terça-feira, 30 de outubro de 2012

Juventude transgressiva: sobre o advento da adolescência


A fim de investigar as condições históricas do aparecimento da adolescência, o artigo analisa o filme Juventude transviada, de Nicholas Ray. No que concerne à operação psíquica adolescente, penso que ela vincula-se à morte do corpo da infância. Porém, isso não coincide, de uma forma unívoca, com o advento da puberdade. É preciso que enfraqueça algo que protege o jovem da injunção social de inscrever um traço na cultura, para que o púbere torne-se adolescente. A hipótese deste trabalho é de que um abalo na função paterna é o fator responsável pela constituição da adolescência. No entanto, tal hipótese deixa como resto um problema crucial: a que mutações culturais corresponde esse abalo? É nessa perspectiva que interessa perquirir o aparecimento da categoria social adolescência. Neste artigo, tal evento é compreendido como um efeito da crise das sociedades disciplinares, em meados do século XX.

Amadeu de Oliveira Weinmann
Adolescência e morte
Proponho que se pense o bungee jumping como paradigmático da condição adolescente. Por certo, todo esporte radical o é, mas fiquemos com o bungee jumping. Saltar de uma grande altura, amarrado pelos pés a uma corda elástica. Por quê? James Dean destruiu seu Porsche - e a si próprio - em uma estrada da Califórnia, aos 24 anos e pouco depois do lançamento de Rebel without a cause - traduzido no Brasil como Juventude transviada -, seu filme mais importante. Jimi Hendrix e Janis Joplin morreram de overdose. Ernesto Che Guevara foi assassinado lutando pela libertação da América Latina. John Lennon foi morto por um fã. Kurt Cobain, líder da banda Nirvana, suicidou-se. Cazuza injetou na veia a explosiva combinação de sexo, drogas e rock n'roll. Por que os ídolos dos adolescentes tendem a morrer jovens?
Parece-me que a adolescência flerta com a morte. No mínimo, a tangencia. Porém, de que morte se trata? Este artigo parte da premissa de que se trata da morte do corpo da infância. Sem que um sujeito se constitua em uma relação de alienação ao Outro materno, não há adolescência. Em contrapartida, sem que nesse Outro primordial esteja inscrito o Nome-do-Pai, também1. É nessa dialética que se constituem os corpos infantis. Mas que corporeidade é essa? Por corpo infantil, entendo o entrelaçamento de um real perverso-polimorfo, de uma imagem alienada de si, que dá bordas a esse corpo, e de uma trama de significantes parentais, que o sustenta. É essa corporeidade que cai, vertiginosamente - como no bungee jumping -, quando os prenúncios da puberdade criam a injunção de que um sujeito inscreva um traço singular na cultura. Em outras palavras, o que está em jogo na adolescência é a possibilidade do real da puberdade - dito de outro modo, do real da morte de um corpo infantil - ser simbolizado. Este é o drama da passagem adolescente. Decifra-me ou te devoro. Simboliza esse real - no limite, uma missão impossível, pois o real é justamente o que resiste a inscrever-se - ou te entrega a uma das muitas faces da morte.
Este trabalho propõe-se a abordar essa temática, tal como ela aparece em uma singular película de meados do século XX - Juventude transviada (1955), de Nicholas Ray -, pois é nessa época que uma vertente cinematográfica específica - a teenpicture - elege os dilemas da adolescência como foco de suas tramas. As análises de Rebel without a cause conduzem à seguinte hipótese: a puberdade implica a adolescência, na medida em que a função paterna encontra-se enfraquecida, ou seja, em que não se coloca mais como anteparo à injunção social de que o púbere inscreva um traço singular na cultura.
No entanto, tal hipótese formula um novo problema: em que circunstâncias históricas ocorre esse obscurecimento da função paterna? Investigar tais questões parece-me crucial para uma clínica psicanalítica que se interesse por compreender as condições de emergência da adolescência - talvez seja melhor escrever no plural: das adolescências - no domínio das subjetividades. E isso porque entendo que uma clínica não afinada com as transformações culturais tende a esclerosar-se em modelos teóricos previamente estabelecidos e, consequentemente, a promover o assujeitamento de seus pacientes a tais formas de inscrição identitária.
