêngis Khan construiu um império multicultural e participativo. O modelo que ele levou ao mundo era igual ao chinês: um império governado por leis e por funcionários, onde a religião era uma opção pessoal, e a ciência, uma atividade de trabalho", explica o historiador André Bueno, professor da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (PR). Mas as leis promulgadas por ele eram soberanas. "A lei mongol era o guia da vida cotidiana e legislava sobre aspectos pragmáticos: roubo, sedição, violação etc. Quanto ao resto, como crenças e superstições, ficava por conta de cada comunidade, contanto que não se sobrepusesse à lei."

Vida dura

O caminho do conquistador - desde sua pequena tribo nômade até a posição de líder do maior império até então - foi difícil e atribulado. Quando matou o irmão, já tinha que cuidar do próprio sustento. Pelo crime, foi capturado pelo clã tayichiud, o maior da região, e tornou-se prisioneiro e servo. Não se sabe por quantos anos foi escravizado. Mas conseguiu fugir, casou-se em 1178 (aos 16 anos) com Borte Ujin - a noivinha que o pai escolhera para ele sete anos antes - e procurou a proteção de um antigo e poderoso amigo de seu pai, Torghil, conhecido como Ong Khan, o Grande Khan (chefe) da tribo kereyid. Pouco depois, Borte foi sequestrada por outra tribo, os merkids. Temujin, com o apoio do pequeno exército de um amigo de infância, Jamuka, atacou os inimigos e recuperou a mulher. A partir daí, alianças foram feitas e desfeitas com diversos outros líderes. Temujin rompeu com Jamuka por não aceitar ficar sob seu poder, arrebanhou partidários, formou um pequeno exército e iniciou, timidamente, sua escalada ao poder entre as tribos da estepe. "Os mongóis eram uma força incrível, mas dispersa e sem um líder. Gêngis era carismático, inteligente, obstinado e bom articulador. Sabia do potencial de seu povo e soube dirigi-lo. A riqueza ou a alfabetização não são fatores fundamentais para constituir uma liderança sólida. Esse líder de origem humilde atraiu milhares de seguidores por onde passou justamente por sua trajetória de vida", analisa Bueno.
Temujin e Jamuka guerrearam por anos. Em 1189, Temujin foi endossado kahn (soberano) dos mongóis em um conselho de líderes tribais. Jamuka não aceitou. Na batalha que se seguiu, em 1190, diz a lenda que ferveu em um caldeirão 70 membros do exército de Temujin, derrotado no episódio. A briga continuou até que, em 1205, Jamuka foi finalmente derrotado e morto. No ano seguinte, Temujin foi proclamado Gêngis Khan, o "khan oceânico", o equivalente mongol para universal. Chegara o momento de expandir a nação. Quem não se rendesse seria destruído sem compaixão.

"Eles praticavam uma guerra de conquista cujo objetivo era infundir terror. Quem se submetesse sem lutar não passava por isso. Ocasionalmente, alguns lutavam de modo tão obstinado contra os mongóis que, ao serem finalmente derrotados, ganhavam seu respeito e confiança. Mas, em geral, as conquistas eram feitas com algumas chacinas exemplares. A ideia era simples: feita uma vez, ela não precisaria se repetir se os outros entendessem o recado", conta o historiador.

Um exemplo disso aconteceu na cidade persa de Nishapur. Um genro de Gêngis Khan foi morto lá, e uma de suas filhas pediu que a cidade fosse varrida do mapa. A carnificina foi tão grande que gerou até a lenda de que 1 748 000 pessoas foram mortas em uma hora - um exagero que só contribuía para levar pânico aos povos da vizinhança. A ordem era matar apenas a aristocracia da cidade e receber a população como parte do império. "Ele chegou a adotar muitas crianças de outros povos para mostrar que recebia todos como sendo iguais", diz Jack Weatherford.

Diferentemente dos outros exércitos, o mongol não tinha infantaria, apenas cavalaria. Eram um exército de 150 mil homens montados, quando conseguiam reunir a força máxima. Em uma guerra como a que travaram contra os jurcheds, por exemplo, 65 mil cavaleiros mongóis derrotaram 150 mil inimigos, 65 mil deles montados e outros 85 mil de infantaria, graças a estratégias inovadoras. Até então, os soldados lutavam em fileiras, e os exércitos avançavam lentamente porque levavam muitas provisões. Os mongóis, ao contrário, espalhavam-se por todo o campo onde cavalos e vacas se alimentavam. Bebiam o leite das vacas e as abatiam em plena campanha de guerra para comer a carne. Avançavam numa velocidade muito maior que a dos inimigos e atacavam de todos os lados.

Cabeça aberta


O gosto pela velocidade e pelas novidades foi fundamental na mudança que Gêngis Khan estava por imprimir no mundo. Depois de unificar as tribos mongóis, conquistou a China. De lá, partiu para o Oriente Médio e chegou ao Leste Europeu. Quando seus domínios já se estendiam por toda essa região, somando quase 13 milhões de quilômetros quadrados, ou um Brasil e meio, promoveu uma reestruturação na Rota da Seda, uma rede de estradas interconectadas que ligava Oriente e Ocidente. Seus homens construíram enormes armazéns em todas as grandes cidades e oásis. Colocaram pequenos postos a cada 40 km ao longo da rota. Em cada um deles, o viajante tinha acesso a água e comida e podia deixar seu cavalo cansado e pegar um descansado, seguindo viagem. "Ele criou a ‘super-highway’ da China à Europa Oriental. A Rota da Seda já conectava esses dois mundos desde o século 6 a.C., mas o transporte de mercadorias antes levava dez, às vezes 15 anos. A partir daí, o tempo baixou para cerca de dois anos. A comunicação ganhou outra velocidade também. Há informações de que a notícia de uma morte foi levada da Mongólia a Budapeste em apenas três semanas, em 1241", diz Weatherford.

