quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Quinze teses sobre o capitalismo e o sistema mundial de prostituição


A globalização neoliberal é hoje o fator dominante na decolagem da prostituição e do tráfico de mulheres e crianças para esse mesmo fim. Aumenta as desigualdades e explora os desequilíbrios entre os homens e as mulheres, aos quais fortalece singularmente. Está encarnada na mercantilização dos seres humanos e no triunfo da venalidade sexual. Essa indústria situa-se na confluência das relações comerciais capitalistas e da opressão das mulheres, dois fenômenos firmemente entrelaçados. Construído em torno de quinze teses, este texto procura esquematicamente colocar em evidência certos elementos de análise necessários à compreensão da globalização das indústrias do sexo.

Richard Poulin
1. A GLOBALIZAÇÃO E A INDUSTRIALIZAÇÃO DO COMÉRCIO DO SEXO SÃO DOIS FENÔMENOS ESTREITAMENTE IMBRICADOS
A prostituição adquiriu um caráter de massa e se espalhou pelo mundo inteiro. A pornografia está amplamente difundida nas sociedades. As cifras dessas indústrias são colossais: estima-se que, em 2002, a prostituição gerou lucros de 60 bilhões de euros e a pornografia, 52 bilhões (Dusch, 2002, 109 e 101); a cifra dos negócios das agências de turismo sexual operando pela Web é avaliada em 1 bilhão de euros por ano; os lucros do tráfico para fins de prostituição são avaliados entre 7,8 e 13,5 bilhões de euros por ano (Konrad, 2002). São dezenas de milhões os seres humanos, principalmente as mulheres e as crianças, submetidos à alienação do comércio de seu sexo. Em 2001, o número de pessoas prostituídas no mundo era estimado em 40 milhões (Healy, 2003). A clientela cresce a um ritmo sustentado. A cada ano, cerca de 500 mil mulheres vítimas do tráfico para fins de prostituição são colocadas no mercado da venalidade sexual nos países da Europa Ocidental1; 75% do total das mulheres vítimas desse tráfico têm 25 anos no máximo e uma proporção indeterminada mas muito significativa delas é constituída de menores. Em âmbito global, o número de mulheres e crianças traficadas anualmente atinge cerca de 4 milhões.

Durante a década de 1990, somente no Sudeste Asiático houve três vezes mais vítimas dessa espécie de tráfico que durante todo o período em que se verificou o comércio de escravos africanos. Segundo Pino Arlacchi (apud Demir, 2003), do Escritório das Nações Unidas para Controle de Drogas e Prevenção ao Crime, o tráfico negreiro produziu 11,5 milhões de pessoas submetidas à escravidão num período de 400 anos, enquanto aquele voltado à prostituição fez, em dez anos e somente na região do Sudeste Asiático, 33 milhões de vítimas. Nas três últimas décadas, os países do hemisfério Sul conheceram um crescimento vertiginoso da prostituição e do tráfico de mulheres e crianças para esse fim. Desde pouco mais de uma década tem sido igualmente o caso dos países da extinta União Soviética e das Europas Oriental e Central, assim como dos Bálcãs. Os seres humanos atingidos por esse negócio são nitidamente mais numerosos que os traficados para fins de exploração doméstica ou de mão-de-obra barata. Estima-se que, do comércio de seres humanos, 90% destes são destinados à prostituição (Eriksson, 2004).

A tendência é prostituir crianças cada vez mais jovens, assim como utilizá-las na pornografia. O fato de a prostituição de crianças de 12 ou 14 anos ser legal ou não em nada interfere nos aspectos éticos implicados nessa mercantilização do sexo. A indústria da prostituição infantil explora 400 mil crianças na Índia, 100 mil nas Filipinas, entre 200 mil e 300 mil na Tailândia, 100 mil em Taiwan, entre 244 mil e 325 mil nos Estados Unidos. Na China, há entre 200 mil e 500 mil crianças prostituídas e, no Brasil, entre 500 mil e 2 milhões. No Camboja, cerca de 35% das pessoas prostituídas têm menos de 17 anos e, das albanesas colocadas em atividade na Europa, 60% são menores2. Alguns estudos estimam que, no decorrer de um ano, uma criança prostituída vende seus “serviços sexuais” a 2 mil homens (Robinson, 1998). Um relatório do Conselho da Europa calculou, em 1996, que 100 mil crianças da Europa Oriental atuavam nesse “negócio” na Europa Ocidental. Durante o II Congresso contra a Exploração Sexual de Crianças com Fins Comerciais, que teve lugar em Yokohama, Japão, a Unicef (2001) avaliou em mais de 1 milhão o número de crianças – principalmente do sexo feminino – prostituídas pela indústria sexual. Em 2004, essa cifra atingia cerca de 2 milhões. Hoje, pelo menos 1 milhão está no Sudeste Asiático, onde os países mais envolvidos são a Índia, a Tailândia, Taiwan e as Filipinas. 

A indústria da prostituição representa 5% do PIB dos Países Baixos e entre 1 e 3% do Japão; em 1998, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a prostituição representava entre 2 e 14% do conjunto das atividades econômicas da Tailândia, da Indonésia, da Malásia e das Filipinas (Lim, 1998). A indústria da pornografia é o terceiro ramo industrial mais importante da Dinamarca e conheceu um desenvolvimento fulgurante na Hungria, tornando-se uma das áreas preferidas pelos cineastas. As indústrias do sexo são doravante valiosas – algumas dentre elas são multinacionais cotadas na Bolsa – gerando lucros fabulosos e receitas importantes em divisas fortes. Pelo efeito que têm sobre a balança de pagamentos e, conseqüentemente, sobre as contas correntes nacionais, elas são consideradas vitais para a economia de diversos países. A prostituição faz parte até mesmo da estratégia de desenvolvimento de certos Estados. Além disso, sob a obrigação de reembolso da dívida externa, numerosos países da Ásia foram estimulados pelos organismos internacionais, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial – dos quais tomaram vultosos empréstimos – a desenvolver suas indústrias de turismo e lazer. Em qualquer dos casos, o impulso a esses setores permitiu que a indústria do comércio sexual alçasse vôo.