O corpo infantil
Nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/1996a) faz um mapeamento do corpo infantil, que desconcerta seus contemporâneos. Emerge de tal obra um corpo erótico, que clama pela repetição de experiências prazerosas, mas também um corpo de inscrição, de registro em distintos sistemas de memória. Um corpo desejante, portanto. Tal corpo apresenta algumas peculiaridades. Inicialmente imbricado à satisfação das necessidades vitais, delas se descola, adquirindo autonomia. De tal separação decorre não apenas uma íntima ligação do corpo infantil à fantasia, mas também que o objeto de seu desejo, na medida em que não é o mesmo da necessidade, inscreve-se como perdido. Por outro lado, tal corpo não tem em outro corpo o seu objeto, mas regozija-se com partes de si próprio, em alucinados prazeres autoeróticos. Por fim, as distintas modalidades de satisfação que esse corpo experimenta vinculam-se as suas diversas zonas erógenas. Da confluência desses fatores, erigem-se circuitos de prazer autoeróticos - as pulsões sexuais parciais -, em torno de zonas erógenas, formadas a partir da satisfação de necessidades orgânicas. Uma vez que esses circuitos encontram-se dispersos e não constituem um sistema integrado, sob a primazia de uma única zona erógena, Freud denomina perverso-polimorfo a esse corpo infantil.
Entretanto, tal corporeidade enfrenta vicissitudes diversas. No período imediatamente anterior ao ingresso da criança na escola, uma onda de recalcamentos - responsável pelas fobias infantis e pela amnésia da infância nos adultos -, formações reativas e sublimações coloca em estado de suspensão o hedonismo anárquico dos perversos-polimorfos e põe em evidência as forças anímicas que, à maneira de diques, canalizam a energia das pulsões sexuais em direção à formação do caráter e às realizações culturais: o asco ou repugnância, a vergonha, os ideais estéticos e as exigências morais. É a latência do perverso-polimorfo, da qual este só desperta com a explosão hormonal da puberdade. Porém, ao despertar ele depara-se com um quadro desolador. Sua potência desejante encontra-se subordinada à preservação da espécie. Agora, só resta sonhar - e produzir sintomas.
Em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914/1996b), importantes modificações aparecem nesse corpo infantil. Nesse artigo, Freud postula um encantamento dos perversos-polimorfos com sua própria imagem. Entretanto, tal formulação deixa um problema: a paixão pela imagem de si é autoerótica? O criador da psicanálise é taxativo: não, é narcísica. Entretanto, para que tal narcisismo floresça algo tem de suceder ao corpo infantil. De agora em diante, ele diz: eu. O perverso-polimorfo descobre-se envolvido por uma imagem que o unifica, enfeitiçado por ela, inexoravelmente ligado a seu destino. Pode ser que essa transformação aborreça aos perversos-polimorfos, mas os adultos a veneram, talvez por terem sido obrigados a renunciar à condição de Sua Majestade, o Bebê. Em "O ego e o id" (1923/1996c), descobre-se algo surpreendente a respeito dessa imagem de si, que tem o perverso-polimorfo. Ela não é original, é cópia. Ela não é criação, mas imitação. Ela não lhe pertence, pois está alienada. Peça por peça, ela é montada nos muitos encontros dos corpos infantis com outros corpos, ditos parentais, os quais instauram nos perversos-polimorfos suas zonas erógenas, ao mesmo tempo em que inscrevem em tais circuitos prazerosos fragmentos de uma história, traços identitários, um esboço de unificação imaginária - e limites a suas formas de gozo.
É desse ponto das elaborações freudianas que parte Jacques Lacan (1998), em seu artigo sobre o estádio do espelho, de 1949. Nele, o psicanalista francês realça o fascínio do infans - o não falante, o que ainda não está assujeitado à linguagem e, portanto, não pode dizer: eu - por sua imagem no espelho. Trata-se de algo da estrutura ontológica humana, diz Lacan, pois revela a alienação primordial de um sujeito e, simultaneamente, consiste em uma identificação, pois implica uma transformação desse sujeito, efetuada por meio da incorporação de uma imagem2. Entretanto, é ainda mais. A identificação com essa imagem especular é constituinte, pois antecipa, em um ser marcado pela ausência de coordenação motora e por uma imagem despedaçada de si, a unificação de seu corpo. E é porque tal imagem especular concede ao infans a possibilidade de ser, que ele a ama: narcisismo. Todavia, a totalidade corpórea formada a partir desse duplo - estranho e, ao mesmo tempo, tão familiar - do bebê só pode consistir em um ideal, razão pela qual ela concerne a um eu ideal.
