terça-feira, 30 de outubro de 2012

Primitivo come cru


Resultado de estudo brasileiro mostra que o desenvolvimento da habilidade de cozinhar alimentos teria sido decisivo para a evolução humana, por oferecer calorias para sustentar as necessidades diárias do metabolismo de um cérebro maior.

Marcelo Garcia

Primitivo come cru

Estudo aponta papel limitador imposto pelas demandas metabólicas à evolução dos primatas e apresenta mecanismo inédito que explica o rápido aumento de tamanho do cérebro dos hominídeos de linhagem humana
O que o homem tem que nenhum outro animal tem? Talvez um cérebro muito poderoso? Ou a capacidade de fala? Tudo isso pode ser verdade, mas foi possibilitado por algo mais fundamental: a habilidade de cozinhar. Pelo menos é o que aponta um estudo brasileiro publicado hoje na revista PNAS.
Comparando as necessidades metabólicas de diversas espécies de primatas, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro comprovaram que essas demandas representaram uma barreira para o desenvolvimento cerebral desses animais. A ingestão de alimentos cozidos pode ter sido o grande ‘pulo do gato’ evolutivo, que possibilitou o surgimento de cérebros maiores, como o nosso.
A ingestão de alimentos cozidos pode ter sido o grande ‘pulo do gato’ evolutivo, que possibilitou o surgimento de cérebros maiores, como o nosso
A questão do tamanho do cérebro do homem tem intrigado a ciência há muito tempo. Em 2009, um estudo do mesmo grupo responsável pela pesquisa atual derrubou o mito de que nosso cérebro teria um tamanho extraordinário. Ele concluiu que a proporção do cérebro humano em relação ao nosso corpo é semelhante à encontrada em primatas menores. Os resultados também mostraram que o cérebro do homem tem uma quantidade única de neurônios, cerca de 86 bilhões, mais que o de qualquer outro animal.
Essa revelação trouxe novas perguntas. Em especial, por que grandes primatas, como os gorilas, não obedecem a essa proporção e têm cérebros relativamente pequenos? Que fatores teriam limitado essa evolução? Essas foram algumas das motivações do estudo realizado pela bióloga Karina Fonseca-Azevedo em sua monografia de graduação, que gerou o artigo publicado hoje na revista PNAS
Estimativas metabólicas
O grupo desenvolveu um modelo experimental que relacionou o custo metabólico da manutenção do corpo e do cérebro de 17 espécies de primatas com o tempo que deveriam dedicar diariamente à alimentação (com alimentos crus) para suprir essa demanda. Em comum, todas – de orangotangos e gorilas até hominídeos da linhagem humana, incluindo nossa própria espécie, Homo sapiens – tinham seu número médio de neurônios determinado por estudos anteriores. A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, orientadora do estudo, explica o motivo: “Existe uma relação direta entre o custo metabólico do cérebro e a quantidade de neurônios que o constitui”.
Reforçando o que é observado na natureza, o modelo mostra que um gorila precisa de cerca de 8h diárias de alimentação – tempo similar ao usado por hominídeos de linhagem humana mais primitivos, como Australopithecus afarensis e Homo habilis, cujos cérebros deviam ter de 30 a 40 bilhões de neurônios. Já o Homo erectus, que tinha um cérebro com 62 bilhões de neurônios, teria que passar mais de 8h se alimentando, enquanto o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens gastariam mais de 9h para reunir nutrientes necessários para seus corpos mais desenvolvidos e seus cérebros de cerca de 80 bilhões de neurônios. 
Alimentos calóricos

