segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Um argentino no coração da Cúria vaticana


Um argentino no coração da Cúria vaticana

Membro do círculo íntimo de João Paulo II, virtual ministro de Bento XVI, Leonardo Sandri figurou inicialmente nas especulações sobre os cardeais com chances de chegar a papa. Suas relações na Argentina com os setores mais conservadores. O que dizem os Vatileaks. O artigo é de Martín Granovsky, do Página/12.

Buenos Aires - Seu amigo o impulsionou logo de saída. “Há grandes possibilidades de que o cardeal Sandri assuma seu lugar”, disse após a renúncia de Bento XVI o ex-embaixador de Carlos Menem no Vaticano, Esteban Caselli. “Sandri foi assessor de assuntos gerais na Secretaria de Estado no Vaticano e foi a voz de João Paulo II quando o Papa já estava mal de saúde”, recordou.

Atual senador pelos italianos que vivem no exterior, subordinado do ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi, apoiado pela Soberana Ordem de Malta, Caselli aparece na Argentina como o principal entusiasta público do cardeal Leonardo Sandri, um dos argentinos a integrar o grupo de 118 cardeais habilitados a eleger o próximo papa ou, em tese, a sê-lo. O outro argentino é o arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio.

Sobre a conveniência ou não de que o papa seja um compatriota há opiniões infinitas. Seria melhor para o futuro da maioria dos argentinos contar com um pontífice nascido aqui? Ou um papa argentino poderia se sentir naturalmente tentado a “ser mais realista do que o rei” em decisões sobre a Argentina, interrompendo o processo social de maior separação entre Igreja e Estado que vive o país? Cada um pode responder como quiser a essas ou outras perguntas. “Se saber não é um direito, certamente será um esquerdo”, diria Silvio Rodríguez. Seja como for, só os cardeais votam e, como explicou muito bem o jornalista Juan Arias, no El País de sexta-feira, nem mesmo eles entram na Capela Sistina com a certeza de quem será papa.

Só votam os que não tiverem completado 80 anos no momento da renúncia do Papa. Não votam todos os membros do Colégio de Cardeais cujo decano é Angelo Sodano, que foi secretário de Estado com João Paulo II, de 1990 a 2005, e com Bento XVI de abril de 2005 a 2006, quando deixou o posto para Tarcisio Bertone. Ainda que o Vaticano seja uma monarquia absoluta e não parlamentar, o secretário de Estado pode ser equiparado a um primeiro ministro.

Sandri foi braço direito do poderoso Sodano na seção de Assuntos Gerais da Secretaria de Estado. A página do Vaticano na internet descreve suas funções: “É atribuição da Seção para os Assuntos Gerais ou Primeira Seção despachar os assuntos concernentes ao serviço cotidiano do Sumo Pontífice, tanto em temas da Igreja universal, como nas relações com os Dicastérios da Cúria Romana”. E acrescenta: “Cuida da redação dos documentos que lhe são confiados pelo Santo Padre. É responsável pelo trâmite dos atos relativos às nomeações da Cúria Romana e custódia do selo papal e do anel do Pescador. Regula a função e a atividade dos representantes da Santa Sé, especialmente em sua relação com as igrejas particulares. Atende aos temas relativos às embaixadas ante a Santa Sé. Exerce a vigilância sobre os organismos oficiais de comunicação da Santa Sé e cuida da publicação da Ata Apostólica da Santa Sé e do Anuário Pontífice”.

Sandri, portanto, não esteve alheio ao dia a dia do papa e da Cúria vaticana e foi encarregado de anunciar a morte de João Paulo II, em 2 de abril de 2005.