Na dialética da constituição subjetiva, o estádio do espelho é o que faz contraponto ao Édipo. No Édipo, trata-se de pôr limites à função materna. No estádio do espelho, importa pré-formar um sujeito, arrancando-o do desamparo originário. Em um, a simbolização no bebê do falo de que a mãe é privada tem de ser cortada, para que ele possa aceder à condição de sujeito. Em outro, a identificação com esse duplo, que é o bebê/falo da mãe, é a possibilidade de uma individualização primordial. O primeiro consiste em desfazer a unidade imaginária mãe-fálica/bebê-falo. O último supõe a presença no corpo da mãe das marcas da castração simbólica - o pai real -, de modo a que o bebê apenas simbolize, e não seja, o falo materno. No Édipo, trata-se de favorecer a passagem da alienação ao Outro imaginário - materno, antes da latência; paterno, na latência; familiar, em ambos os casos - para o Outro simbólico: o da cultura. No estádio do espelho, o problema é recolher um pedaço de carne alienado ao Outro real, lugar de um gozo mortífero, operante além do princípio de prazer.
É no entrechoque desses processos, que florescem os corpos infantis. Sua existência não pode prescindir de um lugar no corpo materno; da formação de um imaginário, a partir do olhar e da voz da mãe; e de uma inscrição no simbólico, por meio do nome do pai. Do que se depreende que a alienação ao Outro imaginário é constituinte dessa operação psíquica, a qual nomeamos infância3. Tal alienação é indicada na etimologia de seu nome: infantes, os que não falam em nome próprio, independente da idade. Entretanto, o reconhecimento da castração materna produz um deslocamento importante: da infância idílica, paraíso do perverso-polimorfo, apogeu da curiosidade infantil, para a infância inibida da latência, que procura nos livros o que suas teorias sexuais fracassam em responder. Em uma, ser objeto do gozo materno é compensado pela identificação a um eu ideal, plenitude narcísica encantadora. Em outra, ser objeto do gozo paterno só é suportado mediante a promessa de um gozo pleno futuro. Em ambas, vive-se em uma ilusão. A explosão hormonal da puberdade é o sinal tomado pelo Outro - não mais o familiar, mas o social - para detonar tal ilusão. É a morte de um corpo infantil. E disso dá testemunho a adolescência.
Uma operação psíquica limítrofe
A inscrição do Nome-do-Pai é a identificação primordial de um sujeito, se podemos dizê-lo sujeito. Também é o que assinala a castração materna. Encarnado no pai da realidade, é o que promove o desmantelamento do complexo de Édipo e, consequentemente, a formação do superego e o ingresso na latência. Na adolescência, é a colagem do Nome-do-pai à imago paterna - agente da castração imaginária - que é desfeita, a partir da convocação do Outro da cultura ao púbere para que se pronuncie. Nesse momento, o pai - o do segundo tempo do Édipo, detentor imaginário do falo, que destitui a mãe da condição fálica e a criança da condição de falo da mãe - configura-se como castrado e, portanto, incapaz de transmitir o falo.
Disso decorre a revolta contra uma ordem simbólica calcada na castração (Melman, 1995). Na passagem da alienação familiar à social, é o Nome-do-Pai que é posto em questão. Dizer posto em questão significa que o sujeito se coloca em uma posição de indecidibilidade frente ao significante da castração, a qual não tem hora certa para terminar. Razão pela qual há adolescentes de quase todas as idades (Lerude, 1995). Nesse sentido, tal operação não é constituinte de uma estrutura, mas um desfiladeiro cuja passagem resulta em uma definição estrutural, por meio da validação - ou não - da inscrição ou forclusão originária do Nome-do-Pai. Por conta de tal peculiaridade, a adolescência é uma condição psíquica limítrofe, da qual a saída neurótica se dá pela invenção de novos Nomes-do-Pai (Rassial, 1997).
Esse leque de mutações psíquicas tem consequências de amplo alcance. Por um lado, esboroa-se a imagem idealizada dos pais, importante referência dos infantes. É o momento da formação dos bandos, das fraternidades identitárias, assinaladas pelas gírias, pelo gosto musical, pelo modo de se vestir, dentre outros traços distintivos. Na turma, reedita-se o estádio do espelho. Porém, agora é junto aos amigos que um sujeito constitui a imagem de si. Tal especularidade grupal, se dá lugar a novas identificações, também oferece o risco de aprisionamentos identitários - dois bons motivos para os pais temerem-na.
