É senso comum dizer que a justiça age com vontade inominável quando pobres estão do outro lado da tribuna, mas é morosa e condescendente quando se trata de “gente de posses”. Será mesmo? Vejamos um caso concreto.
Há uma planta acostumada ao frio, às altas altitudes e que possuí um ciclo de vida longo: o pinheiro. Quando de porte apequenado vira pinheirinho. Esta denominação vegetal alinhava, no estado de São Paulo, realidades distintas, até mesmo, opostas.
Há um rio na capital que recebe este nome. Há um terreno em São José dos Campos que também recebe este nome em diminutivo. Ambos têm muita coisa em comum. Mais do que se imagina.
Os Jesuítas denominaram o rio pela vasta presença da planta próximo à sua várzea. Para alcança-lo em tempos remotos, as montarias eram essenciais. O tempo passou, as plantas sumiram de lá e os Jesuítas também, permanece o rio, porém fétido e vivo/morto.
Mal sabiam os clérigos que séculos mais tarde os ricos utilizariam cavalos, não para se deslocar pela várzea do rio, mas para se divertirfazendo apostas nos mais velozes. Eles, que estavam acostumados com carências e dificuldades, estranhariam ao ver a ostentação dos desfiles de joias, roupas, perfumes, peles e outros acessórios das madames. O Jockey Club se notabilizou pela velocidade dos equinos e exibicionismo dos humanos.
Muito do que ornava homens e mulheres da elite paulista nas provas de turfe vinha do outro lado do mundo. Outra parte, do outro lado do rio. Uma loja na beira do rio Pinheiros, especializada em atender abonados, a Daslu, vendia horrores, seja pelo volume e dinheiro que circulava, seja pela comercialização de roupas elaboradas com mão de obra infantil e semiescrava. Voltaremos a ela mais abaixo.
A elite frequentadora do Jockey Club gostava mesmo é de, bem vestida e acomodada, ver a cavalaria em movimento.
Eis que o tempo passou e as direções em sucessão do Jockey deixaram de recolher devidamente o IPTU aos cofres da Prefeitura Municipal de São Paulo. Ano após ano a dívida se acumulou e virou uma montanha de dinheiro. Apesar do débito nenhum cavalo da Polícia Militar se aventurou por lá, apesar do amontoado de coxias.
Há um ano (final de 2011) os valores alcançavam a bagatela de R$ 207 milhões, mas com o programa de perdão de dívidas da Prefeitura de São Paulo, os valores foram reduzidos para o patamar de R$ 154 milhões. Os paulistanos foram esbulhados em mais de R$ 50 milhões nesta operação abafa.
Não me lembro de editoriais das grandes empresas de comunicação indignados com a dívida. Limitaram-se a noticiar. Tratamento bem diferente recebeu o caso da remoção dos moradores do assentamento Pinheirinho.
A Revista Veja, por exemplo, deu grande contribuição no quesito manipulação ideológica. Sua repórter Carolina Rangel escreveu matéria intitulada “A batalha de São Paulo”, para em seguida levantar os fantasmas da Guerra Fria: “A estratégia do PT em São Paulo é a velha e provada AgitProp leninista. Coloque os miseráveis na rua e agite até a polícia bater neles. Fotografe, filme e exiba nas eleições como prova de que o governo é cruel.”
A Veja ainda acredita num PT leninista. Talvez demore, mas quando ela aceitar a realidade como referência de suas análises, provavelmente chegará a conclusões bem diferentes.
Na Folha de S. Paulo o senador tucano Aloysio Nunes Ferreira escreveu: “As verdades e mentiras sobre Pinheirinho”. Em seu primeiro parágrafo: “Em face da reintegração judicial de posse da área conhecida como Pinheirinho, em São José dos Campos, o PT montou uma fábrica de mentiras para divulgar nas próximas campanhas eleitorais.”
Reinaldo Azevedo, blogueiro tucano da Veja, replicou o artigo do senador em sua coluna no site da revista, e acrescentou: Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) escreve na Folha de hoje um artigo intitulado “As mentiras do PT sobre Pinheirinho”. Traz uma boa síntese do caso. Ele gostou da síntese.
