quinta-feira, 29 de maio de 2014

A proibição de comerciais sobre a Copa e a infantilização dos brasileiros


Ailton Benedito de Souza, Procurador da República e colaborador do Instituto Millenium, pleiteia a suspensão da campanha do Planalto em defesa da Copa.


Fábio de Sá e Silva
Governo Federal
Faltando pouco menos de um mês para o início da Copa do Mundo – e em meio a persistentes debates na mídia e nas redes sociais sobre se sediar o evento terá sido ou não algo positivo para o país –, o Governo Federal decidiu entrar em campo e trocar alguns passes com o torcedor-cidadão. Utilizando-se de dois vídeos curtos – um com 34 e outro com 63 segundos –, o Planalto finalmente procurou reagir às diversas afirmações que circulam na opinião pública e que, em diversos casos, têm buscado imprimir à preparação para o evento uma tônica pessimista, na linha do que muitos identificam ser a expressão reeditada do "complexo de vira-latas" de que falava Nelson Rodrigues na esteira de nossa derrota para o Uruguai na Copa de 1950.

Inspirados, provavelmente, na interlocução direta com os moradores das cidades-sede conduzida por Gilberto Carvalho e sua equipe na Secretaria Geral, bem como na presença mais intensa de dirigentes federais nas redes sociais desde os protestos de junho de 2013 – incluída aí a própria Dilma –, tais vídeos buscam dialogar com inquietações justas e corretas da população, ao mesmo tempo em que oferecem um saudável outro lado para teses que já estavam a ponto de se tornarem hegemônicas, como a de que o país "não estaria preparado" para o evento ou a de que o dinheiro investido na construção dos estádios havia sido "subtraído" da educação e da saúde. 

Para a democracia, o reposicionamento da estratégia de comunicação do Governo parece representar um notável ganho. Ao trazer informações concretas – em relação, por exemplo, aos valores utilizados na construção de estádios (sobretudo quando comparados com outras obras de infraestrutura e com gastos com saúde e educação), ao progresso na reforma de aeroportos, ao número de empregos e de programas de qualificação profissional gerados a partir da Copa, aos valores que serão arrecadados em impostos por ocasião do evento, entre outros –, o Governo contribui para que o debate em curso no país vá além das hashtags, instrumentos eficazes para a disputa por trending topics nas redes sociais, mas profundamente empobrecedores dos processos de formação de opinião pública em um ano tão importante como tem sido 2014.
 
Como disse Garrincha, porém, faltou combinar com os russos. Em particular, com o Procurador da República em Goiás, Ailton Benedito de Souza. Mal os comerciais começaram a ser exibidos, este representante do Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública, que foi distribuída para a 3a Vara Federal de Goiás, na qual pleiteia a suspensão imediata da campanha, sob pena de multa diária de R$ 5 milhões para a União e R$ 1 milhão para "os (seus) agentes" (multa pessoal), "no caso do retardamento no cumprimento (dessas) medidas".
 
Na petição inicial de 50 páginas, Ailton, que é colaborador do Instituto Millenium, argumenta que os vídeos violam os "princípios da publicidade, legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência da Administração Pública, além da cidadania e da dignidade, fundamentos da República, e dos direitos fundamentais ao acesso a informações e à verdade, nos termos dos artigos 1º, incisos II e II, 5º, incisos XIV e XXXIII, e 37, caput, da Carta Magna" (pág. 37).
 
No âmbito estritamente jurídico (e, mais que isso, judiciário), o problema central na ação proposta por Ailton consistirá em saber se as peças produzidas pelo Planalto representam exercício razoável da possibilidade de comunicação institucional pelos Governos. Como toda relação de comunicação é, porém, pragmática, essa análise não poderá ser feita analisando-se os textos da campanha fora de seu contexto. Esse contexto, como se sabe, é o de frequentes e generalizados questionamentos sobre a existência de benefícios (ou até mesmo de prejuízos) no fato de o Brasil sediar a Copa de 2014.
 