Em certos países, como o Nepal, mulheres e crianças foram colocadas diretamente nos mercados regionais ou internacionais (notadamente o indiano e o de Hong Kong), sem que o país conhecesse uma expansão significativa da prostituição local. Em outros, como a Tailândia, o efeito foi o desenvolvimento simultâneo dos mercados local, regionais e internacionais. Em todos os casos, observa-se que essas “mercadorias” migram das regiões de baixa concentração de capital em direção às de maior concentração. Assim, por exemplo, estima-se que há dez anos 200 mil mulheres e meninas de Bangladesh foram vítimas do tráfico para fins de prostituição dirigido ao Paquistão; de 20 mil a 30 mil pessoas prostituídas da Tailândia são de origem birmanesa; e 150 mil pessoas prostituídas provenientes das Filipinas, de Taiwan, da Tailândia e da Rússia foram colocadas no Japão.

2. AS POLÍTICAS LIBERAIS PARTICIPAM DA DECOLAGEM DAS INDÚSTRIAS DO SEXO 
Com o triunfo dos valores liberais no processo atual de globalização, o sexo tarifado, assim como sua representação, a pornografia, conheceram nas últimas décadas uma normatização. A submissão às regras do mercado e às leis contratuais liberais de comércio implica uma aceitação cada vez mais ampliada da prostituição, que é, doravante, uma “profissão como qualquer outra”, um simples “trabalho do sexo” e até mesmo um “direito” ou uma “liberdade” para um significativo número de Estados e organizações. Desde o início deste milênio, alguns Estados passaram a regulamentar (legalizar) a prostituição (Países Baixos, Suíça, Austrália, Nova Zelândia etc.). Em nome da “autonomia” das pessoas e do direito de “controlar seu próprio corpo”, defende-se o “direito” à prostituição e ao tráfico de mulheres para fins de prostituição. Essa ideologia liberal se impôs pouco a pouco. Durante muito tempo, ela não pareceu normal, moral ou “natural” como é percebida agora. Foram necessárias mudanças profundas e um conjunto de condições propícias à sua formulação enquanto “liberdade”. Essas mudanças devem-se tanto ao crescimento das indústrias do sexo quanto à globalização neoliberal, dois fenômenos estreitamente imbricados. Jamais na História a venalidade sexual foi assim tão ampla, profunda e banalizada. As perturbações que ela implica são radicais para o tecido social e para as mentalidades. Assiste-se à “prostitucionalização” de regiões inteiras do globo e a uma “pornograficização” dos imaginários sociais, não somente dos sistemas de representações, mas também de certas maneiras de pensar e agir.

A legalização (regulamentação) da indústria da prostituição, aí compreendida a do proxenetismo, tem como efeito engendrar um crescimento notável das indústrias do sexo e, em conseqüência, compreende a expansão do tráfico para fins de prostituição. Os índices dos Países Baixos mostram bem a expansão dessa indústria e o crescimento desse tráfico: 2.500 pessoas prostituídas em 1981, 10 mil em 1985, 20 mil em 1989 e 30 mil em 2004; há 2 mil bordéis no país e pelo menos 7 mil locais em que se realiza o comércio do sexo; 80% das pessoas prostituídas vieram do exterior e 70% entre elas não possuem documentos, vítimas que foram do tráfico; em 1960, 95% dessas pessoas eram neerlandesas que, em 1999, não constituíam mais que 20%. Nesse país, previase que a legalização pusesse fim ao envolvimento de menores, mas a Organização pelos Direitos da Criança, sediada em Amsterdã, estima que, ao contrário, o número de menores que se prostituem passou de 4 mil, em 1996, para 15 mil, em 2001, dos quais pelo menos 5 mil são de origem estrangeira. Durante o primeiro ano da legalização nos Países Baixos, as indústrias do sexo tiveram um crescimento de 25% (Daley, 2001).

Na Dinamarca, durante o último decênio, o número de pessoas prostituídas de origem estrangeira, vítimas do tráfico, foi multiplicado por dez. Na Áustria, elas são 90% e, na Itália, entre 67% e 80% das pessoas prostituídas (Covre e Paradiso, 2000). Na Alemanha, elas constituem entre 75% e 85%. Em 2003, na Grécia, estimou-se em 20 mil/ano as vítimas do tráfico para fins de prostituição, enquanto, no início do decênio precedente, elas eram 2.100/ano. De 1990 a 2000, 77.500 jovens mulheres estrangeiras foram negociadas por traficantes. Essas jovens, freqüentemente menores, são compradas nos mercados balcânicos a 500 euros. Há dez anos, o número de pessoas prostituídas de origem grega era estimado em 3.400; hoje, esse número permanece mais ou menos o mesmo, mas, com a explosão da indústria da prostituição, o número das de origem estrangeira foi multiplicado por quatro (Mitralias, 2003). As políticas governamentais são um fator decisivo na proliferação dessa indústria e do tráfico, que é um corolário dela, assim como em sua rentabilidade. 

3. A PAUPERIZAÇÃO DE DIVERSAS REGIÕES DO GLOBO CRIA AS CONDIÇÕES PROPÍCIAS A TODAS AS FORMAS DE TRÁFICO, COMÉRCIO E PROSTITUIÇÃO DE SERES HUMANOS
Os dados mais significativos provêm principalmente dos países do Sul e do Oriente. No âmbito dessas regiões, a desordem das estruturas sociais, devida ao triunfo da economia capitalista neoliberal, afeta enormemente as zonas rurais, instiga o êxodo rural, favorece a economia informal, notadamente as indústrias do sexo, e as desestruturações sociais. Ainda assim, a ampliação da economia de mercado e o crescimento das desigualdades sociais, para os quais contribuem também os programas de ajuste estrutural, o endividamento considerável dos Estados, bem como a “financeirização” da economia estão longe de excluir ou de marginalizar suas vítimas. A globalização tira mesmo vantagem em “produzi-las” para seu maior proveito. Os abandonados à própria sorte – em grande parte mulheres e crianças – são na realidade “a fonte das rendas mais fortes da economia globalizada” (Maillard, 2001, 60).

