quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Políticas públicas no capitalismo contemporâneo: alcances e limites


Políticas públicas no capitalismo contemporâneo: alcances e limites

Após analisar as armadilhas do chamado “ciclo das políticas públicas”, introduzo um novo elemento à mesma discussão neste segundo artigo: o modelo de acumulação capitalista contemporâneo, intitulado “flexível” por justamente flexibilizar todos os fatores produtivos.

Conforme escrevi em artigo publicado neste portal em 24/12/2012, intitulado “Políticas públicas: armadilhas às reformas sociais profundas”, a expressão “políticas públicas” tornou-se, nos últimos anos, em diversos fóruns, sinônimo de suposta “unanimidade”, uma vez que objetivaria o “bem comum”. Naquele artigo procurei chamar a atenção para as armadilhas que se escondem no chamado “ciclo das políticas públicas” (agenda, formulação, implementação, monitoramento e avaliação) tendo em vista o caráter conflitivo dos interesses em disputa e os vetos, por meios distintos, advindos dos grupos sociais que se sentem prejudicados.

Pois bem, este segundo artigo pretende aprofundar esta análise com a introdução de um elemento crucial, mas pouco discutido pelo pensamento dominante em políticas públicas: o modelo de acumulação capitalista contemporâneo, intitulado “flexível” por justamente flexibilizar todos os fatores produtivos. Panoramicamente, algumas características exemplificam essa definição: complexa e perversa combinação entre capital financeiro e o produtivo; inédito controle do Capital sobre: a) a circulação (consumo), por meio do estabelecimento de nichos de produção e consumo, da eliminação de estoques (just in time) e do incrível aprofundamento da obsolescência programada, entre outras estratégias; e b) sobre o trabalhador, pela via da diminuição maciça da força de trabalho para a extração agrícola, para a manufatura de produtos e para a prestação de serviços. Em outras palavras, no capitalismo contemporâneo, vigente fortemente desde os anos 1980, produz-se cada vez mais (bens e serviços) com cada vez menos pessoas: daí o clássico tema, não superado, do “desemprego estrutural tecnológico” e da precarização do “trabalho”, substituído fortemente por “ocupações” informais. Mesmo nos setores tipicamente ocupados pelas classes médias superiores, caso da Administração de Empresas, a taxa de rotatividade é incrivelmente alta, levando seus profissionais a se tornarem “consultores”, por conta própria, de uma infinidade de atividades, muitas das quais questionáveis quanto à sua utilidade social. No Brasil, a CLT vem sendo corroída ano a ano pela chamada “pejotização” da mão de obra, uma vez que vastos segmentos de trabalhadores são obrigados a se constituir em Pessoas Jurídicas (PJ) como forma de vender sua força de trabalho, o que implica estar alijado de qualquer direito trabalhista. A “pejotização” é mais uma demonstração da preponderância, no Brasil, da organização do trabalho pelo Capital, porém de maneira sorrateira na medida em que não derrogou “formalmente” a CLT – o fez pelas bordas.

Embora o modelo de acumulação não se constitua de forma exatamente igual em todos os países e regiões, por motivos que vão desde sua histórica inserção produtiva às reações dos trabalhadores, entre tantas outras variáveis, trata-se de um vetor cujas exemplificações acima são apenas uma amostra.

As políticas públicas seriam, nesse cenário, um antídoto eficaz por justamente mobilizar as forças estatais no sentido de impedir a “barbárie do Capital”.

Pois bem, sem negar de forma alguma que vontade política, mobilização social, investimento público (orçamentário, de pessoal, legal e logístico) e regulação estatal – elementos constitutivos das políticas públicas – são fundamentais à reversão de situações de desigualdade, ao contrário, deve-se contudo indagar a respeito dos limites quanto a seus efeitos.

Vejamos o caso emblemático da contradição entre obsolescência programada – um dos elementos nucleares da acumulação flexível do Capital – e políticas públicas ambientais, cada vez mais cruciais à preservação do planeta. O Capital tem ampla liberdade, no capitalismo, para organizar a acumulação: a substituição da durabilidade dos produtos por sua obsolescência, programada e gerenciada cientificamente, embora não seja novidade na história capitalista jamais encontrou ambiente tão fértil como nos anos 1970 e 1980 (vigência ideológica do neoliberalismo), quando esse processo, que perdura até os dias de hoje, chegou ao seu ápice. O exemplo dos aparelhos tecnológicos, tais como os referentes à informática e aos celulares, é marcante, pois constituídos de substâncias altamente poluidoras e cuja vida útil tem como regra a fugacidade. A quebra datada de boa parte desses aparelhos em um ou dois anos expõe os claros limites do Estado perante o Capital em perspectiva internacional. Qualquer tentativa de interferência do Estado e de organizações internacionais, como a OIT e outras (e menos ainda dos sindicatos) no processo produtivo empresarial no que tange aos princípios basilares da produção contemporânea é prontamente rechaçado como “intervenção espúria”. Mais ainda, o aparato jurídico é francamente protetor do “empreendedorismo” schumpeteriano, da “inovação”, da “propriedade” e da “iniciativa individual” – marcos do discurso ideológico contemporâneo –, contrariando a perspectiva do “interesse coletivo” em preservar as bases mínimas da solidariedade e da preservação ambiental. Nesse sentido, o Estado é limitado estruturalmente, como nos mostra Claus Offe, ao observar os condicionantes da produção capitalista. Não foi diferente na era fordista/keynesiana, embora o vetor político/econômico (constituição de sociedades de produção e consumo de massa) e o contexto ideológico (disputas entre liberalismo derrotado, nazi/fascismo, socialismo e social democracia) fossem quase que opostos. No Brasil, embora a agenda dos direitos se confundisse com a revolução industrial (anos 1940 em diante), o processo foi semelhante, guardadas suas muitas particularidades. 