Tais questionamentos – em parte decorrentes da inacreditável omissão da imprensa, que apenas às vésperas do evento tratou de abordar a Copa de maneira mais consistente, quando veio a constatar, por exemplo, que todo o valor investido nas obras do evento equivale a apenas um mês de gastos com educação – criam obstáculos para que o país receba e trate bem os torcedores e seleções de outros países. Registrar os benefícios e estimular a população a se envolver com a Copa, a fim, exatamente, de que o país possa aproveitá-la ao máximo, é, portanto, medida perfeitamente justificável não apenas para o governo federal, mas também para os estados e cidades-sede.
 
Por outro lado, não consta que os vídeos tenham disseminado informações falsas ou tenham desqualificado críticas à realização da Copa do Mundo no Brasil e à preparação do país para receber tal evento. Aliás, um dos argumentos de Ailton é de que a campanha "se presta, a bem da verdade, a inibir, de forma subliminar, a percepção da sociedade sobre a verdade da Copa" (pág. 36, com reprodução dos destaques do original) – verdade esta, é bom dizer, que o Procurador pretende construir a partir de reportagens da imprensa, e não de qualquer avaliação mais sistemática.
 
É justamente aí, porém, que vem à tona o aspecto mais problemático (até porque intransponível, no plano dos argumentos) da ação de Ailton, aspecto este que está presente ao longo de toda a sua petição. Resgatando, pois, a relação entre esporte e política, o Procurador define a Copa como "um evento que propicia dissonâncias cognitivas, sugestibilidades aumentadas e reflexos condicionados, na imensa maioria dos brasileiros que se entregam intensamente ao objeto da paixão, a bola, mesmerizados, e, assim, com a mente aberta para toda espécie de manipulação insidiosa" (pág. 10).
 
Tentando, a seguir, explicitar porque os vídeos violariam os princípios constitucionais que disciplinam a comunicação institucional dos Governos, o Procurador diz ser "público e notório (...) que houve um desperdício de recursos públicos em obras que não ficarão prontas a tempo do Mundial, e cuja conclusão após a Copa também é bastante duvidosa, diante do término das ‘pressões’ da FIFA, da ineficiência dos investimentos públicos no Brasil e da tendência natural dos brasileiros ao esquecimento das promessas dos que lhes governam" (pág. 26, com destaques meus).
 
Assim, conclui mais adiante o Procurador, a campanha "concorre para desinformar (..). ao difundir uma visão surrealista de que a Copa, por obra e graça do governo federal, é a solução para todos os problemas que afligem os brasileiros ... Desinformação que se agrava, haja vista a irrefutável vulnerabilidade sociocultural da maior parcela da sociedade brasileira, que tem na televisão o único veículo de informação, em cujos programas jornalísticos aquela publicidade tem sido massivamente publicada" (págs. 37-8, com destaques meus).

Tudo se passa, em suma, como se os brasileiros fossem incapazes de distinguir entre publicidade oficial e realidade e, portanto, carecessem da providencial tutela do autor da ação a fim de que um minuto e meio de vídeos venham a "a inibir-lhes, de forma subliminar, a percepção sobre a verdade". E logo em torno do evento em cuja dificuldade da população para vislumbrar o "legado" alguns enxergam elemento decisivo para o desencadeamento dos protestos de junho de 2013.

O debate sobre a Copa e seu legado, de fato, até agora não se realizou de maneira plena, culpa, reitere-se, não apenas dos governos – que resistiram a politizar a decisão de trazer a Copa para o país –, mas também da mídia e de todos que buscaram mistificar o evento para se fortalecer politicamente, mesmo quando, por ocasião da candidatura do Brasil à Copa, haviam sido patrocinadores da ideia.

Trabalhar para aprofundar esse debate, porém, é tarefa que requer dois compromissos fundamentais. De um lado, permitir que mais e melhores argumentos – incluindo os dos governos, por que não? – circulem livremente na esfera pública. De outro lado, confiar em que os cidadãos serão capazes de avaliar tais argumentos, de formarem suas livres convicções sobre o evento e sua preparação, e de utilizarem os recursos de responsabilização de que dispõem, como o voto. Que operadores do direito e da justiça entrem nesse jogo para infantilizar a cidadania, substituindo-a pelo que consideram ser seu especial discernimento, isso é algo não apenas inadequado, mas profundamente perigoso.
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Fábio de Sá e Silva é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University e professor substituto de Teoria Geral do Direito na Universidade de Brasília (UnB). As opiniões contidas neste artigo são de caráter estritamente pessoal.

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