4. A GLOBALIZAÇÃO CAPITALISTA ACENTUOU A  DESIGUALDADE DE DESENVOLVIMENTO ENTRE OS PAÍSES,  O QUE PRODUZIU UMA PRESSÃO SIGNIFICATIVA EM  FAVOR DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
A globalização caracteriza-se por uma femininização cada vez maior das migrações. A Divisão de População da ONU (Organização das Nações Unidas) estima que o número total de mulheres vivendo fora de seus países equivale a 48% do conjunto dos migrantes. A globalização se traduz pela femininização da pobreza: do 1,3 bilhão de pessoas que vivem na pobreza absoluta, 70% são mulheres. Paralelamente ao impulso verificado na prostituição local ligada às migrações do campo para as cidades, centenas de milhares de jovens mulheres são transportadas aos centros urbanos do Japão, da Europa Ocidental e da América do Norte para “oferecer serviços sexuais”. Nos lugares onde a indústria da prostituição é muito desenvolvida, aí compreendidos os países dependentes, os circuitos de tráfico mundial atuam num vaivém estonteante. Por exemplo, em 1994, estimava-se em 10 mil o número de pessoas originárias da Europa Oriental operando na Tailândia. Em contrapartida, as pessoas prostituídas tailandesas são numerosas nos países capitalistas dominantes: em 1996 elas eram 60% da indústria japonesa do sexo. Essas realidades definem as condições e a extensão da globalização capitalista atual para as mulheres e crianças vítimas da indústria do sexo. As prostitutas estrangeiras situam-se evidentemente na base da hierarquia da prostituição; são isoladas social e culturalmente, e exercem sua função nas piores condições possíveis, estando todas sujeitas a diferentes formas de violência, tanto no cotidiano da atividade como em seu transporte de um país a outro3.

5. A INDUSTRIALIZAÇÃO DO COMÉRCIO SEXUAL INDUZIU O DESENVOLVIMENTO DE UMA PRODUÇÃO EM MASSA DE “BENS” E DE “SERVIÇOS SEXUAIS” QUE GEROU UMA DIVISÃO REGIONAL E INTERNACIONAL DO TRABALHO
Esses “bens” consistem em seres humanos prostituídos. Essa indústria, que desabrocha em um mercado globalizado que integra, ao mesmo tempo, o nível local e o nível regional, tornou-se uma força econômica da qual não se pode definir o perfil. A prostituição e as indústrias do sexo inerentes – os bares, os clubes noturnos, os salões de massagem, as produtoras de pornografia etc. – apóiam-se em uma economia subterrânea massiva controlada por proxenetas ligados ao crime organizado e beneficiam policiais corruptos. As cadeias hoteleiras internacionais, as companhias aéreas e a indústria do turismo lucram em larga escala com a indústria do comércio sexual. Os próprios governos se beneficiam: em 1995, calculou-se que as rendas da prostituição na Tailândia constituíram entre 59% e 60% do orçamento desse país. Não é sem razão que esse governo fazia, em 1987, a promoção do turismo sexual nestes termos: “A única fruta da Tailândia mais deliciosa que o durian (uma fruta local) são as jovens mulheres” (Santos, 1999).

6. APESAR DISSO, A GRANDÍSSIMA MAIORIA DAS ANÁLISES DA GLOBALIZAÇÃO CAPITALISTA CONTEMPORÂNEA NÃO LEVA EM CONTA O IMPACTO DA INDÚSTRIA DO COMÉRCIO SEXUAL SOBRE AS SOCIEDADES E SOBRE AS RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO 
Na importantíssima literatura produzida sobre o assunto, boa parte dos aspectos foram examinados – privatização, “financeirização”, ajuste estrutural, desregulamentação, enriquecimento e empobrecimento, aumento das desigualdades, neoliberalismo, redução dos orçamentos sociais, programas de austeridade, paraísos fiscais etc. –, mas raros são os estudos que integram, na dinâmica da globalização, o vôo alçado pelas indústrias do sexo4. Portanto, o processo de mercantilização de bens e serviços, e mais particularmente a comercialização de seres vivos, aí compreendidos corpos e sexos, assim como a monetarização das relações sociais estão no núcleo da atual acumulação capitalista. E “a mercantilização do ser vivo é explorada pelas máfias” (Passet et Liberman, 2002, 38). Muitos oponentes da globalização neoliberal e da ampliação do “reino” da mercadoria defendem a liberalização das indústrias do sexo. Como se o capitalismo não tivesse recuperado o sexo e encontrado “vocação [...] para mercantilizar o desejo, notadamente o da liberação, e por isso mesmo para recuperá-lo e enquadrá-lo” (Boltanski et Chiapello, 2002, 226). A globalização neoliberal favorece a penetração da mercadoria no domínio dos costumes e os revoluciona, tendo efeitos consideráveis, mas pouco conhecidos, sobre os códigos sociais assim como sobre o psiquismo humano e as relações entre os homens e as mulheres. A “liberdade sexual” é doravante “um valor mercadológico e um elemento dos costumes sociais”. “O prazer sob essa forma engendra a submissão” (Marcuse, 1968, 108), particularmente para as mulheres e as crianças transmutadas em mercadorias sexuais.

7. A PROSTITUIÇÃO É UMA ATIVIDADE TRADICIONAL DO CRIME ORGANIZADO E A EXPLOSÃO DOS MERCADOS SEXUAIS É AMPLAMENTE CONTROLADA POR ELE
Isso não se deve ao fato de a prostituição ser ilegal ou proibida. Nos países em que ela é legal (Alemanha, Países Baixos, Suíça, Grécia), naqueles em que os bordéis são propriedades do Estado (Turquia, Indonésia) ou naqueles que a reconhecem como uma indústria vital para a economia nacional (Tailândia, Filipinas), o papel do crime organizado torna-se fundamental na organização dos mercados. Daí que a violência seja decisiva na produção das “mercadorias sexuais”, que são as pessoas prostituídas. “Em vinte dias, pode-se submeter qualquer mulher e transformá-la em prostituta”, relata uma responsável búlgara de uma casa de reintegração (apud Chaleil, 2002, 498). O rapto, a violação, a sujeição – existem locais para a sujeição não somente nos países do Sul mas também nos Bálcãs, na Europa Central e na Itália, onde ela é chamada de “treinamento” –, o terror e o homicídio premeditado não param de alimentar e prolongar essa indústria. Tudo isso é fundamental não somente para o desenvolvimento dos mercados, mas igualmente para a própria “fabricação” das “mercadorias”, pois contribui para tornar “funcionais” as pessoas prostituídas, já que essa indústria exige a disponibilidade total dos corpos.

