segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Quem nos protege dos protetores?


Em entrevista, promotora do caso diz que estudantes da USP queriam ser aplaudidos, "mas não, eles são criminosos e pagarão por isso"; por sua vez, os envolvidos contam sua versão dos fatos e contestam as acusações feitas pelo Ministério Público estadual

Aline Scarso
O Ministério Público estadual, na figura da promotora Eliana Passarelli, acusou na última terça-feira (05) as 72 pessoas presas durante a desocupação da reitoria da USP (Universidade de São Paulo) em 08 de novembro de 2011. Pela suposta participação na ocupação, cinco crimes foram imputados: formação de quadrilha, depredação do patrimônio público, crime ambiental por pichação, posse de explosivos e desobediência.
De acordo com a denúncia, os acusados "com dolo determinado, associaram-se emquadrilha para o fim de cometer crimes" e, em conluio, "destruíram, inutilizaram e deterioraram coisa alheia, pertencente ao patrimônio do Estado, bem como picharam edificação urbana". Ainda segundo Eliana, na data de início da ocupação do prédio pelo movimento estudantil, precisamente no dia 02 de novembro, já havia a intenção de cometerem "inúmeros crimes".

Policial aponta arma para a estudante na Universidade de São Paulo

Em entrevista ao Brasil de Fato, a promotora diz que quer a condenação dos indiciados. "Eles queriam ser aplaudidos. Mas não, eles são criminosos e pagarão por isso", disse.
As principais reivindicações políticas que impulsionaram a entrada no prédio - o fim do convênio com a Polícia Militar assinado pelo reitor João Grandino Rodas e o fim dos processos contra funcionários, professores e estudantes motivados por razões políticas - não foram citados na denúncia. O movimento estudantil questionava à época o papel repressor da PM dentro da USP e fora dela, corroboradas a partir das denúncias de constantes abusos policiais contra a população, especialmente das periferias. Os estudantes também queriam o fim da política de processos administrativos motivados por manifestações políticas.
Nunca na história recente do país um número tão grande de pessoas, reconhecidas pelo movimento estudantil por defender a manutenção da universidade como coisa pública, havia passado por julgamento com tamanha complexidade. Somados, os crimes imputados a eles podem render no máximo oito anos de prisão.
Na prática, a promotora Eliana Passarelli está incapacitada de defender a sua tese de acusação, já que o Foro Regional de Pinheiros - para onde foi encaminhado o inquérito -, não tem competência para processar e julgar crimes cuja pena seja de reclusão. Sendo assim, a denúncia já foi remetida ao Foro Criminal Central da Barra Funda, mas, até o momento, não houve a aceitação da mesma por nenhum juiz.
Antes da acusação da promotoria, a USP já havia distribuído penas internas aos envolvidos, que variaram entre 5 e 15 dias de suspensão. Em decisão tomada pelo Fórum dos Processados, instância que representa as pessoas que foram presas, os estudantes punidos decidiram que vão começar o ano letivo frequentando as aulas normalmente. O mesmo posicionamento foi tomado pelos funcionários, que não suspenderam as atividades laborais.
O outro lado
As pessoas que foram presas na desocupação da reitoria são na sua maioria estudantes da própria USP, além de trabalhadores da instituição e apoiadores. A estudante de filosofia, Vânia de Oliveira Gonzalez, é uma delas. Ela conta que na noite do dia 07 de novembro foi até a assembleia para se informar sobre o que acontecia. O encontro acabou tarde e Vânia perdeu o ônibus para voltar para casa. Decidiu ficar na reitoria. "Às 4h40 eu estava em frente ao prédio quando vi muitos carros e caminhões de Polícia. Entrei na reitoria pra buscar minha mochila, mas fui impedida de sair por policiais que apontavam armas pra mim. Perguntei por que estava sendo presa e eles disseram, porque você não saiu", conta.
De acordo com a promotora Eliana Passarelli, no dia dos fatos, o Comando de Choque solicitou aos denunciados que desocupassem o local de modo pacífico. A versão é contestada pelos estudantes. "Fomos acordados com os policiais gritando e nos apontando armas, mandando que nós deitássemos com as mãos na cabeça e depois desligássemos os celulares", conta o estudante de mestrado em Letras, Fernando Bustamante, que também foi preso. Depois disso, segundo ele, as pessoas foram retiradas do prédio. "Ficamos sentados por muito tempo encarando a parede, enquanto escutávamos uma colega nossa gritando", conta. Ele se refere à estudante Rosi Santos, que na época afirmou ter sido arrastada por policiais para dentro da reitoria, colocada numa sala, e sofrido golpes físicos.