Nessas comunidades, o investimento em um ordenamento social imaginário, que não impõe limites às múltiplas formas de gozo, visa preservar um corpo ainda não trespassado pela castração. Transgressões e experimentações limítrofes, no que diz respeito a sexo, drogas e atos delinquentes, frequentemente constam dos ritos de ingresso em tais grupos. No entanto, é a riqueza do manancial de significantes, transmitido pela instância parental, incorporado na narrativa dos jovens e compartilhado entre os semelhantes, o que pode assegurar a ancoragem dos adolescentes no simbólico. Nessa perspectiva, parece-me pertinente problematizar a afirmação de Ruffino (1995), de que as sociedades modernas não dispõem de rituais para os jovens. Que é o ficar, senão um rito de iniciação sexual (Giongo, 2004)? Talvez o fator distintivo seja a proveniência desses rituais: em outras culturas, eles se incorporam à tradição e são oferecidos pelos adultos; nas contemporâneas, são inventados pelos próprios adolescentes.
Por outro lado, as transformações da puberdade implicam o desmoronamento da imagem corporal da infância. O eu infantil não contém o vigor pulsional da puberdade. O adolescente literalmente precisa trocar de pele - do que testemunham as acnes e tatuagens -, a fim de não reativar sua neurose de infância (Penot, 1995). É o retorno da fantasmática do corpo despedaçado. No adolescente, o corpo explode, transborda, seus contornos são movediços e, a cada instante, essa corporeidade parece correr o risco da dissolução - ou de, no mínimo, parecer desengonçada (Backes, 2004). Nessas circunstâncias, o esporte pode pôr um pouco de ordem nesse corpo pulsional. Entretanto, é sobretudo no encontro com o sexo genital - o gozo a que um corpo infantil não pode aceder, mas que lhe é prometido para quando crescer, a fim de que suspenda sua atividade perverso-polimorfa -, que se modela o corpo adolescente (Rassial, 1997).
No estádio do espelho, o olhar e a voz da mãe são objetos parciais constitutivos da corporeidade infantil. Em sua reedição adolescente, tais objetos pulsionais encontram-se do lado dos que não são mais infans. Contudo, repartidos. No rapaz, é a mudança no timbre da voz o que assinala o ingresso na puberdade. Na moça, é a transformação na silhueta. Para um, importa ser escutado. Para a outra, ser vista. O garoto seduz cantando ao som de seu violão. A garota, dançando. Ele cega diante de sua beleza. Ela derrete com seu papo. Ademais, nas festas não basta ficar. É imprescindível ser visto pelos semelhantes e poder narrar a eles esse contato inaugural com o real do sexo (Giongo, 2004). No entanto, a ilusão do objeto total está perdida. Sua disjunção é incontornável. Ela queixa-se de que ele não nota a roupa nova, o corte no cabelo. Ele ressente-se de que ela não o compreende. Descoberto o grande engodo da infância: a relação sexual não existe. É também por essa senda que passa a tentação adolescente de gozar com a morte.
A emergência de uma categoria social
Em seu artigo "Adolescência", de 1958, Anna Freud (1995) mostra-se perplexa com a escassez de produção psicanalítica acerca desse tema. Desde seu ponto de vista, o postulado freudiano de uma sexualidade infantil obscurece a importância da puberdade como o momento do florescimento sexual e desloca o foco primordial de atenção dos analistas para a infância. Entretanto, sua observação negligencia uma distinção crucial para este trabalho. Nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1996a), Freud usa o termo adolescência para referir-se ao período imediatamente posterior à puberdade, mas não concede a tal expressão um estatuto conceitual. Aliás, o título do terceiro ensaio é: "As transformações da puberdade". Parece que a ênfase da pesquisa freudiana recai sobre o impacto de um conjunto de modificações orgânicas sobre um sujeito.
Como nos informa a própria Anna Freud (1995), esta psicanalista publica, em 1936, dois artigos intitulados O ego e o id na puberdade e Ansiedade instintual durante a puberdade. Novamente, a tônica recai sobre a puberdade. De acordo com a autora, é apenas nos Estados Unidos do pós-guerra que se incrementa o interesse dos psicanalistas pela adolescência, com a publicação da Review of contributions to a psychoanalytic theory of adolescence, por Leo A. Spiegel, em 1951. Que a psicanálise se debruce sobre o problema da adolescência apenas em meados do século XX, não me parece aleatório. Que a autora se interrogue: o transtorno adolescente é inevitável?, respondendo afirmativamente, também. A adolescência é uma problemática que se coloca para as culturas ocidentais, em toda sua intensidade, somente no pós-guerra. É nesse momento de crise das sociedades disciplinares4, que os saberes psi - psicologia, psiquiatria e psicanálise - sancionam sua turbulência e naturalizam sua universalidade. No entanto, esta não é a posição de alguns psicanalistas.