A criminalidade financeira e econômica, assim como todas as outras formas de criminalidade, não é um fenômeno marginal que se enxerta na globalização capitalista. Como ressalta Jean de Maillard (2001), ela é consubstancial à globalização neoliberal e a seu princípio de desregulamentação. Os organismos financeiros mais “honoráveis” participam das operações de lavagem, que são, de fato, um modo de legalização dos lucros da criminalidade. Os Estados, mesmo não legalizando tais atividades, de todo modo tiram delas benefícios consideráveis. O “produto criminoso bruto” é avaliado em 15% do comércio mundial (Passet et Liberman, 2002, 60). Assiste-se atualmente a uma forte expansão das organizações criminosas lançadas no tráfico de seres humanos. De fato, entre os setores de atividade do crime organizado, o tráfico é o segmento que cresce mais rapidamente.

8. A PROSTITUIÇÃO BASEIA-SE NA VIOLÊNCIA, NUTRE-SE DELA E A AMPLIA
As violências contra as  pessoas prostituídas são múltiplas e freqüentemente inomináveis. A primeira violência é intrínseca à prostituição: a coisificação e a mercantilização têm por função a submissão dos sexos à satisfação dos prazeres sexuais do outro. A segunda lhe é igualmente inerente: uma pessoa se torna prostituída em conseqüência de violências sexuais – segundo diferentes estudos, entre 80% e 90% das pessoas prostituídas no Ocidente foram agredidas sexualmente em sua juventude5 –, físicas, psíquicas, sociais e econômicas. A terceira violência está ligada à expansão da prostituição e do tráfico para essa finalidade e à degradação consecutiva das condições nas quais evoluem as pessoas prostituídas. A ampliação do campo monetário compreende “a transformação em mercadoria daquilo que não é produzido para ser mercadoria” (Gauron, 2002, 34). Esse processo de mercantilização opera-se ao preço de uma tensão e de uma violência consideráveis. Isso se observa mais nitidamente na transformação do ser humano em mercadoria. Desde a apropriação privada dos corpos, sua transmutação em mercadorias até seu consumo é necessário o emprego da força.
A violência é constitutiva da mercantilização dos seres humanos e de seus corpos. 

Os métodos de recrutamento dos proxenetas não são o simples acréscimo de condutas privadas e “abusivas”, mas inserem-se num sistema estruturado que necessita da violência. A brutalidade de um número significativo de clientes deriva do fato de que a transação venal lhes confere uma posição de poder. Um estudo sobre as pessoas prostituídas de rua na Inglaterra estabeleceu que 87% delas foram vítimas de violência nos doze meses precedentes; 43% sofrem as conseqüências de abusos graves (Miller, 1995). Uma pesquisa realizada em Chicago demonstrou que 21,4% das mulheres que trabalham como garotas de programa e dançarinas strippers foram violadas mais de dez vezes (Boulet, 2002). Um estudo norte-americano realizado em Minneapolis revelou que 78% das pessoas prostituídas foram vítimas de violação por proxenetas e clientes, em média 49 vezes por ano; 48% foram arrancadas à força de seus lugares de origem e transportadas para outro estado e 27% foram mutiladas (Raymond, 1999). Cerca de 75% das garotas de programa fizeram uma tentativa de suicídio (Chester, 1994). As mulheres e meninas aliciadas para a prostituição no Canadá conhecem uma taxa de mortalidade quarenta vezes superior à média nacional. A média de idade de entrada nessa atividade na América do Norte é de 13 ou 14 anos (Giobbe, 1992; John Howard Society of Alberta, 2001). Em tais condições, será possível sustentar que há realmente uma prostituição “livre”, voluntariamente escolhida?

Alguns bordéis legais de Nevada e do Novo México, nos Estados Unidos, possuem espaços gradeados, cães, vigilantes, como se não passassem de um universo carcerário onde as pessoas prostituídas estão em situação de detenção ou de escravidão. Em Hamburgo, o acesso a certos espaços reservados à prostituição são fechados por barreiras. Em Istambul, a entrada dos genelevs (complexos de lupanares) é vigiada. Em Calcutá, pessoas prostituídas são soltas de uma jaula para divertir turistas sexuais. O proprietário de uma boate, no nordeste da Bósnia, instalou-se em meio a campos minados que têm uma única via de acesso. Não é possível a evasão. Vigilantes também espreitam as saídas.

A prostituição, por assim dizer, “livre” surge do liberalismo, e não da liberdade. Entre 85% e 90% das pessoas prostituídas estão sob o poder de um proxeneta ou de um conjunto de proxenetas6. Devido ao desequilíbrio das relações de forças e às discriminações sistêmicas, o direito contratual liberal, em que duas pessoas juridicamente iguais firmam um contrato, é, nesse domínio como em outros, um instrumento de servidão e dependência. As pessoas submetidas ao poder mercantil masculino são restritas às suas regras e a seu funcionamento. O direito de alguém de se dedicar à prostituição e de permitir que outro se aproveite da renda que extrai dessa atividade é, na ótica liberal, normatizado. A lei alemã de legalização da prostituição estimula o tráfico, via agências internacionais de casamento, e permite que uma cônjuge de cidadão alemão nascida no estrangeiro se prostitua e que seu marido viva com a renda proveniente disso.