Estudante registrou a ação de repressão da PM no (Crusp) Conjunto Residencial da USP no dia 08 de novembro
A decisão da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo permitia a reintegração de posse a partir das 23h horas do dia 07. Porém, conforme a determinação, deveria "ser realizada sem violência, com toda a cautela necessária à situação, mediante a participação de um representante dos ocupantes e da autora para a melhor solução possível, observando a boa convivência acadêmica, em um clima de paz".
De acordo com Fernando, em nenhum momento no dia 08 foi dado aviso prévio para que as pessoas pudessem sair do prédio e nem havia a presença de um oficial de justiça. Os policiais apenas entraram e as prenderam. "De modo algum deram aviso. Informaram na assembleia que a reitoria havia se comprometido a não efetivar a reintegração de posse antes da próxima rodada de negociações, que aconteceria na quarta-feira [dia 09]. Há também declarações na mídia do comando da PM descartando a possibilidade de reintegração naquele dia", diz.
Em entrevista ao G1 depois da desocupação, a coronel Maria Yamamoto, afirmou que não houve enfrentamento. "Eles [alunos] foram pegos de surpresa, não tiveram nenhuma reação, (...). A chegada foi silenciosa. Em menos de dez minutos, o prédio já estava ocupado e eles, contidos", explicou.
Vânia e Fernando também afirmam que o prédio estava intacto até a entrada da polícia. Também dizem que os artefatos explosivos foram plantados. "Pude ouvir, e outros colegas conseguiram ver os policiais quebrando o patrimônio da reitoria. Os poucos estudantes que conseguiram filmar algo tiveram os equipamentos confiscados", conta Fernando. O zelo com o prédio, segundo ele, era uma preocupação do movimento estudantil. "O movimento teve o tempo inteiro o cuidado de zelar pelo patrimônio, que é público e de todos os que sustentam a universidade", destaca.
A não individualização dos atos

Estudante Danilo Bezerra, morador do CRUSP e estudante da ECA,
conta a sua experiência de ter sido preso mesmo não estando dentro da
reitoria e de ter ouvido a colega Rosi Santos apanhando da polícia.
De acordo com nota da Comissão Jurídica em Defesa de Estudantes e Trabalhadores, o Código Penal não admite responsabilização coletiva e "o próprio Ministério Público reconhece a ausência de individualização da conduta dos supostos envolvidos, demonstrando absoluta inaptidão da denúncia."
Sem identificar a autoria dos fatos, segundo eles, é impossível que os envolvidos possam exercer o direito de defesa de forma adequada. "Existe a prova de que objetos foram quebrados, porém isso não basta. É necessário dizer quem quebrou e o que quebrou. Se você acusa todo mundo de ter quebrado tudo, fica muito fácil [para a acusação] porque o acusado não tem como se defender", afirma o advogado Alexandre Pacheco Martins.
Para a promotora Eliana Passarelli, as ações estão individualizadas na medida em que os acusados formam uma quadrilha. "Eles permaneceram dentro do prédio, não saíram quando deveriam ter saído, foram presos em flagrante e delito, está mais do que caracterizada a ação criminosa", defende.
Na acusação, mesmo os estudantes presos fora do prédio - algo que foi reconhecido pela apuração interna dos fatos feita pela USP - foram indiciados de terem quebrado o patrimônio da reitoria, descumprirem a ordem judicial e formarem quadrilha criminosa. A mesma imputação coube ao repórter Diogo Terra Vargas, que na época fazia reportagem para o site da revista Vice sobre o movimento estudantil (leia o relato do jornalista aqui) e foi preso enquanto trabalhava.
Criminalização dos movimentos sociais