Em "Adolescência: notas em torno de um impasse", Rodolpho Ruffino (1995) salienta as transformações da puberdade e seus efeitos sobre o olhar do Outro, no sentido de convocar o não mais infante para que se posicione entre os adultos. De acordo com o autor, tal injunção é, por si só, excessiva. Porém, não suficiente para produzir uma adolescência. Para que este processo se deflagre, também é necessário o declínio da mediação de certos procedimentos rituais, vigentes em culturas pré-modernas. Tais rituais oferecem bordas a essa passagem, testemunham esse processo de transformações, permitem a simbolização do real da puberdade. Nessa perspectiva, a adolescência consiste em um processo de dupla face: é uma instituição social moderna, que visa responder às transformações da puberdade, e uma operação psíquica, que um sujeito precisa transpor para tornar-se adulto.
Em sintonia com Ruffino, Costa (2004) sugere que a adolescência é paradigmática da condição do sujeito moderno e, nesse sentido, indica importantes modificações no laço social. Na Modernidade, um sujeito precisa inscrever-se na cultura por meio de um registro singular, pois a tradição e a comunidade não respondem mais por ele. E tal dificuldade incide precisamente sobre os emergentes, os que saem da condição de infantes e enfrentam a injunção de enunciar-se. Por esse motivo, adolescência implica crise, conflito. Por outro lado, Rassial (1997) e Melman (1997) salientam a discrepância entre a maturidade sexual e a maioridade legal, vigente nas sociedades modernas, como crucial para que se instaure a crise adolescente. Perante a lei, o jovem não é mais uma criança, mas ainda não é um adulto, ou seja, não tem um estatuto próprio. Deslocando ainda mais o enfoque, Penot (1995) propõe uma sincronia entre a formação das sociedades de massas, com a 2ª revolução industrial, o nascimento da psicanálise e a generalização da adolescência. Para esse psicanalista, até o final do século XIX a crise adolescente é um problema exclusivo das famílias privilegiadas.
Penso que a adolescência inscreve-se na longa jornada do sujeito moderno, mas em um momento muito singular dessa trajetória. No que concerne à raiz etimológica do termo, ela parece ser latina:
Em Latim, tanto al.umnus ('o que recebe o alimento', 'criatura' e como segunda acepção 'discípulo', 'o que aprende') como ad.ol.escens ('o que começa a ser alimentado', 'o que recebe os primeiros alimentos' e, como conseqüência, "cresce") e ad.ul.tus têm a ver com o verbo al.o, "al.imentar-se" e o substantivo al.imentum, "al.imento" (Kohan, 2003, p. 31).
Nos compêndios medievais, adolescens são os que não são mais enfants e também já ultrapassaram a pueritia, mas ainda não pertencem à juventude. Todavia, essas são distinções retóricas, pois não implicam diferenciações sociais (Ariès, 1981). Nas comunidades rurais dos séculos XVI e XVII, a juventude é a época da vida em que um indivíduo está de posse da plenitude de suas capacidades, tanto para o trabalho, quanto para a guerra5. Ela consiste no agrupamento dos homens solteiros responsável pela organização das festas, dos jogos e dos charivaris - rituais turbulentos, por meio dos quais se faz a execração pública dos que transgridem as normas dos costumes, especialmente os relacionados ao casamento (Fabre, 2006). Portanto, tal juventude corresponde a um modo de vida comunitário, regido por normas consuetudinárias.
Em História social da criança e da família, Philippe Ariès (1981) situa o aparecimento da adolescência no contexto da Revolução Francesa, mais precisamente da instituição de um exército permanente. Para esse historiador, o adolescente é o conscrito, o cadete, assim como a criança é o escolar. É intrigante que Ariès vincule a emergência da infância e da adolescência a duas instituições disciplinares: a escola e o exército. Todo integrante dessas instituições de confinamento, rigidamente hierarquizadas, é um infante, frente aos que lhe são superiores. Na família nuclear burguesa, que se organiza em meados do século XVIII, é o pai quem responde por todos, é seu nome que se inscreve na cultura. Nela, os jovens varões - especialmente o primogênito - são peças de uma correia de transmissão, o elo intermediário entre o poder paterno e a submissão infantil da mãe, das irmãs e dos irmãos pequenos (Robertson, 1982).