A globalização dos mercados é, em todos os textos internacionais ou europeus, não somente um valor admitido e comum, mas igualmente um valor a promover. A mercantilização de seres humanos é autorizada, com a condição de que não seja “abusiva” ou “forçada” sob certas condições. Formas legais do tráfico são permitidas, mesmo em países onde a prostituição é ilegal. Diversos Estados liberam vistos de artista para dançarinas strippers, recrutadas na Europa Oriental e no Sudeste Asiático, que são rapidamente colocadas no mercado da prostituição, quando os bares onde elas atuam não são, eles próprios, os locais de prostituição. As agências internacionais de encontros e de casamentos com as “beldades” eslavas e as asiáticas “exóticas” fazem negócios de ouro nos países capitalistas dominantes. A prostituição não é mais considerada uma forma de submissão do sexo feminino aos homens, ao sistema patriarcal; ela é doravante um “direito” e uma “liberdade”. Os anos 1990 foram caracterizados pela legitimação da mercantilização sexual de mulheres e crianças para proveito do sistema de prostituição, em nome da efetivação de certas modalidades de sua regulação.

9. AS MULHERES E AS CRIANÇAS DAS MINORIAS SÃO VÍTIMAS DA INDÚSTRIA SEXUAL MUNDIAL DE MANEIRA DESPROPORCIONAL EM RELAÇÃO À PARTE QUE CONSTITUEM NA POPULAÇÃO
Esse é notadamente o caso das minorias étnicas e das tribos da província de Yunan, na China, e das minorias étnicas do norte da Tailândia e de Mianmar. Entre 1990 e 1997, cerca de 80 mil mulheres e crianças originárias da região do Mekong ou pertencentes às etnias que habitam a fronteira entre a Tailândia e Mianmar foram recrutadas pela indústria da prostituição para atuarem na Tailândia. As pessoas originárias da minoria húngara da Romênia, da minoria russa dos países bálticos e das minorias ciganas que vivem um pouco em cada parte da Europa Oriental são “sobre-representadas” entre as pessoas prostituídas em seu próprio país, assim como na Europa Ocidental. As autóctones do Canadá e as de numerosos países latino-americanos são igualmente “sobre-representadas” entre as pessoas prostituídas de seus respectivos países. Em escala mundial, os clientes do Norte usufruem de mulheres e crianças do Sul e do Oriente, assim como de mulheres e crianças das minorias étnicas ou nacionais. No Sul, os clientes nacionais exploram mulheres e crianças de minorias nacionais.

10. O DESDOBRAMENTO MASSIVO ATUAL DA PROSTITUIÇÃO É UM EFEITO, ENTRE OUTROS, DA PRESENÇA DE MILITARES ENGAJADOS EM GUERRAS OU EM OCUPAÇÕES DE TERRITÓRIOS 
A mais importante indústria da prostituição do Sudeste Asiático decolou graças às guerras da Coréia e do Vietnã e ao estacionamento de tropas ocidentais nos países limítrofes, notadamente na Tailândia e nas Filipinas. O significativo crescimento da prostituição local permitiu o estabelecimento da infra-estrutura necessária ao desenvolvimento do turismo sexual, graças principalmente à disponibilidade da “mão-de-obra” gerada pela presença militar7. Lazeres mais importantes, facilidades de comunicação e de deslocamento para o estrangeiro, a construção social, mediante a pornografia, de uma imagem exótica e sensual das pessoas prostituídas da Ásia – que seriam, devido à sua cultura, sexualmente maduras a despeito de sua jovem idade – e políticas governamentais favoráveis ao turismo sexual contribuíram para a explosão dessa indústria. 

Nos anos 1990, 18 mil coreanas prostituídas estavam a serviço dos 43 mil soldados norte-americanos estacionados na Coréia. Hoje, 8.500 mulheres, originárias sobretudo das Filipinas e da Rússia, são vítimas do tráfico que serve esses militares no país. Elas puderam entrar no território coreano por meio de vistos de “entretenimento” liberados pelo governo após negociações com a associação de proprietários de bares das cidades-acampamentos (camp-towns). 
Avalia-se que, entre 1937 e 1945, o exército japonês de ocupação utilizou entre 100 mil e 200 mil prostitutas coreanas encarceradas em “bordéis de reconforto”. Apenas alguns dias após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, a Associação para a Criação de Facilidades Recreativas Especiais, financiada indiretamente pelo governo japonês, abriu um primeiro bordel de reconforto para os soldados norte-americanos. Em seu apogeu, essa Associação empregava 70 mil prostitutas japonesas. A OIM (Organização Internacional para as Migrações) avalia em 10 mil o número de pessoas prostituídas clandestinas na Bósnia. Essa organização estima que 250 mil mulheres e crianças da Europa Oriental são vítimas do tráfico via Sérvia e Estados vizinhos, das quais um grande número encontra-se dentro dos novos protetorados internacionais da Bósnia e de Kosovo, para servir soldados, policiais e membros de ONGs. A utilização de “facilidades recreativas” faz ainda parte das políticas do Pentágono. Imediatamente após a primeira guerra contra o Iraque, as tropas norte-americanas foram enviadas à Tailândia para espairecerem. 

11. ENTRE 1 MILHÃO E DOIS MILHÕES DE MENORES JUNTAM-SE, A CADA ANO, NO MUNDO INTEIRO, ÀS FILEIRAS DAS VÍTIMAS DO TURISMO SEXUAL, OU SEJA, DA PROSTITUIÇÃO ORGANIZADA  
Como se o planeta tivesse se tornado um imenso lupanar... O turismo é um dos setores mais importantes das economias dos países da Ásia e do Pacífico. Ele ocupa primeiro lugar, enquanto setor econômico e fonte de divisas, na Tailândia, na Austrália e na Nova Zelândia. Situa-se na segunda posição em Hong Kong, na Malásia e nas Filipinas, e na terceira em Cingapura e na Indonésia. Na Nova Zelândia, a indústria do turismo emprega mais de 200 mil pessoas; em Hong Kong emprega 12% da mão-de-obra e contribui para cerca de 7% da economia. O setor do turismo na Tailândia emprega mais de 1,5 milhão de pessoas, enquanto em Cingapura, segundo o FMI, o superávit na balança de pagamentos é devido ao excedente realizado por esse setor cuja participação na economia é de cerca de 10%. Todos os países mencionados acima são destinos do tráfico de mulheres e crianças para fins de prostituição. Em 1998, o número estimado de alemães que se deslocavam para o exterior anualmente para relações sexuais com crianças, freqüentemente meninas no início da adolescência, era de aproximadamente 200 mil. Agências alemãs de encontros e casamentos oferecem igualmente menores russas. Avalia-se que, em 2003, 62% das crianças costa-riquenhas prostituídas foram utilizadas por turistas sexuais. Pelo menos 50 páginas da internet apresentam a Costa Rica como um paraíso sexual.