Um sistema bancário também foi instituído nos postos: o viajante podia depositar dinheiro em uma estação e pegar de volta em outra. Nessa época, o uso do papel-moeda, inventado pelos chineses, passou a ser empregado em larga escala no Império Mongol. Mais uma mostra da modernidade daquelo povo? André Bueno conta que, com a enxurrada de dinheiro em papel mongol nos mercados asiáticos, eles também criaram a inflação: "Houve um forte impacto dessa inovação nas economias locais, aumentando os preços e a demanda por produtos importados de outras regiões." A ideia de passaporte também se difundiu nesse momento. Dependendo do material com que as placas levadas no pescoço eram feitas, sabia-se se o viajante era um diplomata, um aristocrata, um soldado ou um comerciante - e de onde vinha.

A troca de informações e de tecnologia foi intensificada. Além de produtos, a Rota da Seda transportava ideias. A China aprendeu a fazer vidro com os iranianos, e o Irã aprendeu a fazer pólvora com os chineses. "Ele uniu civilizações importantes da época ao fazer todo mundo trocar tecnologia em todas as direções. Foi o primeiro grande globalizador", analisa Weatherford, lembrando que os mongóis foram mais transmissores do que criadores de informações - porém eram espertos o suficiente para unir duas tecnologias e criar uma terceira. Foram eles que juntaram a pólvora chinesa aos sinos de ferro do Irã para criar o canhão, por exemplo.

Quando estava para morrer, aos 65 anos, em 1227, Gêngis ainda vivia em gers (tendas circulares de madeira e tecido), nômade como sempre foi. Em carta atribuída a ele, declarou: "Uso as mesmas roupas e como a mesma comida que os vaqueiros e tratadores de cavalos. Fazemos os mesmos sacrifícios e compartilhamos riquezas". Pouco antes da morte, dividiu o poder entre os quatro filhos e escolheu um deles, Ogodei, como Grande Khan. Mas foi o neto Kublai Khan quem mais se destacou ao fundar uma dinastia na China e receber o mercador veneziano Marco Polo, estendendo essa primeira fase da globalização até um lugar distante e misterioso: a Europa Ocidental.

A Rota da Seda


Por seus 7 mil km, circularam mercadorias e pessoas numa escala sem precedentes. "Os mongóis receberam bens de todo o mundo: seda para as roupas, ferro e aço para armas, remédios, móveis laqueados para suas tendas, joias, vinho, escrituras religiosas e livros", enumera Jack Weatherford. A seda que chegava era tanta que os mongóis a usavam muitas vezes para fazer embrulho: jogavam fora as cordas de couro cru e usavam fios torcidos de seda no lugar. A China exportou para eles e para a Europa pólvora, joias, perfumes, a tecnologia de fabricação do papel e a de impressão - e os engenheiros capazes de colocar esses conhecimentos em prática. Da Europa, eram trazidos móveis, joias, linho, roupas finas, prata, cavalos e mão de obra. Do Oriente Médio, astrolábios, tapetes persas, a tecnologia do ferro fundido, remédios, artesãos, matemáticos, cientistas e astrônomos. Da Índia e da Indonésia, algodão, musselina, pedras preciosas, pérolas e especiarias - como canela, noz-moscada, pimenta e gengibre. O intercâmbio também disseminou a varíola, o sarampo e a sífilis. A peste negra, que matou um terço da população europeia no século 14, começou na China e passou pelo Oriente Médio até chegar à Europa. Culpa da globalização.

Filhos de Gêngis
"Este Grão-Khan é o homem mais poderoso tanto no que diz respeito a seus súditos quanto a seu território ou a seu tesouro", escreveu o mercador veneziano Marco Polo, famoso por, supostamente, ter sido um dos primeiros homens da Europa Ocidental a percorrer a Rota da Seda. Marco Polo se referia ao segundo filho de Tolui, o caçula de Gêngis Khan. Sob seu domínio, o mundo criado por seu avô cresceu ainda mais. Kublai assumiu a liderança do império em 1260 e o governou por 34 anos. Seu reino se estendia por toda a China, Coreia, Mongólia, Tibete e regiões onde hoje ficam Irã, Iraque, Afeganistão, leste da Turquia e oeste do Paquistão, Azerbaijão, Rússia, Cazaquistão, Ucrânia, Sibéria e partes de Bielorrússia, Uzbequistão e Romênia. Em 1271, fundou a dinastia Yuan, linhagem de imperadores mongóis na China, que durou até 1368. Em 2003, cientistas publicaram um estudo chamado The Genetic Legacy of the Mongols no American Journal of Human Genetics. Nele, contam que encontraram um comossomo Y muito específico em 8% dos homens de uma grande região da Ásia antes ocupada pelo Império Mongol. Esses homens seriam descendentes diretos de Gêngis Khan. Sua linhagem representaria nada menos que 0,5% da população mundial.
Ilustração Eduardo Nunes

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