Rezar para São José
Cardeal desde 2007, Sandri atualmente também é membro da Comissão Pontifícia para a América Latina e prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais, uma espécie de ministério encarregado do rito católico no Egito, península do Sinai, Eritreia e Etiópia do norte, Albânia meridional, Bulgária, Chipre, Grécia, Irã, Iraque, Líbano, Palestina, Síria, Jordânia e Turquia. Não é um posto qualquer. Ocupar-se do rito implica também, para um cardeal da Cúria vaticana, o acompanhamento detalhado do conflito no Oriente Médio e, eventualmente, a intervenção diplomática. Sandri tem experiência nas relações internacionais porque foi representante do Vaticano no México e na Venezuela e reforçou a legação em Washington como observador na Organização dos Estados Americanos. Um de seus mestres foi Pio Laghi, núncio na Argentina durante a ditadura e depois em Washington.

Entre os bispos argentinos, o inimigo de Sandri é Bergoglio, que é também o inimigo número um do governo desde que o então presidente Néstor Kirchner não o escolheu como interlocutor privilegiado para as decisões de Estado. 

Justo Laguna, bispo de Morón falecido em 2011, contava que depois da morte de João Paulo II, quando seu sucessor estava sendo eleito, Sandri lhe disse: “É melhor rezar para São José para que este não seja papa”. Ele se referia a Bergoglio. É matéria de teólogos decidir se a reza para São José tem um significado especial na tradição da Igreja.

Ambos conservadores, Sandri e Bergoglio não se diferenciam pela doutrina contrária à legalização do abordo ou ao matrimônio igualitário, mas sim pela associação com estruturas distintas da Igreja. No caso de Sandri, seu exercício seu deu diretamente na Cúria vaticana desde 1970, quando ainda não havia completado 30 anos. Ele nasceu em 18 de novembro de 1943. Tem 69 anos e após realizar estudos de Teologia nos quais avançou graças à ajuda econômica de amigos e de sua família foi ordenado sacerdote pelo ultraconservador Juan Carlos Aramburu, em 1967. “Que exemplos. Que presença de Jesus. Aramburu, Pironio, Quarracino e Primatesta são para mim imagens que me dão alento. Levo sempre comigo as fotos deles. Em momentos difíceis, digo: movam-se, queridos cardeais argentinos”, disse em uma entrevista com Tito Garabal, jornalista eclesiástico ligado ao arcebispo de La Plata, Héctor Aguer, em seu programa “Chaves para um mundo melhor”. Antonio Quarracino e Raúl Primatesta encarnaram distintos estilos do conservadorismo na hierarquia católica argentina. Todos eles respaldaram ou foram partícipes ativos na política de santificação do plano criminoso da ditadura.

O integralista Aguer, que busca confundir o âmbito da Igreja com o do Estado, privilegiando princípios religiosos tal como a hierarquia eclesiástica os compreende - em 2010 rivalizou com seu inimigo interno Bergoglio no episódio que este definiu como “guerra de Deus” contra o “casamento igualitário” -, é junto com Sandri outro dos amigos diletos de Caselli.

Ele disse, por exemplo, sobre o aborto, quando a Legislatura portenha discutiu o estatuto da Cidade de Buenos Aires, em 1992: “Os termos procriação responsável e saúde reprodutiva costumam ocultar a intenção ‘anti-nascimento’ e a utilização de meios abortivos para a regulação dos nascimentos”.

Em maio de 1995, dez dias depois da autocrítica do general Martín Balza, então chefe do Estado Maior do Exército, Aguer replicou: “É suspeito que apareça neste momento uma onda de arrependimento, já que a sociedade não tolera uma crítica contínua e uma revisão permanente. (Durante o governo militar) Os pastores da Igreja tiveram que tomar decisões prudenciais e o fizeram com uma clara intenção de realizar o melhor e servir ao povo argentino”. 

Quando os portenhos discutiam sua nova Constituição, Aguer perguntou: “Estaremos assistindo por acaso a uma terceira fundação de Buenos Aires como cidade ateia? Seria penoso um possível retorno à defesa anacrônica do laicismo, no qual a liberdade religiosa era entendida como promoção do agnosticismo e do ateísmo, como beligerância religiosa”.

Quando, em 2002, se legalizou a união civil entre as pessoas, disse: “A lei de união civil atenta contra a ordem natural e os cidadãos não têm por que obedecê-la”.

