quarta-feira, 4 de julho de 2012

Síria: agonia do regime e o nascimento de uma nova nação


Síria: agonia do regime e o nascimento de uma nova nação
Os altos custos econômicos e sociais do conflito relacionam-se cada vez mais à luta travada
entre as grandes potências e os poderes regionais sobre o futuro do país. Historicamente, nos
momentos em que a Síria encontra-se unida e estável, ela representa um importante ator
regional, mas quando está dividida, como agora, torna-se uma arena para a luta de forças
externas, muito embora a revolta tenha se originado exclusivamente no seio de sua
sociedade. O artigo é de Reginaldo Nasser.
Reginaldo Nasser (*)
Há um ano teve inicio a revolta na Síria que se tornou o episódio mais trágico, polêmico e incerto
das revoltas árabes. Os altos custos humanos, econômicos e sociais do conflito relacionam-se cada
vez mais à luta estratégica travada entre as grandes potências e os poderes regionais sobre o futuro
do país. Historicamente, nos momentos em que a Síria encontra-se unida e estável, ela representa
um importante ator regional, mas quando esta dividida e instável, como agora, torna-se uma arena
para a luta de forças externas, muito embora a revolta tenha se originado exclusivamente no seio
de sua sociedade.
Ao comparar o regime político da Síria com o de outras repúblicas árabes, é notável suas diferentes
características: uma política externa mais congruente com a opinião pública (de forma retórica ou
não), forças de segurança mais leais ao governo, uma sociedade civil mais fraca e uma oposição
mais fragmentada. Talvez por isso mesmo a resposta inicial do regime frente às manifestações foi
misturar repressão, ao condenar os manifestantes como parte de uma conspiração estrangeira, com
tentativas tradicionais de apaziguamento e de cooptação.
Para o regime e seus aliados, a sociedade na Síria é imatura e suas tendências sectárias só podem
ser contidas por uma estrutura de poder fortemente centralizada. Nesse sentido, remover Bashar é
permitir a guerra civil e a hegemonia de poderes islâmicos apoiados pela Arábia Saudita e seus
aliados ocidentais. Na verdade, essa estratégia - dividir para reinar - foi herdada do colonialismo,
que já alimentava as fraturas na sociedade com o receio de que pudessem vir a sustentar um novo
sentimento democrático verdadeiramente nacional.
É preciso reconhecer que nem todos os alauitas apóiam o governo. Alguns setores como intelectuais
e camponeses ressentem-se com a forma que sua comunidade tem sido instrumentalizada pelo
regime. Cristãos, que estão geograficamente dispersos, adotam pontos de vista extremamente
diferentes.
Os que estão em Damasco e Alepo, em geral, apóiam o governo, mas em muitas outras áreas, os
cristãos revelaram simpatia com os manifestantes. Os Ismaelitas, com sede na cidade de Salamiya,
estavam entre os primeiros a aderir à oposição. Também não são todos os sunitas que protestam
contra o governo, como por exemplo as tribos Shawaya no nordeste do pais.
Mais do que uma questão étnica, religiosa ou mesmo geográfica o conflito deve ser visto como um    “Revoluções no Mundo Árabe e Islâmico: Regimes Políticos, Síria e Irã - 2012
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fenômeno de mudanças da base social do poder do governo Bashar.
O golpe que levou ao poder uma nova elite composta por oficiais militares foi moldado por suas
origens rurais nas lutas sociais dos nacionalistas da década de 1960, resultando numa simbiose
entre o partido Baath e as forças armadas (da seita alauita). Isso sempre provocou ressentimento
entre a maioria da comunidade sunita, mais especificamente, nos setores comerciais urbanos
representados pela Irmandade Muçulmana. As rebeliões urbanas, incluindo a insurreição que abalou
as cidades do norte no início dos anos 1980 é um reflexo disso. Depois desse episódio, proliferaram
as agências de inteligência para proteger o regime, os quais se mantinham leais por meio da
tolerância de suas práticas corruptas. Hafez al-Assad usou e abusou de uma política externa
nacionalista (árabe), como um Estado de linha de frente com Israel, para obter ajuda dos paises do
Golfo Pérsico e da União Soviética.
Mas com o fim da Guerra fria a ajuda externa diminuiu consideravelmente, provocando fortes
impactos na base fiscal do Estado e fazendo com que suas vulnerabilidades econômicas viessem à
tona, apesar das receitas provenientes das reservas de petróleo que também diminuíram no final da
