quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Em ‘Direito, Constituição e Transição Democrática no Brasil’, Tarso critica submissão do direito ao mercado


Em ‘Direito, Constituição e Transição Democrática no Brasil’, Tarso critica submissão do direito ao mercado

É traço importante do livro do governador do Rio Grande do Sul a crítica contundente a uma nova ordem global, de submissão negativa do direito aos interesses do mercado. Num contexto, assim, de força normativa cada vez mais débil das constituições e de abandono da efetividade dos direitos humanos, busca-se na centralidade dos direitos fundamentais um alicerce capaz de recuperar a dignidade do Direito. A análise é de Jorge Mauricio Klanovicz

“A raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço conhece uma única grande coisa”. Em seu célebre O ouriço e a raposa: um ensaio sobre a visão da história em Tolstói, Isaiah Berlin toma de empréstimo o verso do poeta grego Arquíloco, propondo, a partir dele, um critério para classificar pensadores. Os ouriços articulam tudo numa visão unitária e coerente, que serve como um elemento organizador do pensamento. As raposas, por sua vez, têm interesse por várias coisas e perseguem fins muitas vezes sem relação entre si, adotando, assim, uma visão mais pluralista e heterodoxa. Hegel e Marx seriam ouriços; Max Weber, raposa. 

Em Direito, Constituição e Transição Democrática no Brasil (Editora Francis, 2010, 214 p.), é possível afirmar que o autor, Tarso Genro, foi ambos: raposa e ouriço. Foi raposa na medida em que o livro perpassa temas diversos, abordados numa perspectiva de esquerda, mas livre da ortodoxia do “marxismo vulgar”. E foi ouriço porque, apesar de ser o livro um conjunto de textos em princípio independentes, todos eles fluem a partir de algumas categorias e conceitos, que organizam o ideário do autor. 

O livro é, eminentemente, um ensaio de Filosofia do Direito. Mas não é simplesmente isso. O perfil do autor não o permitiria, pois não se trata meramente de um jurista com inquietações filosóficas. A obra é também um ensaio de Ciência Política, marcado pela afirmação da “potência constitutiva da política no âmbito do Direito”. 

É traço importante da obra a crítica contundente a uma nova ordem global, de submissão negativa do direito aos interesses do mercado. Num contexto, assim, de força normativa cada vez mais débil das constituições e de abandono da efetividade dos direitos humanos, busca-se na centralidade dos direitos fundamentais um alicerce capaz de recuperar a dignidade do Direito. 

Ante a negligência total dos direitos fundamentais durante a experiência nazista na Alemanha, Hannah Arendt trabalhou com o conceito de “ruptura”, que, como bem aponta Lafer, “se traduz num hiato entre o passado e o futuro, gerado pelo esfacelamento dos padrões e das categorias que compõem o repertório da tradição ocidental”. Trata-se de tamanho desconcerto epistemológico que a “lógica do razoável”, que norteia o pensamento moderno, não é capaz de dar conta da falta de razoabilidade da experiência totalitária. Essa “ruptura” impôs a reconfiguração do papel atribuído aos direitos fundamentais. Como meros “direitos subjetivos”, os direitos fundamentais seriam incapazes de conter o totalitarismo. A eles passa a se colocar, então, a necessidade de, além de “direitos subjetivos”, operarem como “valores objetivos”, que permeiam todo o sistema. 

Tarso Genro identifica, porém, que a questão democrática, hoje, passa a informar o Direito “não mais como vítima de ditaduras fundamentalistas supostamente de classe (stalinismo), do espírito nacional (fascismo) ou como alvo da razão racial (nazismo)”. A questão democrática está hoje acossada por questões que servem aos interesses do neoliberalismo. 

Esse cenário impõe uma nova espécie de crise ao ideal de não instrumentalização do ser humano proposto por Kant, crise esta diferente daquela que remonta às experiências totalitárias. A crise atual é gestada a partir de uma hegemonia de novo tipo dos valores utilitaristas. Essa nova ordem torna o Direito contemporâneo anacrônico, exigindo novas flexões teórico-doutrinárias capazes de tornar efetivos os direitos fundamentais. 

Também é marca do ensaio a crítica à interpretação dada às normas da anistia no Brasil, em decisões que o autor bem caracteriza como “de predominante regressismo conservador e de escassa superação democrática”. Tarso Genro aponta que, no caso brasileiro, houve, segundo uma “ideologia do perdão invertida”, a adesão forçada a um padrão de esquecimento que só beneficia os agentes da repressão da ditadura militar. Daí a importância da luta pela implementação de uma Justiça de Transição, o que é uma luta pela radicalização e aperfeiçoamento da própria democracia. 

Por fim, integra o livro o teor da decisão proferida por Tarso Genro naquele que acabou se tornando um dos casos de maior notoriedade em sua passagem pelo Ministério da Justiça: a concessão de refúgio a Cesare Battisti. Trata-se de decisão corajosa, que recusou o conforto da opinião reproduzida pelo senso comum constituído e que - amparada em estudo que indica que Battisti foi condenado em processo repleto de erros, decorrentes da situação de instabilidade política vivida pela Itália à época – guarda caráter radicalmente humanitário. 

Em Direito, Constituição e Transição Democrática no Brasil, enfim, Tarso Genro, acompanhado de Kant, Marx, Bobbio e Ferrajoli, entre outros amigos ilustres, instiga a pensarmos grandes temas do Direito e da Política na contemporaneidade. E não o faz de modo convencional, como um “filósofo de gabinete”, mas sim como intelectual ciente da complexidade do mundo em que vive e como político engajado para mudá-lo. 

* Jorge Mauricio Klanovicz é analista judiciário do Tribunal Regional Federal da 4a Região e especialista em Direito Constitucional. 

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