domingo, 17 de fevereiro de 2013

Porto Alegre resiste às moto-serras



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Quase quatro décadas após gesto pioneiro, manifestantes voltam a subir em árvores, para que “desenvolvimento” não signifique alienação e aridez
Por Elenita Malta Pereira
As árvores de Porto Alegre andam tristes. Com o aumento da frota de automóveis e a obtenção de verbas federais, associada à Copa do Mundo de 2014, a prefeitura iniciou uma série de obras viárias: construção de passagens subterrâneas, duplicação e ampliação de avenidas. Por isso, centenas de árvores estão marcadas para morrer, em diferentes bairros. Algumas já começaram a ser cortadas, o que vem gerando intensos protestos de ecologistas, moradores e amantes das árvores em geral.
Na Praça Júlio Mesquita, em frente à Usina do Gasômetro, catorze tipuanas (Tipuana Tipu) sangraram pela ação de moto-serras de funcionários da Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov). O corte, que ocorreu sem qualquer aviso ou consulta popular, surpreendeu os moradores e quem passava pelo local na manhã de quarta-feira (06/02/2013). A justificativa da administração municipal foi que as árvores precisavam ser removidas para a duplicação da Avenida Edvaldo Pereira Paiva, uma das obras em andamento para a Copa do Mundo. Segundo a prefeitura, essas obras contribuirão para o desenvolvimento de Porto Alegre.
A operação teve licença ambiental liberada pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam) e prevê compensação através do plantio de 400 novas mudas em outros pontos da cidade. Segundo a prefeitura, após a conclusão das obras viárias, será desenvolvido um projeto de arborização para a Edvaldo Pereira Paiva e toda a orla do Rio Guaíba será remodelada.
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Subir nas árvores, ontem e hoje
118 árvores foram marcadas previamente para o corte com a letra “C”, porém, quando os funcionários cortavam a 14ª tipuana, por volta de 11h30 da manhã, ocorreu algo não planejado pela administração municipal: jovens subiram nas árvores para impedir a derrubada. E conseguiram, pelo menos temporariamente.
Nem os cortes de árvores, para abrir espaço a obras viárias, nem subir nas plantaspara impedi-los, são novidades em Porto Alegre. Essa mesma estratégia foi utilizada, há 38 anos, por Carlos Alberto Dayrell, para evitar o corte de (também) tipuanas, que estariam atrapalhando a construção de um viaduto, na Avenida João Pessoa, no centro da cidade. Em 25/02/1975, cerca de 10h da manhã, a caminho de fazer sua matrícula na Escola de Engenharia da UFRGS, Dayrell percebeu que algumas pessoas apenas observavam o corte das árvores. Indignado, resolveu subir na 7ª tipuana a ser derrubada. Ele era sócio da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, fundada em 1971). Em uma das reuniões da entidade, o ecologista José Lutzenberger conclamara os jovens a subirem nas árvores para defendê-las. Quando viu a derrubada, Dayrell não teve dúvidas: aproveitou a própria escada da Smov (utilizada para cortar os galhos) para subir na tipuana. O episódio teve repercussão nacional e deu visibilidade às causas ecológicas defendidas pela Agapan e por Lutzenberger.
Declarações infelizes
O interessante é que a condução de obras de mobilidade urbana não mudou muito em Porto Alegre, apesar dos dois episódios terem ocorrido em contextos bem distintos. Em ambos os casos, a população não foi consultada ou, pelo menos, avisada do corte das árvores. Embora tenham passado quase 40 anos daquele tempo, quando vivíamos uma ditadura militar, a filosofia que rege a administração municipal – e também a federal – permanece a mesma: a primazia do desenvolvimento econômico sobre a preservação da natureza. Os projetos não preveem nem tentam contornar a presença de árvores – plantadas há décadas – que fazem parte do cotidiano dos moradores da cidade.
Para piorar a situação, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, emitiu notas na imprensa gaúcha que acirraram ainda mais os ânimos dos movimentos sociais contra a atitude da prefeitura. Fortunati disse que “as pessoas não utilizam estas árvores no Gasômetro”, e que a o alargamento da avenida é necessário, porque “existe um gargalo no trânsito e o monóxido de carbono liberado no ar diariamente é muito grande”.
Essas declarações foram, no mínimo, contraditórias. Se o fluxo de veículos no local é intenso e libera alta concentração de gases poluentes, as árvores do Gasômetro são extremamente úteis. A afirmação de que não eram utilizadas gerou inúmeros comentários irônicos, charges e foto-montagens no Facebook. Centenas de pessoas manifestaram-se, indignadas com o que seria a “falta de uso”. Afinal moradores e turistas costumam frequentar o local em seus momentos de lazer. Muitas famílias e grupos de amigos tomam chimarrão, fazem piquenique e até churrasco, ou simplesmente ficam na sombra das tipuanas. Além disso, todos por ali respiravam o oxigênio produzido por aquelas árvores.
Por uma copa com copas
Movimentos sociais de diversas ONGs, coletivos e simpatizantes de causas ambientais organizaram, através das redes sociais, um manifesto para o dia seguinte ao dos cortes (07/02/2013), na frente da Usina do Gasômetro. Convocadas às pressas, cerca de 500 pessoas compareceram ao evento. O sentimento geral era de indignação e revolta, tanto pelo que consideravam crime ambiental, quanto pelas declarações do prefeito.
