Ferida com frequência cada vez maior desde o século 18, a Serra do Mar às vezes perde a paciência e mostra as unhas
José De Souza Martins
José De Souza Martins
A briga entre a Serra do Mar e a engenharia é muito antiga. Quase sempre com perdas de vidas e destruições materiais consideráveis, além dos danos ambientais de reparação demorada e problemática. Há alguns anos, previa-se que o reparo dos danos causados pela construção da Rodovia dos Imigrantes não se faria nem em meio século. Há dessa briga notícias desde o século 18. A engenharia perde em algumas vezes e ganha em outras, com obras admiráveis e conquistas reais no estabelecimento da comunicação entre o litoral e o planalto. Mas a serra também se insurge contra as tentativas de impor-lhe o primado dos interesses humanos às suas notórias limitações. A Serra do Mar, sazonalmente, grita sua fragilidade.
Deslizamento na rodovia dos Imigrantes
Na verdade, a serra é viva. Há quatro décadas, pelo menos, os técnicos têm dito que a ela se move cerca de meio centímetro por ano e está sujeita a movimentações decorrentes de variações de temperatura incidindo sobre a rocha e o solo - além das chuvas frequentes e abundantes que se infiltram em rachaduras produzidas por essas variações, demolindo conformações que foram alteradas pelo homem. O período crítico é o do fim do tempo das águas, em março e abril, quando o solo saturado e a infiltração das águas provocam escorregamentos, como agora.
Dizia o padre José de Anchieta, em 1555, em carta para os jesuítas de Coimbra, sobre o caminho do mar de sua época, "que é caminho mui áspero e creio que é o pior que há em muita parte do mundo, de atoleiros, subidas e matos". Vindo por ele a Piratininga, o irmão Gregório Serrão dormia à noite, na viagem, "com a camisa empapada em água", sem poder fazer fogo para os misteres da travessia. Duzentos anos depois, o historiador beneditino frei Gaspar da Madre de Deus, que por esse caminho transitou várias vezes, ainda o definia como "talvez o pior que tem o mundo". Em 1781, governava a Capitania de São Paulo o tirano Martim Lopes Lobo de Saldanha, que dava notícia de desastres no caminho de São Paulo ao Cubatão de Santos: nele "não se transitava sem que fosse aos ombros dos índios e sempre em evidente perigo de vida, por se passar por uns apertados tão fundos, nascidos da primeira picada que os primeiros habitantes tinham feito, e tão estreita que não cabia mais do que uma pessoa ou animal, ficando muitas vezes abafados debaixo da terra que com as chuvas desabava, e outros, mortos nas profundas covas que com os pés faziam, o que aqui chamam ‘caldeirões’". A notícia não difere muito de outras divulgadas até hoje, mesmo tendo melhorado muito a competência técnica e científica do homem para lidar com os caprichos da Serra do Mar.
A serra tem sido ferida, com frequência cada vez maior, desde o século 18: a Calçada do Lorena, de 1789, que ainda existe; a Estrada da Maioridade, de 1840; a São Paulo Railway, inaugurada em 1867; o Caminho do Mar, um aperfeiçoamento da Maioridade, em 1913, pavimentado em 1923; a Sorocabana, em 1937; a Via Anchieta, cuja primeira pista foi inaugurada em 1947. E, finalmente, a Imigrantes, inaugurada em 1976. Sem contar a Billings, tubulação que leva água à usina hidrelétrica Henry Borden, em Cubatão, e os trilhos que a acompanham. Uma viagem de Santos ao Planalto de Piratininga, que no século 16 tomava penosos dias, com a Calçada do Lorena reduziu-se a dois dias, com a ferrovia caiu para pouco mais de duas horas e com a Imigrantes para cerca de uma hora.
É evidente que a travessia da serra trouxe vantagens econômicas ao Estado de São Paulo: viabilizou o desenvolvimento da agricultura de exportação, a de açúcar primeiro e a de café depois, viabilizou a industrialização e desdobrou-se em imensos benefícios sociais, criando na região as bases da sociedade moderna. Mas seus efeitos colaterais não têm sido avaliados com o mesmo rigor técnico das obras em si. Em especial, na construção da Imigrantes, várias objeções técnicas foram feitas em relação a opções problemáticas, como a de sobrecarregar o mesmo maciço da Anchieta, ou o impacto das estradas de serviço na vulnerabilidade da serra e a invasão de áreas pela população residual e descartada das obras e a consequente favelização da encosta. Uma combinação perversa de lucrativos propósitos econômicos, ótimos projetos de engenharia, péssimas avaliações ambientais, injustificáveis omissões sociais. O absolutismo das diferentes áreas de conhecimento, a falta de diálogo entre as ciências, o que já não se justifica no estado atual do conhecimento científico, a prevalência do econômico sobre o ambiental e o social, tudo converge para propiciar a ocorrência dos desastres que nos dizem que a certeza do monumental e o fascínio do belo não são suficientes para ditar obras na Serra do Mar.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A APARIÇÃO DO DEMÔNIO NA FÁBRICA
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