Caso Trayvon Martin mobiliza os Estados Unidos
Cara Buckley
Cara Buckley
Comerciante vende camisetas com o rosto do adolescente Trayvon Martin durante protesto domingo no Estado americano da Flórida. Os manifestantes cobram a prisão do vigia pelo assassinato do rapaz negro, que estava desarmado e usando um capuz; o vigilante disse à polícia que atirou em defesa própria e que Trayvon parecia suspeito
A poucos dias de se tornar chefe de polícia de Sanford, uma pequena cidade localizada nos arredores de Orlando, na Flórida, Cecil E. Smith começou a perceber claramente a dimensão dos desafios que teria de enfrentar.
Houve reclamações nas fileiras do Departamento de Polícia local: pelo menos um supervisor disse que não queria trabalhar para um negro.
Nas ruas, alguns moradores negros expressaram inquietações de outra espécie. O chefe de polícia Smith podia até ser negro, mas ele é originário do norte dos Estados Unidos. Como ele seria capaz de compreendê-los?
"Esta cidade sempre foi uma cidade de escravos", disse um morador ao chefe Smith, em voz baixa. "Há pessoas que ainda pensam que os brancos são o demônio. Você não é daqui. Você não entende."
Através de seus óculos, o chefe Smith olhou fixamente para o homem, relembrou ele posteriormente. "Explique a situação para mim", disse ele, "para que eu possa explicar tudo para o meu pessoal".
Atualmente, o chefe comanda o departamento de polícia local, e a cidade que sua equipe atende está passando pelas árduas etapas de uma tentativa de integrar as lições tiradas do episódio que trouxe infâmia para Sanford há 16 meses. Os tiros que mataram Trayvon Martin, um adolescente negro desarmado, desferidos por George Zimmerman, um vigia comunitário voluntário, levou muitas pessoas a afirmar que havia ocorrido discriminação racial e abuso por parte do vigia voluntário.
O Departamento de Polícia de Sandford se tornou alvo de grande parte da raiva que eclodiu após o episódio. O fato de o departamento não ter prendido nem acusado formalmente Zimmerman, que alegou legítima defesa, foi tomado por alguns como prova não apenas de inépcia policial como também de preconceito.
Isso pareceu especialmente verdadeiro após um promotor especial, nomeado pelo governador da Flórida, ter acusado Zimmerman de assassinato culposo mais de seis semanas após o tiroteio. Se Zimmerman, que é de origem hispânica, fosse negro, muitos acreditam que ele não teria sido solto após as alegações de legítima defesa. Na semana passada, o julgamento de Zimmerman teve início aqui em Sanford, com o processo de seleção do júri.
Desde o assassinato de Martin, os funcionários municipais e líderes religiosos da cidade têm trabalhado para acalmar as tensões. O chefe de polícia que supervisionou o caso de Zimmerman, Bill Lee, foi demitido. Uma coalizão inter-religiosa de pastores e outros líderes foi formada. O município solicitou ao Departamento de Justiça para que analisasse as práticas do departamento de polícia local – pelo menos até o momento, esse pedido foi recusado –, e um grupo de líderes comunitários foi formado para avaliar o relacionamento entre a população e a polícia.
Mas o maior obstáculo se mantém de pé em Sanford: décadas de animosidade entre os moradores negros e o departamento de polícia.
"A comunidade negra não confia na polícia de Sanford", disse Turner Clayton Jr., presidente da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas Negras (National Association for the Advancement of Colored People ou NAACP, em inglês) do Condado de Seminole.
"Eles confiam mais no gabinete do xerife ou em qualquer outro departamento do que no departamento de polícia" (nos Estados Unidos, o escopo das responsabilidades dos xerifes varia entre estados e municípios. O xerife geralmente atua como autoridade nos condados e trabalha como braço dos tribunais de comarca. O xerife sempre exerce funções judiciais, como administrar a prisão municipal ou do condado, fornecer segurança nos tribunais e transportar prisioneiros, entre outras tarefas).
A responsabilidade por melhorar o relacionamento entre a população e o departamento de polícia recaiu quase que totalmente sobre as costas do chefe Smith, de 52 anos – um homem de estatura média, de fala mansa, que está ficando careca e é originário do West Side de Chicago.
Antes de superar 75 outros candidatos e se transformar em chefe do departamento de polícia de Sanford, posto que assumiu 1º de abril passado, Smith passou 26 anos garantindo o cumprimento da lei em Elgin, no estado do Illinois, onde investigava casos envolvendo tráfico de drogas e gangues.