Em 1995, criticou a fertilização assistida. “Legalizar a reprodução assistida detém o verdadeiro progresso, porque com isso não se resolve a infertilidade”, disse. “O projeto mais próximo à defesa da vida é um apresentado em 1993 por Carlos Ruckauf”.

Em 1992, baseou seu combate contra os métodos anticonceptivos com um argumento peculiar: “Seria lamentável que os organismos do Estado favorecessem direta ou indiretamente os desígnios de um novo ‘imperialismo anticonceptivo’ cujos efeitos seriam diretamente catastróficos para o futuro de uma Argentina soberana”.

Além da doutrina, Aguer e Sandri compartilharam uma relação estreita com a família Trusso.

Um dos Trusso, Francisco, foi o primeiro embaixador de Menem no Vaticano. Em 2003, a Justiça deteve seu filho Francisco Javier pela suposta quebra fraudulenta do Banco de Crédito Provincial de La Plata, que prejudicou a vida de 30 mil clientes. Francisco Javier Trusso estava em situação de fugitivo. Segundo escreveu a jornalista Olga Wornat em seu livro “Nuestra Santa Madre”, Trusso esteve refugiado em uma casa familiar dos Sandri em Miramar.

Quando, em 2003, a juíza Marcela Garmendia teve que colocar Trusso em liberdade, atendendo decisão da Corte Suprema e da Sala III da Câmara Penal de La Plata, pediu a presença de um fiador. Apareceu: foi o próprio Aguer. A juíza lhe disse que ele devia se comprometer a pagar caso Trusso fosse libertado e fugisse. Perguntou a Aguer se ele tinha bens para o eventual pagamento: “Sim, possuo”, respondeu o arcebispo de La Plata.

O grande apoio de Trusso foi, enquanto viveu, outro dos cardeais reverenciados por Sandri, Antonio Quarracino. O sacerdote Roberto Toledo, ex-secretário privado de Quarracino, declarou em 1999 à Justiça que Francisco Trusso, pai de Francisco Javier, “pediu ao cardeal que falasse com Menem para que lhe dessem 300 milhões para poder salvar o banco, observando que se tinham dado dinheiro a Beraja, porque não a ele”. Beraja é Rubén Beraja, então presidente do Banco Mayo e da Delegação de Associações Israelitas da Argentina.

Igual a você
Com perfil mais alto ou com discrição, aos gritos ou entre sussurros e com distinto nível de representação ou incumbências, Aguer, Caselli, Sandri e Sodano foram quatro protagonistas do choque entre o Vaticano e hierarquia da Igreja argentina, por um lado, e o governo de Néstor Kirchner, por outro, no caso de Antonio Baseotto, o capelão que ameaçou o então ministro da Saúde, Ginés González García. Baseotto usou uma citação bíblica como escudo. A frase recomendava atirar o ministro na água com uma pedra amarrada no pescoço. A razão de fundo eram as políticas de distribuição de preservativos por parte do Ministério da Saúde. Ginés estava convencido do acerto de sua estratégia e, mesmo sendo um negociador nato, não cedeu às pressões dos bispos conservadores.

O Vaticano entrou no tema Baseotto por meio da Nunciatura em Buenos Aires porque, em 1992, Menem deu ao vicariato categoria de diocese, com o que passou a depender da autoridade papal.

Com Menem, Caselli foi subsecretário geral da Presidência, subordinado a Eduardo Bauzá, e embaixador na Santa Sé. Com Carlos Ruckauf, ocupou a secretaria geral do governo de Buenos Aires entre 1999 e 2001. Quando Ruckauf foi designado chanceler por Eduardo Duhalde, levou Caselli como secretário de Culto.

Em sintonia com os ultraconservadores, Caselli apoiou, estimulou ou ordenou diretamente, segundo o cargo que tivesse, as concordâncias argentinas com as posições da monarquia vaticana nas votações internacionais. Frequentemente se somavam à vanguarda fundamentalista em questões de vida quotidiana, Arábia Saudita ou Irã.

