quinta-feira, 24 de abril de 2014

Escola pública perde alunos com alta da renda no país


Por Luciano Máximo | De São Paulo
Leonardo Rodrigues/Valor / Leonardo Rodrigues/Valor
A mãe Deneide Boaventura acha que o comportamento da filha Ludmila melhorou com a mudança da escola pública para a particular: "Mas pode melhorar mais"
Não é só o carro zero, a televisão de tela plana ou o supertelefone celular. A dinâmica do modelo econômico brasileiro, baseada na ascensão de famílias pobres à chamada classe média e sustentada pelo consumo, também vale quando o "produto" da vez é a educação.
Nos últimos cinco anos, as escolas públicas do país, da creche ao ensino médio, perderam 3,8 milhões de alunos. Já os colégios particulares registraram 1,5 milhão de novas matrículas entre 2009 e 2013. Há cinco anos, eram 52,5 milhões de estudantes nas redes pública e particular, hoje são 50 milhões, de acordo com informações coletadas na edição mais recente do Censo da Educação Básica, produzido pelo Ministério da Educação (MEC).
No período, a participação do setor privado na educação básica passou de 13,9% para 17,2%. Com mensalidades que vão de R$ 500 a R$ 1.000, o Colégio Albert Einstein, em Interlagos, zona sul de São Paulo, registrou entre 10% e 20% das matrículas para o ano letivo de 2014 feitas por ex-alunos de escolas públicas. Uma das explicações para uma suposta migração de vagas da rede pública para a particular é o avanço da renda no Brasil, sobretudo o rendimento da população mais pobre - de 2009 a 2013, o salário mínimo valorizou-se em 45,8%.
"É um novo sonho de consumo. A escola particular vem antes da casa própria e do carro novo a partir do momento que a classe C tem algum acesso a consumo. Só não estuda na escola particular quem não pode pagar, ninguém fala que vai pôr o filho na escola pública porque quer", afirma Benjamin Ribeiro da Silva, presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Particular do Estado de São Paulo (Sieesp).
A empresária Deneide Boaventura é o retrato desse quadro. Até 2007, ela e o marido eram assalariados. Ganhava pouco mais de um salário mínimo cada um para trabalhar num comércio em São Paulo. Ela cuidava do caixa; ele estacionava os carros dos clientes. Com ajuda financeira de parentes, mais o FGTS que recebeu pela demissão e alguma poupança, o casal abriu o próprio negócio: uma "portinha" alugada para vender roupas, calçados e artigos para bebês e crianças na Vila Natal, extremo sul na periferia paulistana.
Em três anos, a lojinha Luan Baby - nome alusivo ao filho mais novo do casal, de oito anos - foi crescendo. Hoje tem dois funcionários e ocupa o espaço de uma garagem de dois carros numa movimentada rua de comércio do bairro com quitandas, bares, salões de cabeleireiro, oficina mecânica e lan houses. Mal se consegue caminhar pelo estabelecimento. As mercadorias, compradas de fornecedores de Santa Catarina, estão nas prateleiras e até no chão. Ainda assim é constante o entra e sai de clientes, a maioria jovens mães - adolescentes até - acompanhadas por suas mães na casa dos 40 anos.
Assim que o negócio foi melhorando, em 2011, Deneide decidiu tirar os dois filhos da escola pública e colocá-los no Colégio Albert Einstein. A maior preocupação de Deneide era com a filha mais velha, Ludmila, de 14 anos. "A escola do Estado nunca é igual. Não sinto segurança, principalmente agora que as meninas vão ficando mocinhas. Os alunos saem na hora que quiser, ficam sozinhos. No ensino também é diferente. Ela bagunçava muito e ninguém ligava, agora os professores colocam limites. O comportamento da minha filha ainda não está como eu quero, mas está melhorando", cobra a mãe.
Admitindo que não é "nenhuma santa", a própria Ludmila conta que tinha "liberdade demais" na escola municipal onde estudou. "Eu quase não assistia às aulas, chegava e deixava minhas coisas na carteira e ia ficar em outras salas com meus amigos. Ninguém me falava nada, tanto faz como tanto fez se alguém aprende alguma coisa." A adolescente acrescenta que não tinha lição de casa e tirava boas notas mesmo sem se esforçar muito porque as provas eram fáceis. "Aqui [no colégio privado] os professores cobram lição, as provas são difíceis e não tenho tanta liberdade", diz Ludmila, que no dia em que a reportagem visitou a escola teve que ir buscar seu i-Phone 5S na direção porque insistia em usá-lo durante a aula.
Os dois filhos do administrador de empresas Edson da Silva Pereira, Samara e Eric, sempre estudaram no Einstein, mas em 2013 ele perdeu o emprego e foi obrigado a tomar a "difícil" decisão de matriculá-los na escola pública. Reempregado e com as finanças em dia, neste ano as crianças voltaram para o colégio particular. "Para eles foi complicado porque tiveram que se adaptar rapidamente. Para nós, a ideia da escola pública é a de que ela vive um problema crônico de referência, estrutura, falta de materiais e de professores preparados. Faltavam professores de física, química e biologia. Os bons professores são batalhadores, lutam para fazer as coisas, mas não têm muito apoio", avalia Pereira.
