sábado, 1 de setembro de 2012

Euro: sem lições do passado, não há futuro que aguente


DEBATE ABERTO

Euro: sem lições do passado, não há futuro que aguente

Uma das lições do final do século XX foi a crise das dívidas dos países latino-americanos. O remédio então posto em prática foi apenas um balão de ensaio, perto do que está sendo feito agora com a crise européia. Até porque o alcance do desastre latino-americano foi menor, em comparação com o sismo mundial que a Europa em recessão está provocando.

As lições do passado são muitas e enormes. Mas a capacidade – voluntária ou involuntária – de esquecimento é maior ainda. Assim parece rolar a crise do euro: de esquecimento em esquecimento. Em nome do combate à inflação, devido à fantasmagoria cara ao senso comum de que foi o descontrole monetário da República de Weimar que levou à formação e crescimento dos nazistas, joga-se para debaixo do tapete a lembrança de que a ascensão meteórica de Hitler se deu em meio a embates ideológicos gigantescos, em que o establishment alemão preferiu estender a mão à direita para amputar a esquerda. E que foram as políticas de “austeridade” e cortes de direitos de Heinrich Brünning e Franz von Pappen que ajudaram a empurrar a classe média ameaçada, o que restava do proletariado reprimido e o exército de desempregados deprimidos para os braços da aventura nazista de “reerguimento” da Alemanha.

São lições do passado distante. Mas as há mais recentes. Igualmente votadas ao esquecimento. 

Uma das grandes lições do final do século XX foi a crise das dívidas dos países latino-americanos, a começar pela do México, há exatos trinta anos.
O remédio então posto em prática foi apenas um balão de ensaio, perto do que está sendo feito agora com a crise européia. Até porque o alcance do desastre latino-americano de então foi menor, em comparação com o sismo mundial que a Europa em recessão está provocando.

Se o remédio foi um balão de ensaio do ora presente, conceitualmente ele foi o mesmo. Partiu, diante da falência dos estados, da necessidade de salvar o sistema financeiro e de impor condições duríssimas aos países endividados. O argumento foi o mesmo: “dar uma lição” aos endividados, “mostrar-lhes o caminho” da austeridade bem-aventurada, encolher os estados, os “gastos públicos”, etc. 

Emprestou-se dinheiro aos estados para que estes pudessem pagar os bancos. O que entrava por uma porta saía pela outra. Tolheu-se a economia, em nome de tolher-se a inflação. Resultado: dez anos depois, a economia latino-americana encolhera em 8%. A dívida mexicana, como o país foi à falência e à inanição, quintuplicara ao invés de diminuir. Houve moratórias, como no caso brasileiro. 

Em compensação, os bancos nadavam de braçada. Ao invés de apertar as condições de operação, estas foram cada vez mais liberadas de peias e controles, a começar pela política de Clinton, nos Estados Unidos. A praga financeira se espalhou pelo mundo, arrastou o sul da África e o sudeste da Ásia. As receitas ortodoxas do FMI, correndo atrás dos prejuízos, só os faziam aumentar, quebrando países e comprometendo possibilidades de recuperação.

O sistema bancário-financeiro que emergiu dessas crises tornou-se mais concentrado, mais poderoso, e seus agentes mais arrogantes do que eram. Executivos dessas áreas enriqueceram da noite para o dia, formando uma nova casta de privilegiados que passaram a se olhar nos próprios espelhos para admirar a “beleza” de sua “independência” em relação à política e políticos. A democracia, na verdade, passou a ser vista como um entrave à “qualidade técnica das decisões”.

Os efeitos das políticas preconizadas por esses novos madarins das economias, dos bancos centrais e das demais agências do setor foram potenciados. Se no passado as economias latino-americanas tinham levado dez anos para encolherem 8%, agora conseguiu-se o “milagre” de comprimir a grega a ser 20% menor do que era em apenas três anos, um feito digno de Golias perto dos meros Davis de trinta anos atrás. 

Os escândalos se sucedem e se multiplicam, desde os da manipulação da Libor aos dos ganhos indecentes dos executivos que provocam e depois administram as crises – ganhos progressivos, como na Espanha, enquanto os governos diminuem salários e pensões dos trabalhadores a cacetadas e bombas de gás lacrimogênio nas ruas. Contra-exemplos, como os da América Latina de hoje, são olhados com suspeita, com o rabo dos olhos e uma torcida generalizada para que “não dêem certo”.

A mídia, em grande parte, se mostra impotente, por leniência ou falta de imaginação. Uma grande parte dos artigos defende, or exemplo, a queda nos salários, porque isso tornaria as economias dos países que assim procedem “mais competitivas” no mercado internacional. Idem, a compressão orçamentária que oprime a educação, a saúde, as aposentadorias e as pensões, porque isso torna as letras desses países “mais atraentes” para os investidores o que, por sua vez, baixaria automaticamente os juros e yields que devem ser pagos nas suas negociações.

Nada disso funciona, na realidade. A compressão salarial e a queda nos investimentos públicos só vem reduzindo o tamanho das economias e diminuindo as arrecadações de impostos – também porque os mais ricos fogem cada vez mais em direção a paraísos fiscais – não mais no distante e supeito Caribe,ou nos enigmáticos bancos suíços, mas nos próximos e respeitáveis Reino Unido e Luxemburgo, por exemplo.

Não importa. Essa música toda não vai mudar, enquanto o pensamento hegemônico sobre economia continuar sendo o que vê o mundo através de modelos habilmente construídos em laboratórios – as faculdades de economia e administração com suas pós-graduações. Nesses laboratórios, na verdade, se aprende que o ideal para a “autonomia das decisões técnicas” é fazer uma assepsia de tudo o que pode atrapalhá-la: o povo, a democracia e as lições da história.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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