Ele também atuou na área de relacionamento com a comunidade e chegou a ser vice-chefe do departamento de polícia. A própria família de Smith é um retrato da diversidade. Smith e sua esposa, que é branca e vive com ele há 15 anos, têm cinco filhos em comum, inclusive de relações anteriores – e uma das afilhadas de Smith é lésbica.
Após chegar a Sanford, o chefe Smith implantou estratégias que ele aprimorou em Elgin. Durante eventos da comunidade, ele distribui abraços. Toda quinta-feira à tarde, ele e uma dezena de oficiais passam de porta em porta, cada semana em um bairro diferente, e se apresentam com sorrisos e apertos de mão, anotam nomes e números de telefone e perguntam se há algum problema que a polícia poderia ajudar a resolver.
Esse tipo de contato tem deixado os moradores surpresos e encantados. "Eu moro aqui há 30 anos e não sabia que você fazia isso", disse uma mulher durante uma das saídas da equipe na semana passada.
O chefe de polícia também foi flagrado à paisana, tarde da noite, conversando com os moradores de Goldsboro, um tradicional bairro negro. "Eu o vi se misturar com os adolescentes", disse Cindy Philemon, que trabalha em Goldsboro. "Tudo o que eu consegui fazer foi sorrir. Meu coração se encheu de alegria. Antes, éramos meio que negligenciados".
Mas os líderes negros locais dizem que é cedo demais para saber se a liderança do chefe Smith é um sucesso, especialmente porque o departamento se mantém mais ou menos inalterado.
"Dois meses não vão eliminar seis décadas – não é possível fazer isso", disse Kenneth Bentley, ativista comunitário e educador. "No final das contas, os oficiais de polícia que ele lidera ainda têm a mesma mentalidade".
Apesar de a hostilidade em relação à polícia estar enraizada no passado segregacionista de Sanford, os líderes e moradores negros da cidade disseram que essa animosidade foi alimentada pelo que eles descrevem como maus-tratos e falhas do departamento de polícia em investigar minuciosamente os assassinatos de muitos jovens negros que foram mortos a tiros – uma afirmação que a polícia contesta.
"O caso Trayvon Martin acabou fazendo com que a situação atingisse seu ponto de ebulição", disse Velma Williams, a única delegada negra da cidade. "Esses sentimentos estão aí há muito tempo".
O chefe Smith disse estar lidando com todos os indícios de preconceito ou atitudes parciais dentro de seu departamento. Depois de tomar conhecimento sobre o supervisor que se queixou sobre sua nomeação, o chefe Smith convocou uma reunião. "Fui informado de que alguém não quer trabalhar para um chefe negro", ele relembra ter dito à equipe, que o ouvia em silencioso. "Se vocês não quiserem trabalhar para mim, a porta da saída está ali".
Recentemente, Smith nomeou Darren Scott, oficial que também é negro e atuava há muito tempo no cumprimento da lei em Sanford, como seu vice-chefe. O chefe Smith não é o primeiro líder negro do departamento de polícia de Sanford, mas esta é a primeira vez que as pessoas veem dois negros ocupando os dois cargos mais importantes do departamento de polícia local. Pouco mais da metade dos oficiais que trabalham com o chefe Smith são brancos, e ele pretende estimular ainda mais a diversidade entre seus recrutas.
Os líderes da cidade, incluindo a delegada Velma, insistem que eles confiam no novo chefe de polícia. O prefeito Jeff Triplett disse que "esse cara está altamente focado em restituir a confiança e fazer o que é certo para a comunidade". E Triplett acrescentou: "eu acredito que ele não vai parar até conseguir fazer isso".
A restauração da confiança, disse o prefeito "era o ponto principal que nós acreditávamos ser necessário restituir".
Mesmo assim, os críticos questionam se o poder dos esforços de comunicação do departamento conseguirá se manter após o término do julgamento de Zimmerman e das intensas ondas de atenção nacional provocadas pelo caso. Todos os esforços e promessas feitos antes, segundo eles, sempre deram em nada.
Segundo alguns moradores, pelo menos após o assassinato de Martin os líderes da cidade foram obrigados a olhar seriamente para as questões que para muitos tinham ficado sem solução durante muito tempo.
"A história não contada de Sanford nunca teria sido contada", disse Bentley, o ativista comunitário, "se uma pessoa (Zimmerman) tivesse permitido que outra pessoa (Martin) caminhasse livremente pelo bairro".
Tradutor: Cláudia Gonçalves
Nenhum comentário:
Postar um comentário