A estudante Samara, de 15 anos, do primeiro ano do ensino médio no Albert Einstein, lembra que a experiência na escola pública foi marcada por "menos respeito" no convívio entre alunos e professores e ensino "menos exigente". "Fiz amigos legais, mas sempre reclamava para os meus pais: 'Sentia falta de aprender e estudar de verdade'", diz a aluna. Eric, irmão mais novo de Samara, conta que gostava da escola municipal. "Para mim foi um ano legal, fiz vários amigos, tirando alguns que me enchiam o saco", recorda o garoto, de 11 anos, atualmente na sexta série.
Defendendo o mercado privado, Benjamin Silva, do Sieesp, argumenta que, junto com a melhoria da condição financeira das famílias, o "fator qualidade" também tem peso na decisão de tirar a criança da escola pública e matriculá-la na particular. "É o que todos os indicadores do próprio MEC dizem: se a escola particular não fosse melhor não haveria a migração que vem ocorrendo nos últimos anos. E se a escola paga não prezar pela qualidade não sobrevive, pois a concorrência está muito forte", comenta Silva.
Na visão das famílias, há o entendimento de que a escola particular é melhor que a pública, o que também ajuda a explicar o movimento de migração de matrículas. Especialistas alertam que há muitas escolas particulares de baixa qualidade. "O problema é que são essas o principal destino de filhos de famílias pobres, que melhoraram de vida, mas ainda continuam sem condição financeira para bancar uma escola particular de ponta", João Cardoso Palma Filho, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e ex-secretário-adjunto de Educação do Estado de São Paulo.
De acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal indicador de qualidade do ensino brasileiro, a nota da escola pública no segundo ciclo do ensino fundamental é 3,9, contra 6 da rede privada. No ensino médio, a desvantagem persiste: 3,4 contra 5,7.
Tido como o grande gargalo da educação brasileira, com maiores índices de evasão e reprovação, o ensino médio público registra a maior incidência de perda de matrículas. Entre 2009 e 2013, as escolas estaduais registraram queda de 2,8 milhões, quase 75% do total. Num ranking das 300 melhores escolas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), apenas uma escola estadual (técnica) aparece na lista, na 216ª posição. "O problema do ensino médio é estrutural e em todo o país: não consegue atrair o jovem, que acaba evadindo e o resultado esta aí, na redução das matrículas. Só em São Paulo, a evasão atinge mais de 20%", afirma Palma Filho.
Leonardo Rodrigues/Valor / Leonardo Rodrigues/Valor
Por causa de problemas financeiros em casa, Samara e Eric saíram do colégio privado por um ano e depois voltaram
Na redes municipais do país, que concentram alunos do ensino fundamental, contabiliza-se 1,1 milhão de matrículas a menos nos cinco anos observados. Já no sistema federal, que abriga escolas de aplicação (ligadas a universidades) e de ensino técnico, consideradas de excelência, houve aumento de 290,7 mil vagas no período.
Quando o assunto é qualidade, o governo não reconhece a superioridade das escolas particulares. "São métricas diferentes para comparar a realidade de uma e de outra. A escola privada seleciona com recursos, atrai alunos que trazem mais de casa, acrescenta muito pouco e se sai bem. Se olharmos o que as escolas agregam, não dá para dizer que uma é sistematicamente melhor do que a outra", justifica Maria Beatriz Moreira Luce, secretária de Educação Básica do MEC.
Recente pesquisa do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), que ouviu alunos, professores e pais, aponta que o tema segurança também pode justificar perda de vagas na rede pública. De acordo com o estudo, 32% dos docentes, 37% dos pais e 25% dos estudantes ouvidos citaram a falta de segurança como o principal problema das escolas estaduais paulistas.
Palma Filho lembra ainda que as greves contribuem para manchar a imagem da rede pública. "As paralisações são como fantasmas para os pais. São Paulo ficou três anos sem greve, mas em março do ano passado, uma paralisação de 50 mil professores abalou a rede."
Além da ascensão socioeconômica, das discussões sobre qualidade e outras variáveis, especialistas em educação dizem que a perda de matrículas públicas também tem um lado natural. Em termos demográficos, o número de crianças e adolescentes brasileiros vem caindo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) projeta queda de 20% da população de 6 a 14 anos até 2022, o que contribui para a redução das vagas escolares.
Há ainda o efeito de políticas implementadas desde o processo de universalização da educação básica, nos anos 1990. Ações para combater evasão e distorção idade-série ajudam a normalizar o fluxo escolar (quando mais crianças começam e terminam os ciclos de ensino na idade certa).
"O setor privado nunca teve problema de fluxo, é privilegiado no seu ambiente. A escola particular sempre soube levar o aluno ao final dos ciclos de escolaridade, diferentemente do que acontecia na rede pública até pouco tempo. Hoje o fluxo vem melhorando ano a ano nas escolas públicas. Melhorou porque existem políticas que ajudam, como o programa de construção de creches, o de alfabetização na idade certa, as ações para melhorar as diretrizes curriculares", analisa José Francisco Soares, presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).


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