Pois bem, a contradição entre a predominância de produtos, os mais diversos (não é diferente no caso do automóvel), marcados para definhar, e a necessidade que o planeta, notadamente a biosfera, tem de se recuperar da incessante prospecção de recursos naturais, demonstra os claros limites das políticas públicas. Observe-se que a agenda ambiental é fortemente travada, em escala global, justamente pelo fato de os interesses do Capital, por vezes imiscuídos aos dos Estados Nacionais, se sobreporem aos das pessoas e das comunidades, mesmo quando a comunidade é o planeta. O filme/denúncia “The Corporation” talvez seja uma das expressões mais bem acabadas desse processo. 

Outro exemplo marcante refere-se ao trabalho, uma vez que não apenas o número de pessoas “necessárias” à reprodução do Capital é cada vez menor como, dependendo do setor que se observe, o próprio número de consumidores pode ser diminuto. Tal como demonstrado por autores como David Harvey, Jeremy Rifkin e outros, o Capital Global necessita de poucos trabalhadores (daí a emergência de empresas que não fabricam nada, apenas articulam contraditoriamente o processo produtivo em escala global e dão a ele uma marca) e de poucos consumidores que, contudo, tenham um padrão de renda e de consumo extremamente fugaz. Tal fugacidade – fortemente apoiada nas modernas técnicas de propaganda e de indução ideológica ao consumo, ancoradas no sistema midiático – faz da rotatividade do consumo o motor da exclusão social do trabalho e da barbárie ambiental. A “corrosão do caráter”, com toda sorte de consequências individuais e sociais deletérias, como nos mostroou Richard Sennet, é o resultado mais notório dessa psicose coletiva envolvida nesse processo.

É claro que cada país, pela estrutura e inserção histórica de suas economias, pela sua trajetória, instituições e capacidade de mobilização social refaz, de formas distintas, esse processo estrutural e internacional. Mas os eixos estruturantes estão colocados, limitando fortemente as alternativas.

Mesmo no Brasil, que desde os Governos Lula e agora com o Governo Dilma vem ostentando índices impressionantes de empregabilidade formal, esse processo não é diferente. Se é correto defender as políticas macroeconômicas do segundo Governo Lula e do Governo Dilma (pós neoliberalismo da gestão Palocci), responsáveis pela elevação real do salário mínimo, pela ampliação inédita do crédito, pelo consumo interno e pela transferência de renda, no contexto de universalização de políticas sociais, deve-se ter clareza quanto aos limites dessas políticas. Nesse sentido, se a questão do emprego com carteira assinada é marcante, uma vez que as quebras de recordes em contratações são louváveis e inéditas, por outro lado muito dificilmente conseguirão superar o altíssimo grau de informalidade da economia brasileira; são baseados em baixos salários e baixa qualificação; e só ocorrem pela combinação entre vontade política em diminuir a exclusão e a desigualdade – móvel da política pública – com um estoque de empregos historicamente muito baixo.

Esses dois exemplos, entre tantos outros, exteriorizam limites concretos da ação do Estado perante a atuação do Capital, pois este define os parâmetros da produção e da circulação, e cada vez mais da organização do trabalho – o que é extremamente perigoso e deletério –, uma vez que atuam no núcleo da reprodução do Capital.

Essa constatação não significa diminuir o papel das políticas públicas nem em termos conceituais nem empíricos, haja vista as transformações que estão em curso desde o Governo Lula aos dias de hoje. Significa analisar seus alcances e limites com vistas à compreensão do que cabe às políticas públicas estatais e o que cabe à luta política da sociedade politicamente organizada. 

Nesse sentido, a chamada “radicalização da democracia”, que responde pela ampliação crescente dos espaços de participação e deliberação nas arenas decisórias, institucionais e sociais; a tradutibilidade das linguagens oficiais herméticas, a começar pelo orçamento; o aprofundamento da transparência decisória; a revisão do oligopólio da mídia; entre tantas outras reformas que urgem no país, parece ser um caminho possível de revisão de prioridades do Estado: em sua forma e em seu conteúdo (neste caso, as políticas públicas).

Mas, para mudar a realidade, como sabemos desde Maquiavel, há de ser realista!

Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

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