década de 90. A legitimidade política derivada do "contrato social" pelo qual o regime proporcionava
alimentos subsidiados e emprego para as classes média e baixa entrou em crise, dando inicio a uma
política de austeridade com o congelamento dos benefícios sociais e redução do poder aquisitivo dos
funcionários públicos. Os gastos do governo caíram de forma pronunciada (de 50% para 25% do
PIB). Nesse contexto o regime pode manter um equilíbrio precário entre os seus antigos aliados e
recém-emergentes burgueses apelando, para a necessidade de um novo consenso
Buscando consolidar o poder dentro do regime que herdou de seu pai, Bashar viu enfraquecida a sua
capacidade de sustentar seu poder sobre a nova base de apoio social. Ao mesmo tempo a
legitimidade nacionalista de política externa já não era capaz de se conciliar com a identidade
nacionalista árabe, no conflito com Israel, com a integração da Síria na economia mundial. Mas
quando o regime parecia mais vulnerável e isolado, Bashar deslocou o comércio exterior da Síria
para China, Irã, Turquia e países do golfo. Em 2005, a Síria aparecia como o quarto maior país
beneficiário do investimento árabe. O investimento estrangeiro direto passou de US$ 111 milhões
em 2001 para US$1,6 bilhão em 2006.
Essas ações proporcionaram alivio econômico para as contas do governo, mas resultaram em uma
mudança significativa da base social de sustentação do regime que passou a transferir suas
responsabilidades de proteção social e de criação de empregos para instituições privadas,
respondendo à demanda da nova elite. As terras do Estado foram vendidas para os novos
investidores, o que resultou na elevação do custo da moradia e, consequentemente, no crescimento
de bairros pobres em torno das cidades.
Não por acaso nas principais cidades, Damasco e Aleppo, onde o boom de investimentos, o aumento
do turismo e do novo consumo se concentraram, o governo foi capaz de mobilizar demonstrações de
apoio importantes, embora tenha ocorrido revoltas em seus arredores. A classe média dessas
cidades via inicialmente Bashar como o protetor da ordem, preferindo a estabilidade aos riscos de
democratização que pudesse trazer a guerra civil e a perda de seu estilo de vida moderno. Mas, a
partir do momento que o regime mostrou sua incapacidade de manter a segurança, passou a criar
desconfiança entre alguns de seus aliados.
Dificilmente o regime irá sobreviver a esta crise, que pode assumir novos e perigosos contornos. Os    “Revoluções no Mundo Árabe e Islâmico: Regimes Políticos, Síria e Irã - 2012
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manifestantes, cada vez mais desesperados, devido a brutal repressão, se submetem a qualquer
tipo de ajuda exterior sem pesar o custo de certas alianças políticas que poderá desfigurar aquilo
que apareceu como a maior ameaça ao governo: amplo movimento democrático autônomo exigindo
profundas mudanças políticas e econômicas. Entretanto, ao tratar todo e qualquer manifestante
como inimigo, Bashar forjou contra si mesmo uma coligação (interna e externa) muito grande.
Apesar de o regime de Bashar revelar sinais de esgotamento a economia do país não vai entrar em
colapso no curto prazo. A Síria não esta completamente isolada e continua o comércio com Iraque,
Jordânia, Irã, Rússia e China. Alguns bancos do Líbano são susceptíveis de agir como um paraíso
para o dinheiro sírio. Quase todos os clássicos ingredientes para ocorrer uma revolução podem ser
notados na Síria: crescimento demográfico, mobilização social, estagnação do desenvolvimento
econômico, déficit fiscal crônico, aumento da desigualdade social e repressão política. Falta,
entretanto, outro elemento necessário que abreviaria o final do regime: divisão das forças armadas.
Muito embora não se possa prever se, e quando, o regime de Bashr vai cair e muito menos quem
serão os vencedores, cito aqui o velho ditado lembrado pelo prof Hamid Dabashi, que a partir de
agora deverá ser válido para a Síria: você pode conquistar uma terra a cavalo, mas você deve
descer para governá-la. Ou seja, quando os “novos conquistadores” tomarem o poder estarão de
frente para uma nação que dificilmente será ludibriada ou amedrontada.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC (SP) e do Programa de Pós-Graduação San Tiago
Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)

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