Evidentemente, nessas instituições disciplinares há revolta, mas esta é tida como indisciplina e punida. Nas sociedades pós-disciplinares, a rebeldia juvenil é tomada pelos saberes psi, em um primeiro momento, como um transtorno a ser tratado e, posteriormente, como constituinte da passagem da infância à adultez. Nas primeiras, a juventude consiste em um acréscimo de força: as transformações da puberdade. Nas últimas, a adolescência corresponde a uma perda - a do corpo infantil. Em uma, o jovem permanece protegido pelo nome paterno, o qual ele tem de respeitar, pois é este que responde frente ao Outro social. Em outra, o púbere é interpelado diretamente por esse Outro. Juventude do Ancien Régime, juventude napoleônica e adolescência: três categorias sociais diferentes. Trata-se de operações psíquicas distintas?
Arrisco pensar que o sujeito descrito por Freud, no qual não há lugar para a adolescência, corresponde a um modo de subjetivação característico das sociedades disciplinares. Em contrapartida, sustento que a adolescência é uma operação psíquica singular, que a teoria lacaniana pôde descrever, porque essa vertente psicanalítica consiste em um efeito da fratura de uma instituição disciplinar: a IPA. Processos correlatos a esse são o surgimento da antipsiquiatria inglesa, da psiquiatria de setor francesa, do movimento de desinstitucionalização italiano, dentre outras fissuras no dispositivo psiquiátrico. Nos Estados Unidos do pós-guerra, a criação da psiquiatria preventiva implica não apenas o atendimento psicológico nos serviços públicos de saúde, como a ramificação de tais atendimentos pelas comunidades circundantes, em um processo de psiquiatrização da sociedade (Silva, 1987). Todas essas transformações, que convergem no sentido de uma psicologização da cultura (Castel, 1987), vinculam-se a profundas mutações nas subjetividades, de que testemunham o aparecimento da geração beat, do rokn n'roll, do movimento hippie, da contracultura, das revoltas estudantis de 1968 - e da adolescência.
Em "Juventude, metáfora da mudança social", a historiadora Luisa Passerini (1996) traz importantes aportes a essa proposição. Para a autora, a inquietação adolescente, nos Estados Unidos, remonta ao final do século XIX e tem no livro Adolescence - publicado pelo psicólogo Stanley Hall, em 1904 - um marco. Nessa obra, Hall propõe que se reduzam as pressões visando uniformizar o comportamento juvenil à conduta adulta, a fim de que se possam realizar todas as potencialidades da adolescência. No entanto, a historiadora salienta que apenas após a 2ª Guerra Mundial generaliza-se a ideia de que a teenage consiste em uma fase universal do desenvolvimento humano.
Na década de 1950, os jovens norte-americanos usufruem de uma autonomia e prosperidade sem precedentes. Em torno da high school - agora aberta às camadas sociais inferiores e na qual começa a explodir a tensão racial -, prolifera uma cultura adolescente afirmativa de si, em nada semelhante a dos jovens de gerações anteriores, espremidos entre a infância e a adultez. As competições esportivas - com seus ídolos e cheerleaders -, os bailes, os clubes e os bares constituem-se em espaços sobre os quais paira a ameaça constante de perturbação da ordem pública. A difusão do automóvel próprio entre os jovens (na maior parte dos EUA, a idade mínima para dirigir é 16 anos) torna-se um sonho de consumo - e lugar de encontros íntimos - para os adolescentes e motivo de desespero para pais, que não se permitem frustrar seus filhos. Gradualmente, o adolescente e sua gangue substituem o comunista como o espectro que assombra a conservadora família norte-americana.