Caselli é a mesma pessoa que aparece agora nos cartazes de rua como candidato à reeleição para o Senado italiano. Diz que é “igual a você”, mas apoia a direita e a ultradireita de Berlusconi e a Liga Norte, junto com a vedete Iliana Calabró, candidata a deputada. O candidato do Partido Democrático, que postula Luigi Bersani como primeiro ministro, é o ator Gino Renni. Afirmam buscar “uma Itália justa”.

Caselli tem um processo aberto na Justiça italiana desde 2011. O procurador adjunto da promotoria de Roma, Gian Carlo Capaldo, o investiga por suposta fraude com os votos dos italianos da América do Sul nas últimas eleições. Sua candidatura soa à busca de um foro privilegiado. Seu exibicionismo, no que diz respeito às relações com o Vaticano, ainda que sem dúvida verdadeiras, também.

As cartas secretas
Sandri acompanhou todas as políticas do Vaticano sobre a Argentina, mas nos últimos anos, enquanto preservava suas relações de sempre, cuidou de não fechar canais de diálogo nem de manter disputas de forma aberta. No Bicentenário, conseguiu rezar uma missa na embaixada argentina, a cargo de um político como Juan Pablo Cafiero, que é o oposto de Caselli. Em dezembro último foi recebido na Casa Rosada pela Presidenta. Agradeceu a instalação de um presépio no Museu do Bicentenário.

Seu nome figura uma vez no interessante livro do jornalista Gianluigi Nuzzi, “As cartas secretas de Bento XVI”. Algumas das cartas, já conhecidas como parte do Vatileaks, pertencem a Dino Boffo, que escreveu ao papa denunciando uma campanha contra ele da qual chegou a participar nada mais nada menos do que o diretor do órgão oficial da Santa Sé, L’Osservatore Romano, Giovanni María Vian. Boffo é um jornalista com toda sua carreira profissional em imprensa gráfica e televisão ligada aos bispos italianos. Tem uma relação pessoal com cardeais importantes. Segundo Nuzzi, outro jornalista, Massimo Franco, do Corriere dela Sera, interpretou que a campanha e as respostas eram parte de uma guerra interna no Vaticano. Uma guerra que apontava para o exercício do poder no próximo conclave dos cardeais. A análise adquire ainda maior importância porque em 2012, quando o livro foi publicado, Bento XVI obviamente ainda não havia apresentado a sua renúncia.

O livro indica como possível autor do informe contra Boffo o próprio Sandri, com material fornecido pelo serviço de segurança interno do Vaticano. Nuzzi se pergunta: “Supondo que seja verdade, Sandri teria atuado por conta de quem?”.

Pelo vazamento das cartas foi preso e colocado em uma cela isolada dentro da Santa Sé o mordomo do Papa, Paolo Gabriele. Nuzzi não afirma nem desmente que tenha sido ele quem lhe passou o material. Ele se ampara no direito do jornalista a não revelar a identidade de suas fontes. Mas as cartas de cardeais e bispos descrevem uma trama por onde passam os jogos de poder interno dentro da Cúria e as manobras financeiras, muitas vezes materializadas nos negócios do IOR, Instituto para as Obras de Religião, o banco do Vaticano que se tornou célebre quando era presidido pelo arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, que acabou processado pela Justiça italiana, não sendo preso por causa de sua imunidade.

Na sexta-feira 15, uma comissão de cardeais nomeou como presidente do IOR o alemão Ernst von Freyberg, membro, como Caselli, da Soberana Ordem de Malta.

Limpeza depois da gestão de Ettore Gotti Tedeschi, que havia assumido em 2009 e já renunciou? Administração de segredos cultivados em décadas e a ponto de se tornarem públicos por conta dos primeiros vazamentos? Continuidade, mudança ou ambas as coisas ao mesmo tempo? Outro tema aberto e a ser seguido com atenção pelos interessados na nova condução do Estado Pontifício. Ou para os aspirantes a subir degraus, como Sandri. Ou para aqueles que, ocorra o que ocorra, precisam de um escudo para se proteger.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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