Para mostrar que a população utilizava as árvores, jovens e crianças realizaram acrobacias, pendurando-se em faixas de tecido amarradas numa velha tipuana que escapou da moto-serra.
Quando já havia um bom público no local, por volta das 18h30, os manifestantes começaram a colocar galhos e troncos das árvores cortadas no meio da avenida. Interrompendo o trânsito (a mobilidade urbana, que foi a causa da derrubada), queriam garantir visibilidade ao protesto, e também sensibilizar a população para a necessidade de preservar as árvores locais.
A rua ficou tomada pelos galhos das árvores e pelos manifestantes, que portavam banners relacionando a Copa do Mundo com o corte das copas das árvores.
Muitas pessoas comentaram, durante o manifesto, que um evento tão breve como a Copa do Mundo (em Porto Alegre, serão apenas quatro jogos) não poderia justificar a derrubada de árvores que deviam ter cerca de 50 anos. Moradores locais acreditam que as tipuanas tenham sido plantadas nas décadas de 1960-70 e que, mesmo sendo exóticas, tornavam a paisagem bela e agradável. Para essas pessoas, as árvores eram muito úteis.
Outro ponto comentado foi o plantio para compensar os cortes. Mesmo que o número de mudas (400) seja bem maior do que as árvores que a serem derrubadas (115), quem irá fiscalizar o crescimento e o regadio? Além disso, as mudas levarão décadas para ficar do mesmo tamanho das árvores cortadas, portanto a medida não seria satisfatória em termos de compensação ambiental.
Também chamou a atenção de muitos o fato de as árvores estarem literalmente sangrando. No local do corte, os troncos apresentavam uma espécie de goma ou resina vermelha. A substância vermelha é uma seiva da casca da tipuana, como se fosse um suor do caule. Ao entrar em contato com o ar, a seiva endurece e fica com aparência de uma cera de vela derretida. A visão da seiva endurecida conferiu maior dramaticidade ao protesto. Seres vivos, assim como nós, humanos, as tipuanas também sangram ao serem feridas.
Por volta das 20h, parte dos manifestantes continuou o protesto à frente da prefeitura municipal. Portando galhos das árvores cortadas, tal qual soldados o bosque de Birnam, emMacbeth, eles caminhavam sob o olhar curioso dos moradores do centro, e entoavam o lema da tarde “Queremos árvores!”. Felizmente, não houve confronto com a polícia, como no episódio de 1975, e no caso recente do Tatu-Bola, símbolo da Copa, cujo esvaziamento gerou violência por parte de alguns policiais.
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Árvores, pessoas e desenvolvimento
Devido aos protestos, a prefeitura resolveu suspender temporariamente os cortes. De acordo com o secretário do meio-ambiente, Luiz Fernando Záchia, é quase impossível que sejam suspensos em definitivo. O próprio prefeito reconheceu que houve “problemas de comunicação” no episódio. No entanto, os ambientalistas seguirão lutando pela manutenção das árvores.
Esses acontecimentos em Porto Alegre indicam a necessidade de profundas reflexões. A primeira é sobre o modelo de desenvolvimento vigente no Brasil. A isenção de IPI, que incentivou a compra de milhões de carros em todo o país, aqueceu o consumo interno e beneficiou as grandes montadoras, mas trouxe sérios problemas estruturais às grandes cidades, com a necessidade de obras viárias capazes de suportar o aumento do fluxo. No entanto, para alargar avenidas e construir novos estacionamentos, não têm sido poupados parques, praças e árvores. O brasileiro realizou o sonho de comprar o carro, mas dirigir tornou-se um tormento, em meio a um tráfego que pode congestionar a qualquer horário do dia, não mais só na hora do rush. O motorista está mais estressado e o número de acidentes de trânsito só aumenta, ano a ano. A qualidade do ar piora, pois além de mais veículos, há menos árvores nas ruas. Será que podemos chamar isso de desenvolvimento?
Outra reflexão pertinente é sobre o valor da natureza para os humanos, um tema muito debatido em ética ambiental. Grosso modo, há duas correntes dominantes, uma antropocêntrica e outra biocêntrica. A primeira defende que a natureza só tem valor enquanto recurso, como fonte de riquezas ao homem, e por isso ele teria direito de explorá-la com a tecnociência. A segunda sustenta que a natureza tem valor intrínseco, como suporte para a vida no planeta, e que nenhum dos seres vivos é mais importante que os demais, nem mesmo o homem. Nosso modelo econômico e civilizatório optou pela primeira corrente, por isso a utilização maior da natureza tem sido para produzir capital.
A morte de árvores para dar lugar a automóveis demonstra que Porto Alegre, apesar da atuação do movimento ambientalista há mais de 40 anos, não avançou muito em termos de conscientização ecológica. Enquanto futebol, carros e estacionamentos forem mais importantes do que pessoas, árvores e animais, nossa sociedade não será desenvolvida. É por isso que subir nas árvores e lutar contra seu corte ainda é tão importante. Manifestações como as mencionadas neste artigo, além de lembrar a importância da natureza, são um alento em nosso mundo capitalista, onde todo produto é sinônimo de mercadoria. Infelizmente, para alguns, dinheiro não dá em árvore. Mas se o capitalismo se pretende tão selvagem, deveria começar pela preservação das árvores e dos animais, em nossas selvas de pedra…
Elenita Malta Pereira é doutoranda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para ler seus textos publicados em Outras Palavras, clique aqui.

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