Imagem de assembleia na noite do dia 08 de novembro na FFLCH; estudantes decretaram greve depois da prisão dos colegas

A denúncia do Ministério Público contra estudantes e funcionários motivou a solidariedade do movimento estudantil em nível nacional. A União Nacional dos Estudantes (UNE) repudiou o que chamou de criminalização dos movimentos sociais e do movimento estudantil. "A UNE e a UEE-SP se posicionam contrariamente a toda e qualquer forma de cerceamento de liberdade, tendo como um de seus maiores princípios a luta pela livre expressão e manifestação", disse em nota.
A Assembleia Nacional dos Estudantes - Livre afirmou que, ao assustar os estudantes, o objetivo da ação é derrotar o movimento estudantil da USP. "Vimos ao longo da gestão de João Grandino Rodas uma forte perseguição ao movimento estudantil e de trabalhadores, fazendo coro à política do PSDB, em São Paulo, de criminalização dos movimentos sociais", ressaltou.
Para a União da Juventude Socialista, a denúncia do Ministério Público "não passa de mais uma tentativa de calar o movimento estudantil". Outras organizações estudantis atuantes na Universidade de São Paulo como Juventude às Ruas, Território Livre e Aliança da Juventude Revolucionária também se posicionaram ao lado dos punidos.
Já o Diretório Central dos Estudantes Livre da USP destacou a falta de democracia na gestão da universidade, expressa pelo atual reitor João Grandino Rodas. "O convênio assinado com a polícia militar não foi em nenhum momento debatido junto à comunidade universitária e não solucionou o problema da falta de segurança que até hoje permanece dentro da Cidade Universitária".
Segundo a funcionária da USP, Diana Assunção, uma das 72 pessoas presas e diretora do Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP), o Ministério Público agiu em conjunto com a reitoria e o governo estadual com o objetivo de reprimir e desestruturar os movimentos políticos organizados dentro da instituição e que fazem oposição à política de privatização da universidade.
"Há uma linha política clara do governo do estado há algum tempo e que teve seu estopim na enorme repressão da desocupação do Pinheirinho. Também teve expressão na repressão de trabalhadores sem-teto, na política de internação compulsória para usuários de crack, ou seja, numa série de coisas que expressam uma política de conjunto do governo do PSDB; e a USP não está de fora disso." Segundo a sindicalista, a universidade tem proporcionado a abertura ao capital privado para se tornar mais competitiva nos rankings internacionais, além de demitir a conta-gotas trabalhadores, ancorada em um programa de avaliação do desenvolvimento do trabalho de cada funcionário.
Em 2007, depois da violenta desocupação de um prédio da administração da Unesp em Araraquara, que resultou na prisão de 100 estudantes, o professor departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp de Marília, Jair Pinheiro, chamou a atenção para o estágio avançado de criminalização dos movimentos sociais, crescente desde a década de 1990. Segundo previu, o movimento estudantil seria a bola da vez. "Testemunha esta inflexão o fato de que há hoje inúmeros militantes de movimentos sociais presos ou respondendo a processos penais por suas atividades políticas", afirmou em artigo publicado no Diário de Marília, destacando o papel do direito penal na repressão. "Na base desta inflexão está um duplo processo de judicialização da política: uma inversão segundo a qual a política não é mais espaço de criação de direito, mas este [o direito] instrumento de regulação daquela [a política] e a adoção do direito penal como instrumento privilegiado dessa regulação", argumenta.

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