Num guia de viagem encontrava-se em destaque os dizeres: “é mais fácil conseguir uma jovem tailandesa que comprar um maço de cigarros” (Formoso, 2001). A atração suscitada pela Tailândia, o “país do sorriso”, sobre os estrangeiros não parou de crescer no decurso dos três últimos anos. Em 1970, contabilizaram-se 630 mil visitantes por ano; em 1980, 7,8 milhões; em 1995, o turismo criava 7,1 bilhões de dólares americanos de receita, sendo a primeira fonte de divisas estrangeiras e compondo 13% do PIB tailandês. Esse país era o primeiro destino dos que buscavam lazer no Sudeste Asiático. É constante, ali, a maior proporção de turistas homens, que constituem dois terços dos visitantes. Mesmo que o sexo venal com meninas e meninos tailandeses não seja necessariamente a principal motivação da estada, poucos se preservam dos bairros quentes, “cujos guias turísticos apresentam as atrações como curiosidades locais, quando eles não induzem ao consumo, dando os ‘bons endereços’ ou insistindo na facilidade de acesso aos serviços sexuais” (Formoso, 2001). Em 2001, 65% dos turistas que visitavam o Camboja eram homens; esse país é conhecido pela prostituição de crianças. Um turista sexual pode comprar um pacote que inclui vôos internacionais, hospedagem, festas privadas, massagens e a presença, todos os dias, da menina de sua escolha. As tarifas para uma semana: 7.500 euros para Moscou ou 6 mil para Bancoc e Pattaya, ambas na Tailândia (Dozier, 2004). 

A banalização do turismo para fins de venalidade sexual é tal que o bordel australiano Daily Planet recebeu, em 1991, o prêmio de turismo de Vitória [província australiana] por sua contribuição à economia da região. Em 2001, em benefício do Grande Prêmio da Fórmula 1 da Hungria, para “bem servir” os turistas, as autoridades locais legalizaram a prostituição durante os três dias do evento. 

O turismo sexual entranha a “prostitucionalização” do tecido social: para 5,4 milhões de usuários na Tailândia, anualmente, contabilizam-se doravante 450 mil clientes locais por dia (Jeffreys, 1999, 186-187). E 75% dos tailandeses são clientes. Mas essa atividade não se limita aos países do Sul ou do Leste. A Reeperbahn de Hamburgo e os bairros quentes de Amsterdã e de Roterdã são destinos bem conhecidos dos turistas sexuais. Os países que legalizaram a prostituição ou que a promovem tornaram-se pontos turísticos importantes. É igualmente a partir deles que ONGs nacionais militam nos âmbitos europeu e internacional pelo reconhecimento da prostituição como um “trabalho sexual”.

12. A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL É O OBJETIVO DO SISTEMA EM SUA TOTALIDADE E, EM PARTICULAR, DO SISTEMA PROXENETA QUE DOMINA E ORGANIZA A INDÚSTRIA DA PROSTITUIÇÃO   
O dinheiro é, ao mesmo tempo, o que intermedeia as relações entre cliente e pessoa prostituída, e o objetivo da transação. Confere onipotência aos proxenetas e aos clientes e engendra a desvalorização das pessoas objetos da transação sexual. Na sociedade burguesa, as relações de poder são “ao mesmo tempo intencionais e não-subjetivas”; as relações de dominação e de sujeição são imanentes ao “domínio em que se exercem” e “constitutivos da organização social”. São elas que produzem a sexualidade de nossas sociedades. “Ironia desse dispositivo: ele nos faz crer que se trata de nossa ‘liberação’”, sublinha Foucault (1976, 211). Caracterizada pela mercantilização, a venalidade sexual se concretiza, portanto, na objetivação, na sujeição enquanto objeto e na submissão a seu meio de troca, o dinheiro, cuja apropriação exige, ao mesmo tempo, alienação e despojamento. 

A monetarização das relações sociais “baseia-se na mercantilização extensiva das necessidades sociais, [e] o crescimento atual implica uma colonização das relações humanas e da cultura pelo dinheiro” (Perret, 2000). De fato, as relações humanas estão cada vez mais submetidas ao dinheiro e à mercantilização. O triunfo do neoliberalismo nos anos 1980 permitiu uma aceleração da submissão das relações sociais à monetarização. Essa aceleração é traduzida por um impulso considerável das indústrias do sexo e por um discurso, surgido do liberalismo mais trivial, que legitima suas atividades. A monetarização se produz particularmente em detrimento das mulheres e crianças tornadas, às dezenas de milhões, “produtos” nos mercados sexuais, consumíveis e descartáveis após o uso.

13. O CRESCIMENTO DESENFREADO DAS INDÚSTRIAS DO SEXO TEM POR EFEITO RECOLOCAR EM CAUSA OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS, PRINCIPALMENTE OS DAS MULHERES E CRIANÇAS TORNADAS MERCADORIAS SEXUAIS
O status das mulheres e das crianças regrediu de fato gravemente. Doravante, nos diversos países dependentes, assim como naqueles do extinto bloco soviético, impactados pelas políticas de ajuste estrutural e pela economia de mercado, elas se tornaram novas matérias-primas (new raw resources na literatura inglesa) exploráveis e exportáveis no quadro do desenvolvimento do comércio nacional e internacional. Do ponto de vista de seus proprietários, essas mulheres e crianças se caracterizam por uma dupla vantagem. Isso se traduz pela mercantilização não somente de seus corpos e dos sexos, mas igualmente pelo fato de serem vendidas sucessivamente a diferentes redes criminosas proxenetas e, depois, aos clientes, donde a idéia freqüente do aparecimento de uma nova forma de escravidão decorrente do tráfico que vitima milhões de mulheres e crianças.

