sábado, 1 de dezembro de 2012

A política não é o pasto da fatalidade



O mal que desaba sem que se saiba de onde vem nem como evitá-lo e que se multiplica quanto maior é o esforço para domá-lo chama-se tragédia. Os gregos entendiam de fatalidade.

A política não é uma fatalidade - não deveria ser. A política deveria ser justamente o espaço da liberdade, sobretudo dos que nunca tiveram espaço, nem liberdade, para se emancipar enquanto indivíduos e como classe. 

A subordinação da política aos desígnios dos mercados sanciona uma rendição que nega o seu apanágio. Ao confundir cordura com submissão,pragmatismo com desistência, a política se transforma no pasto do cavalo xucro que deveria domar; submete-se ao mal que não tem cura em si: é a tragédia econômica. 

Há aqui uma boa dose de simplificação, mas estamos falando dos dias que correm e das horas que rugem. 

A Europa culta e rica ilustra o custo humano e material da inversão de papéis: o desemprego bate recordes; um exército de 19 milhões de pessoas carecia de trabalho, e de tudo o mais que acompanha essa inserção produtiva, na zona do euro em outubro; novas demissões estão previstas para sanear mercados doentes deles mesmos; a fome ronda a Espanha; na 4ª maior economia do euro, a Cáritas servirá um milhão de refeições este ano aos novos e velhos pobres espanhóis. A classe média recorre às instituições e caridade para comer.

Há nuances mais próximas com igual peso e envergadura.

A população conjunta da América Latina e Caribe soma 597 milhões de pessoas; a região produz alimentos suficientes para abastecer 746 milhões de bocas, segundo a FAO. E todavia 49 milhões de latino-americanos e caribenhos passam fome nesse momento.

O fracasso da política explica o paradoxo de um planeta em rota de colisão com a sua própria natureza. Imerso na lógica autorreferente de um sistema de produção à deriva, que se ergue pelos próprios cabelos, semeia desastres por onde passa e tem a força impessoal, autônoma e ciclópica das tragédias. 

Kioto fracassou. No período de vigência do protocolo assinado há 15 anos as emissões aceleraram uma curva ascendente: o volume de emissões de gases efeito estufa hoje está 31% acima dos níveis de 1990; sua presença na atmosfera saltou de 2 ppm (partes por milhão) então, para 3 ppm. 

A temperatura média atual no globo já está 14% acima do que deveria atingir em 2020 para não romper o limite de aquecimento de 2 graus neste século - linha vermelha além da qual a ciência enxerga um ambiente clássico de... tragédia. 

Eventos naturais extremos ganhariam frequência e gravidade desconhecidas, a partir daí, gerando energia própria inédita e autopropelida.

A partir de janeiro de 2013 a humanidade ingressa num desconcertante vazio de pactos ambientais. A política fracassou em construí-los.

Ninguém mais está comprometido com qualquer limite. A prorrogação de Kioto é uma solução emergencial, insuficiente e incerta. Depende do que for decidido na 18ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas (COP-18), que acontece agora no Qatar. E da qual pouco se espera. Tragédia.

Quem pode reverter a fatalidade? Ou melhor, o que pode a política hoje? 
Resgatar o seu poder implica antes de mais nada apoderar-se de seus instrumentos indispensáveis: a democracia e os partidos formam parte preciosa desse arsenal. 

Esse apoderamento tampouco é teórico. Trata-se de uma disputa. Ela está marmorizada na vida dos dias que correm. Na crise das horas que urgem. E nas arguições que os revezes desnudam.

É imperioso que os partidos da esquerda se assumam e se legitimem como ferramentas dessa emancipação histórica enredada na lógica da tragédia. 

Sua captura pela força autorreferente do sistema que deveriam submeter destrói a bússola e perverte suas práticas. 

Não é um problema de indivíduos corruptos ou apenas de oportunistas contumazes - embora eles existam, e como. 

É pior que isso. A dissipação das referências históricas desencadeia um processo impessoal e autoimune que tritura consciências e valores, assumindo vida própria para subverter a meta e o método original. É a tragédia. 

O antídoto à fatalidade convoca a força da consciência e a consciência de que só a força da mudança pode evitá-la. 

Repita-se: há aqui uma boa dose de simplificação, mas estamos falando dos dias que correm e das horas que rugem. Há vários perigos nessa travessia. O maior deles é ignorar a sua urgência.

O outro, não menos delicado por conta da sedução das aparências, consiste em endossar o ardil das 'soluções redentoras', tenham elas o apelo dos tribunais 'faxineiros' de toga ou quepe; ou a ingênua aspiração ao partido puro.

Ambas são incompatíveis com os processos concretos, protagonizados por sujeitos intrisecamente contraditórios, marcados pelos limites e vícios do sistema contra o qual se insurgem. 

A panacéia dos tribunais 'faxineiros' é conhecida; remete ao sonho conservador de engessamento da história num formol de hierarquia pétrea.

O sonho do partido puro carrega gravidade adicional: soterra no moralismo a tarefa mais difícil da história que é fazer das forças impulsionadas pelas suas contradições, o instrumento político efetivo da sua superação.
Postado por Saul Leblon às 16:52

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