A cozinha dos homens primitivos era feita em especial de carne e raízes, como batata e mandioca – alimentos que, antes, eram ingeridos crus. Aprender a cozinhar pode ter sido um importante diferencial para o desenvolvimento de cérebros maiores
Segundo Herculano-Houzel, tamanha necessidade de tempo dedicado à alimentação aponta, de forma inédita, o papel limitador que as demandas metabólicas impuseram à evolução: a formação de cérebros maiores ou o desenvolvimento de corpos mais robustos eram estratégias mutuamente excludentes.
Por exemplo, o modelo mostra que, para ter um cérebro proporcionalmente similar ao do homem, um gorila precisaria de duas horas adicionais de alimentação. “Nenhuma espécie pode gastar regularmente mais de 80% de seu tempo ativo com isso”, avalia a neurocientista. “Além de o processo ser suscetível a flutuações climáticas e de disponibilidade de comida, sobraria pouco tempo para atividades como a socialização.”
Então, como é possível explicar que o modelo aponte uma necessidadediária de calorias dos hominídeos mais desenvolvidos muito maior que a dos grandes primatas não humanos atuais? Segundo a neurocientista, esse é um indício de que algo deve ter mudado essa dinâmica. “Há três alternativas: ou eles comiam por mais tempo, o que é impossível; ou gastavam bem menos energia, o que a comparação de características metabólicas entre humanos e outros primatas mostra que não é verdade; ou conseguiam mais calorias em menos tempo”, avalia. “O desenvolvimento da habilidade de cozinhar proporciona exatamente isso.”
Cérebros maiores rapidamente deixaram de ser um risco à sobrevivência para se transformar numa grande vantagem competitiva, o que gerou uma enorme pressão evolutiva nesse sentido
Além de ser compatível com os dados arqueológicos, como registros do domínio do fogo e do cozimento de alimentos, a teoria parece ser reforçada por características evolutivas. “Em espécies como o Homo erectus, além do cérebro maior, há uma redução no tamanho dos dentes e na musculatura da mandíbula, o que pode indicar maior facilidade de processar os alimentos”, exemplifica Herculano-Houzel.
Segundo a pesquisadora, essa é a primeira vez que um estudo aponta um mecanismo que explica o rápido aumento de tamanho do cérebro dos hominídeos de linhagem humana. “No momento em que a capacidade de cozinhar se disseminou, o homem primitivo se livrou da limitação imposta pela baixa oferta de calorias e ampliou o tempo que poderia dedicar a outras atividades”, avalia. “Assim, cérebros maiores rapidamente deixaram de ser um risco desnecessário à sobrevivência para se transformar numa grande vantagem competitiva, o que gerou uma enorme pressão evolutiva nesse sentido.”
Abundância calórica
Se uma oferta mais farta de alimentos calóricos foi fundamental para o desenvolvimento do homem moderno, hoje é uma ameaça à saúde. A epidemia de obesidade no mundo está diretamente relacionada à abundância calórica e à facilidade de obter comida rica em calorias.
Não é à toa, segundo a neurocientista, que a maneira mais fácil de perder peso é comer alimentos crus. Mas ela recomenda muita calma na hora de adotar uma dieta desse tipo, pois, em essência, isso nos levaria a perder peso e saúde rapidamente, além de viver com uma fome constante.
Geladeira

O consumo de alimentos cozidos pode ter sido fundamental para a evolução humana, mas o desenvolvimento de aparelhos modernos, como geladeiras e congeladores, tornou a oferta de alimentos ricos em calorias mais fácil e constante, causando problemas como a obesidade.
“Para se tornarem viáveis, o que as dietas macrobióticas fazem é dar uma ‘roubadinha’, usando óleos e azeites calóricos e apostando em sementes como nozes e amendoim, que são assadas antes de consumidas”, explica. “O mais engraçado é que esse tipo de dieta alega ser mais saudável por ser a dieta dos nossos ancestrais. Na verdade, é a dieta daqueles que não conseguiram ser nossos ancestrais.”
Uma nova etapa do trabalho já está em andamento. Agora, em seu mestrado, Fonseca-Azevedo pretende utilizar o modelo desenvolvido para estudar outros ramos de mamíferos. A ideia é entender que tipos de limitações impediram que outras espécies conseguissem desenvolver cérebros com um número de neurônios comparável ao nosso.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line

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