O capitalismo neoliberal encontra sua expressão máxima no domínio das indústrias do sexo. Esse regime de acumulação estreitamente ligado às desregulamentações da globalização fortalece consideravelmente o sistema de opressão das mulheres e crianças e sua servidão para o prazer de outro, para o prazer masculino. Reduzindo as mulheres a uma mercadoria suscetível de ser comprada, vendida, alugada, apropriada, trocada ou adquirida, a prostituição afeta o gênero. Ela reforça a equação estabelecida pela sociedade entre mulher e sexo, reduzindo as mulheres a uma humanidade menor e contribuindo para mantê-las num status inferior em todo o mundo. A indústria do sexo é cada vez mais considerada uma indústria da diversão e a prostituição, um trabalho legítimo. Ela é, portanto, baseada numa violação sistêmica dos direitos humanos e uma opressão maior do gênero feminino.

14. OS VALORES LIBERAIS CONTAMINARAM PARTE IMPORTANTE DA ESQUERDA E DO MOVIMENTO DAS MULHERES 
Foram os social-democratas e os verdes alemães que legalizaram a prostituição. Em nome da competitividade das empresas e dos déficits orçamentários, esses mesmos partidos recolocam em causa as conquistas sociais. Sem inferir daqui o balanço dessa esquerda8 que, em nome de valores que surgem muito mais do liberalismo que do socialismo, se adaptou não somente aos “constrangimentos” capitalistas, mas alardeia as vantagens do mercado, é preciso destacar que sua aceitação de valores liberais lhe permitiu desempenhar, em certos países, um papel ativo na normatização das indústrias do sexo em nome da defesa das “trabalhadoras do sexo” e do “direito à autodeterminação individual”, portanto do direito à prostituição. 

O movimento de mulheres está ele próprio doravante dividido sobre a questão da prostituição. As organizações de mulheres e as feministas liberais que defendem a descriminalização apóiam-se sobre a distinção entre “prostituição voluntária” e “prostituição forçada”. Para Elisabeth Badinter (2002), por exemplo, a prostituição se integra num “direito caramente adquirido há apenas trinta anos (que) apela ao respeito de todos: a livre disposição do corpo”. A distinção entre prostituição “livre” e “forçada” lhe permite denunciar o discurso de que as pessoas prostituídas são “as vítimas da lógica econômica liberal e da dominação masculina própria do patriarcado”. Qualificá-las de vítimas seria admitir a existência de uma opressão social estrutural, o que não é mais o caso: “[O] patriarcado [está] agonizando em nossas sociedades”. 

Para os defensores da prostituição, certas afirmações reaparecem como leitmotivs. Primeiramente, a prostituição é, em geral, um “trabalho voluntariamente escolhido”; em segundo lugar, ela é equivalente a um emprego no setor de serviços, pois implica a simples venda de um serviço sexual; em terceiro lugar, as restrições legais à prostituição constituem uma violação dos direitos civis, notadamente daquele de poder escolher livremente seu emprego. Enfim, a legalização colocaria fim à estigmatização da “profissão”, que se tornaria normatizada como simples “trabalho do sexo”, e conferiria direitos sociais às pessoas prostituídas. Mas, nos países onde a prostituição foi legalizada, as pessoas prostituídas que se registram para ter acesso a uma proteção social são muito minoritárias: 4% nos Países Baixos, entre 5% e 8% na Alemanha, entre 6% e 10% em Viena (Áustria), 7% em Atenas (Grécia) etc.

A prostituição, seja ela legal ou ilegal, assim como as outras indústrias do sexo, não é organizada pelas pessoas prostituídas; ela as mercantiliza e as monetariza. É organizada por um sistema proxeneta em favor dos clientes. Onde estão, portanto, os proxenetas e os clientes dentro da proposta de defensores da prostituição? No melhor dos casos, os clientes não aparecem senão como partes contratantes da troca, como consumidores. Eles têm o “direito” de consumir as pessoas prostituídas, pois isso é dado pelo direito contratual burguês: é um acordo feito entre duas pessoas que consentem (como se a terceira pessoa, o proxeneta, jamais estivesse implicada). Por que não defender um outro direito do consumidor, o de ter renovada a mercadoria periodicamente – o tráfico para fins de prostituição não serve precisamente para isso? Com efeito, esse tráfico não lhes coloca problema, já que é considerado, também ele, “voluntário” e é assimilado à migração de “trabalhadoras do sexo”. Quem sabe, eles tenham o direito igualmente a uma mercadoria de qualidade superior? Na Alemanha, todas as empresas de quinze empregados ou mais, aí incluídos os bordéis, devem agora obrigatoriamente “contratar” aprendizes sob pena de penalidades financeiras! Que pessoa sensata encorajaria uma adolescente qualquer a fazer aprendizado num Eros center?

Definir a prostituição ou o tráfico para fins de prostituição como opressão ou ausência de opressão implica não ser mais necessário analisar a prostituição enquanto tal: seu sentido, seus mecanismos, seus laços com o crime organizado, sua inscrição nas relações mercantis e patriarcais, seu papel na opressão das mulheres etc. A legitimação da prostituição passa por essa operação de redução liberal. Foi em 1993 que a União Européia e as organizações internacionais começaram a usar a expressão “prostituição forçada”. Desde então, os documentos internacionais e europeus não se colocam senão contra certas formas do tráfico para “fins de exploração sexual”. Com a negação do laço entre o tráfico e a prostituição, fonte do tráfico, os países que legalizaram esse “serviço” podem aderir às novas convenções que condenam certas formas de tráfico (do ponto de vista da criminalidade transnacional, e não da prostituição das mulheres). Combater unicamente o tráfico é reprimir a transferência de pessoas prostituídas entre os países, e não lutar contra sua prostituição9. Isso é ainda mais verdadeiro, pois concerne apenas às formas mais abusivas do tráfico, e não ao tráfico em si.

15. É INÚTIL LUTAR CONTRA O TRÁFICO DE SERES HUMANOS SEM COMBATER O SISTEMA DE PROSTITUIÇÃO QUE O CAUSA 
A oficialização institucional (legalização) dos mercados do sexo fortalece as atividades da organização proxeneta e do crime organizado. Essa consolidação, acompanhada de um crescimento importante das atividades de prostitução e de tráfico, implica uma degradação não somente da condição geral das mulheres e crianças, mas também, em particular, das pessoas prostituídas e das vítimas do tráfico para fins de prostituição, estas últimas estando geralmente criminalizadas enquanto imigrantes clandestinas. A luta contra a prostituição e o tráfico relacionado a ela inscreve-se no objetivo mais geral de luta pela igualdade das mulheres e dos homens. Essa igualdade ficará inacessível enquanto os homens comprarem, venderem e explorarem mulheres e crianças, prostituindo-as.

O abolicionismo feminista representa uma resistência a essa mercantilização sexual; é um elemento fundamental da luta contra o neoliberalismo, a privatização do ser vivo, a globalização capitalista e o sistema proxeneta planetário. Esse abolicionismo se opõe à monetarização das relações sociais e à mercantilização do sexo de seres humanos. É a única posição jurídica, filosófica e política que pode permitir a contestação da ordem mercantil e sexista tal como ela se apresenta na indústria globalizada do comércio do sexo. É baseada no caráter inalienável do corpo humano. O abolicionismo tradicional visa à “abolição” dos regulamentos sobre as pessoas prostituídas, e não à abolição da prostituição, e não se coloca contra uma das causas da prostituição: os clientes (a demanda)10. Ele não desenvolveu, ademais, as políticas sociais que permitissem às pessoas prostituídas escapar ao sistema prostitucional11. Esse abolicionismo, que fundamenta o sistema jurídico de diversos Estados, deve portanto ser repensado e reatualizado.

NOTAS
* Reproduzido de “Prostitution: la mondialisation encarnée; points de vue du Sud”. Poulin, Richard (coord.). Alternatives Sud, vol. 12-2005/3. Centre Tricontinental et Editions Sylepse, Louvainla Nelve, Paris, 2005. Traduzido por Mitsue Morissawa.
** Professor de Sociologia na Universidade de Ottawa (Canadá) e autor de La mondialisation des industries du sexe (2005). 

1 De acordo com diferentes fontes, entre as quais a Comissão dos Direitos das Mulheres e da Igualdade de Oportunidades, do Parlamento Europeu (2003), e a Europol (2001). 

2 Cada um desses dados apóia-se em fontes que seria fastidioso citar no texto. Os leitores podem consultar meu livro (Poulin, 2005), onde eles são detalhados. 

3 Paralelamente, assistimos a uma criminalização das migrações, o que afeta particularmente as mulheres vítimas do tráfico para fins de prostituição. Ver, a respeito, Poulin (2005, 76-78), assim como o artigo de Chiarotti, Susana (Traite des femmes en Amérique Latine; migrations et droits humains. In: Poulin, Richard (coord.). Alternatives Sud, vol. 12-2005/3. Centre Tricontinental et Editions Sylepse, Louvain-la Nelve, Paris, 2005. Publicado neste número. 

4 Uma exceção notável: Attac France (2003) desenvolveu uma posição política abolicionista sobre a questão. 

5 Segundo a mais recente pesquisa realizada no Quebec pela antropóloga Rose Dufour (2005), 85% das mulheres prostituídas sofrem agressões sexuais durante a juventude. 

6 A respeito deste dado, ver entre outros Chaleil (2002), Giobbe et al (1990) e Hunter (1994). 

7 Os Estados Unidos concluíram uma espécie de acordo com a Tailândia em 1967 para que esse país fosse um lugar de “repouso e lazer” para seus soldados. Foi um general da Royal Air Force tailandesa que negociou o “acordo” que permitiu um afluxo enorme de divisas fortes na economia do país. Sua esposa dirigiu a primeira agência de tours sexuais da Tailândia para militares norte-americanos. 

8 Ver, a respeito desse balanço, o livro de Serge Denis (2003). Este texto pouco conhecido dos europeus mereceria estar em mais alto grau. 

9 A Alemanha, os Países Baixos e a Suíça fazem não somente da prostituição um “trabalho como outro”, mas igualmente a promoção da “preferência nacional” no mercado da prostituição. Uma cidadã ou uma pessoa estrangeira em situação regular (casada com um cidadão do país) tem o “direito de se prostituir”. Às outras é recusado esse “direito”. Elas não podem, assim, beneficiar-se dos direitos sociais acordados pelo Estado para as “trabalhadoras do sexo”. Contra a concorrência das pessoas prostituídas estrangeiras, que chegam massivamente ao mercado e que “reduzem o preço”, se elevam vozes deplorando sua escravidão sexual, sua prostituição “forçada” e exigindo sua “liberação”! A internacionalização das indústrias do sexo é acompanhada nesse início do novo milênio de uma “nacionalização” do “direito à prostituição”. 

10 A política neo-abolicionista da Suécia ataca aqueles que lucram com a prostituição, aí incluídos os clientes. A particularidade da nova lei sobre a prostituição é de se inscrever numa lei mais importante, chamada em francês “A paz das mulheres”, que concerne à violência contra as mulheres. A prostituição é assimilada a uma violência relacionada às mulheres. Depois da adoção da lei, a Suécia é um dos únicos países a ter conhecido uma redução marcante da prostituição em um território e a ter escapado ao tráfico de mulheres e crianças. Ver, a respeito, Poulin (2005) e Ngalikpima (2005).  

11 Um estudo do Conselho do Status da Mulher de Quebec demonstrou que “92% das prostitutas deixariam a prostituição se elas pudessem” (apud Audet, 2002).  

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