Também na Folha de S. Paulo Rodrigo Capez, juiz assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo e irmão de um deputado estadual tucano escreveu: “O Pinheirinho evidenciou a submissão de moradores a interesses ideológicos menos nobres do que o justo direito ao lar.”
O episódio marcava exatamente o contrário: o desrespeito do direito ao lar e à moradia.
A dívida do Jockey se limitava a um problema no campo administrativo, mas os despejos eram necessários, pois a ocupação foi fruto de ideologia. Uma explicação interessante que serve a inúmeras situações.
Já disseram neste país que movimentos sociais devem ser tratados como caso de polícia. Os tucanos paulistas aprenderam bem esta lição.
O certo é que o terreno do Pinheirinho foi avaliado em R$ 187,4 milhões, de acordo com um perito judicial contratado para tal. Para a prefeitura vale R$ 93 milhões (venal). A dívida do Jockey compraria o terreno no vale do Paraíba.
Mas dele cerca de nove mil pessoas foram despejadas, por um efetivo de mil policiais que cumpriam um mandato de despejo. A cavalaria estava lá para cumprir ordens. E ordens judiciais, são ordens judiciais. Cumpra-se.
Os moradores de Pinheirinho tiveram dois grandes azares na vida: eram pobres e não podiam comprar roupas na Daslu. Estavam no pinheiro errado.
O Jockey Club lesou os cofres municipais e se transformou na maior dívida para com o erário, mas, neste caso, as portas estão abertas para negociações, acompanhadas de cafezinhos e biscoitos numa sala refrigerada qualquer da Prefeitura.
Gente diferente, tratamento diferente.
Do outro lado do rio Pinheiros, a poucos metros do Jockey, a dona da Daslu viveu momentos difíceis. Sonegou impostos (acompanhada de seu irmão) e foi condenada a 94,5 anos de prisão por crimes como descaminho, formação de quadrilha e falsidade ideológica. O buraco nos cofres federais pode ter alcançado R$ 1 bilhão, ou seis terrenos do assentamento Pinheirinho.
Pelas travessuras fiscais e pelo montante dos crimes cometidos ficou 10hs presa. Nem chegou a esquentar o colchão. Mas por ser branca e rica, assustou seus congêneres de classe. Sofreu com um câncer e morreu em fevereiro de 2012. Boris Casoy, àquele mesmo que caçava comunistas na juventude e apresentador de programa de TV, chegou a dizer que o “Lula era o responsável pela morte”. Onde já se viu uma ricaça ser presa por sonegação? “Uma vergonha”.
Casoy, aliás, antes de manifestar sua indignação pela prisão da sonegadora, deixou escapar sua mais sincera opinião de total desprezo pela pobreza e a humildade. Num deslize dos operadores da TV que deixaram o áudio aberto sem que ele soubesse, soltou uma das grandes pérolas da casagrande contra alguém da senzala: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades, do alto de suas vassouras, dois lixeiros, o mais baixo da escala do trabalho.” O crime? O gari havia desejado Feliz Ano Novo ao vivo aos telespectadores. De novo “Uma vergonha”. Foi condenado agora a indenizar o trabalhador.
Casoy fala na TV como digno representante do pensamento de parte da elite paulistana: plena aceitação de lesão por sonegadores ricos, mas indignada com pobres que ferem o sacrossanto direito de propriedade privada, mesmo que de um especulador que havia sido preso também por crimes contra a ordem financeira (se é que existe alguma ordem ai) e lavagem de dinheiro.
Para entender São Paulo, o epicentro do pensamento conservador e neoliberal brasileiro que acredita no mercado e desacredita das pessoas (especialmente negros e pobres), este episódio é singular.
Talvez por isso mesmo uma das telas mais conhecidas de nossa história, a que retrata a “independência” do Brasil, à beira do rio Ipiranga, seja também uma das mais significativas de como o Brasil e São Paulo se constituíram: os protagonistas sobre cavalos e, ao lado, poucos boiadeiros pardos descalços a observar. Uma independência sem povo, sem pobres e sem pisar em solo nacional. Assim se fez. Assim ainda se faz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário