Estudo de textos de Aristóteles e Platão revela origens de conceitos científicos contemporâneos
MARIA GUIMARÃES
MARIA GUIMARÃES
A linha mestra do grupo consiste em reconhecer a influência de Aristóteles e de Platão, seu professor por 20 anos, no pensamento contemporâneo. “Quando se estuda os gregos, encontram-se temas atuais”, diz o filósofo da USP Luiz Henrique Lopes dos Santos, um dos pesquisadores associados ao projeto. “Fazer história da filosofia já é fazer filosofia”, completa. “O tempo da ciência é cumulativo, o da filosofia é mítico, caracterizado pela retomada contínua, de diferentes perspectivas históricas, dos mesmos temas fundamentais.” O enfoque do estudo diverge dos olhares mais comuns sobre os escritos da Grécia Antiga, que ora envolvem historiografia pura, ora consideram que Aristóteles continuaria hoje na fronteira do pensamento, caso fosse possível ressuscitá-lo. “Seria ingênuo tanto limitá-lo ao passado como trazê-lo para nos corrigir”, afirma Zingano.
Levado ao pé da letra, o resgate puramente historiográfico das contribuições da Antiguidade pode parecer folclórico, até risível, diante do conhecimento atual. Exemplos interessantes estão na biologia, que representa um terço dos escritos de Aristóteles remanescentes hoje. Ele descreveu uma série de espécies, como peixes e corais, mas também ia além e buscava explicar padrões que via na natureza. Por que, por exemplo, certos animais têm casco fendido? A explicação do filósofo grego partia do princípio de que cada organismo tem uma determinada cota de matéria óssea a ser usada em sua construção. Por necessidade de se defender, veados, por exemplo, desviariam parte dessa matéria para os chifres e não teriam o suficiente para as patas, que ficariam incompletas. Uma explicação completamente desbancada pelo conhecimento atual, mas não necessariamente irrelevante de todo.
Pensando na permanência das ideias, Zingano cita a busca de Aristóteles por entender o que faz com que homens gerem homens e plantas, plantas – uma observação aparentemente óbvia, mas que em sua época guiava uma investigação que contrariava antecessores. Os organismos, o grego definia, são feitos de matéria e forma. O que confere estrutura a um ser vivo é a forma, transmitida de uma geração para outra e que governa a matéria. “A ideia de que a forma não provém da matéria, mas a governa, se tornou familiar a tal ponto que o conceito de DNA de certo modo ainda hoje a reflete”, explica o filósofo da USP, numa analogia do conceito antigo com o que hoje se sabe controlar a hereditariedade.
Aristóteles está portanto presente, mesmo que oculto, na forma como o pensamento governa os hábitos intelectuais da civilização atual. Se isso já é verdade para disciplinas mais específicas como biologia e física, é mais ainda para as bases mais amplas tanto da ciência como do pensamento em geral – a lógica, a ética e a metafísica.
Platão discordava, e resolveu o dilema dividindo a alma em três partes, representadas por um par de cavalos alados conduzidos por um cocheiro que representa uma delas, a razão. Um dos cavalos, arredio, só pode ser controlado a chicotadas e representa a parte dos apetites. O outro, mais dócil, é a porção irascível da alma. É o impulso, em geral obediente à razão, mas que pode levar a decisões impetuosas em determinadas situações. “O que determina as ações seriam fontes distintas de motivação”, observa Zingano. Platão pensou o conflito como interno à alma, dando lugar à acrasia. Já Aristóteles dedicou um livro de sua Ética ao fenômeno. O embate entre paixão e razão, tão familiar hoje, tem sua matriz nas reflexões dos dois gregos sobre as fontes de motivação para a ação.
Algumas das contribuições do pensamento antigo são essenciais ao desenvolvimento científico. “Aristóteles deixou um conjunto de textos sobre como argumentar, e como essas formas argumentativas podem ser usadas de maneira geral”, conta Roberto Bolzani, também do Departamento de Filosofia da USP. O foco de seu estudo são os diálogos socráticos de Platão, sobretudo no que diz respeito a refutação e persuasão. No grupo de pesquisa, ele compara as ideias do mestre aos modos de argumentação descritos por Aristóteles em seus tópicos. Entre eles estão a indução e a dedução, que se tornaram elementos centrais do método científico aplicado até hoje. “Antes de Aristóteles e Platão não havia um sentido de conhecimento”, explica, “que eles definiram como algo imutável, eternamente verdadeiro e que pode ser demonstrado”. A definição serviu como base para a concepção moderna, que leva em conta o uso de experimentos para testar hipóteses.
Para Bolzani, o encontro entre ética, lógica, metafísica e teoria do conhecimento é natural na busca por apreender o pensamento de Platão e Aristóteles. “A visão de mundo dos dois autores gregos faz com que as coisas estejam ligadas”, afirma. “A busca pelo conhecimento, para eles, é uma busca ética.” Hoje a ciência se tornou cada vez mais compartimentalizada, uma característica que também acaba por definir a filosofia moderna. “Ao contrário do que acontecia na Antiguidade, hoje é possível estudar física sem um sentido moral.”
A tradução é, de fato, uma parte central do grupo de estudos e acaba sendo indissociável das questões filosóficas. Daniel Lopes, professor de língua e literatura grega na USP, é pesquisador associado do projeto e concentrou sua carreira na tradução de textos gregos, embora tenha formação em filosofia. Nos seminários ele contribui para a discussão de aspectos de tradução e interpretação dos textos, mas sua pesquisa particular diz respeito a um problema filosófico específico: o hedonismo nos diálogos Górgias e Protágoras, de Platão. Ele publicou no ano passado a tradução do primeiro pela editora Perspectiva e está traduzindo o segundo. “No Górgias a personagem Sócrates condena o prazer e noProtágoras ele parece considerar prazeres e dores como o critério para ação”, explica. Lopes ainda não terminou a análise dos textos, mas por enquanto acredita que a contradição é apenas aparente, pois Sócrates não se compromete com a tese hedonista do Protágoras. “As opções do tradutor na interpretação do texto fazem toda a diferença”, conclui.À medida que cria um ambiente de investigação e torna a USP um centro reconhecido no estudo de filosofia antiga, Zingano cria uma cultura no departamento. Num primeiro momento, os alunos acharam estranho ver um professor encher o quadro de escrita grega durante as aulas. “Hoje já ficou natural”, afirma o filósofo, que considera essencial integrar a expressão da língua ao pensamento.
Para quem acha estranha a ideia de um grupo internacional constantemente debruçado sobre textos escritos há mais de 20 séculos numa língua morta, fica o recado: seu conteúdo está longe de ultrapassado, quando se olha a fundo.
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