Passerini observa que obras marcantes da explosão adolescente são escritas na primeira metade da década de 1940, mas só obtêm sucesso na segunda parte dos anos 1950: On the road, cujo título original é The beat generation, é escrito por Jack Kerouac em 1951 e recusado pelos editores até 1957; Rebel without a cause, romance de Robert Lindner, escrito em 1944, só se torna famoso em 1955, quando do lançamento do filme homônimo de Nicholas Ray. Ademais, é na década de 1950 que a adolescência adquire estatuto legal e diversos organismos estatais são criados, a fim de enfrentar o problema da delinquência juvenil. Essa equivalência entre adolescência e delinquência é constitutiva da teenage e a coloca sob o signo da transgressão. Adolescência: juventude transgressiva, que afronta as instituições disciplinares. Não por acaso, seu aparecimento é atribuído à ruína dos valores tradicionais, ao excesso de permissividade da escola e à desintegração da família. Se a turbulência da juventude do Ancien Régime é seu modo de assegurar a norma dos costumes, em uma sociedade comunitária, e se a indisciplina da juventude napoleônica é sua forma de resistência à rígida hierarquia familiar e social, que lhe confere um lugar de transição entre a infância e a adultez, a rebeldia adolescente, em seus primórdios, é o que transversaliza as instituições disciplinares e força seu desmoronamento6.
Juventude transviada
Em meados da década de 1950, uma nova vertente cinematográfica, contemporânea do declínio da produção hollywoodiana clássica, entra em cena: a teenpicture - ou, abreviadamente, o teenpics -, o filme destinado aos teenagers (Passerini, 1996). Trata-se de um cinema que adota adolescentes como protagonistas, ao mesmo tempo em que inclui seus problemas e inquietudes no núcleo de suas tramas. Tal segmentação de mercado desfaz o caráter heterogêneo e multigeracional que o cinema mantém até esse momento - e que justifica sua rigorosa moralização - e introduz uma separação no ambiente familiar: ir ao cinema torna-se um programa de adolescentes, enquanto adultos e crianças assistem televisão em casa.
Juventude transviada (no original: Rebel without a cause), filme de 1955, dirigido por Nicholas Ray e estrelado por James Dean e Natalie Wood, é emblemático dessa mutação. Tal obra encontra-se no epicentro da emergência de uma nova cinematografia - a teenpics - e, o que é ainda mais relevante, no olho do furacão do aparecimento de uma nova juventude, dita rebelde sem causa ou transviada: a adolescência. A eleição desse filme como matéria empírica deste artigo decorre não apenas dessa peculiaridade histórica. Sobretudo, importa para este trabalho a visibilidade que tal produção fílmica confere ao entrelaçamento da morte de um corpo infantil e do enfraquecimento da imago paterna, em um contexto de crise das instituições disciplinares, na constituição da adolescência.
Logo no início do filme, Jim Stark (James Dean), embriagado, cambaleia pela rua e encontra um pequeno boneco de corda, que bate com pratos metálicos. Jim deita-se - o olhar enternecido sobre o brinquedo -, acaricia-o e cobre-o com um jornal. Ato contínuo, aconchega-se junto ao brinquedo e adormece. É o ponto de partida de um processo de transformações. Jim é um jovem que se veste como um adulto - terno, gravata, camisa e calça social, sapato -, que cuida de um brinquedo abandonado como um pai supostamente faz com seu filho e que brinca com um boneco como uma criança. Nele, delineia-se o retrato de uma juventude que se apaga. Jim não é um adolescente, mas um jovem perturbado com seu estatuto de ainda-não-adulto e não-mais-criança, condição necessária, porém não suficiente para configurar uma adolescência.
Levado à divisão de menores do distrito policial, Jim provoca os policiais, enquanto aguarda ser entrevistado por Ray Frameck (Edward Platt), o delegado de menores. No gabinete deste, Judy (Natalie Wood) queixa-se amargamente de seu pai. Diz que ele a odeia, que a trata como uma vagabunda e que, por esse motivo, fugiu de casa. John Crawford (Sal Mineo), vulgo Platão, recusa-se a explicar por que atirou em uns cachorrinhos. Sua governanta é quem informa que a mãe está sempre fora de casa e que o pai não vive com eles. O pai de Jim tenta sustentar que bebedeiras são normais nessa idade, mas sua esposa o contesta. O casal mantém um diálogo áspero e Ray Frameck convida Jim a uma conversa reservada. Em todos esses dramas, um diagnóstico: famílias desajustadas. O pai de Judy não aceita que ela deseje ser uma mulher, os pais de Platão são ausentes e o pai de Jim é um frouxo, dominado pela esposa. E uma terapêutica é proposta: o diálogo com os jovens, mesclado ao uso firme, embora afetuoso e moderado, da autoridade. Note-se que toda a cena transcorre em um ambiente confinado, mas arejado pelos novos ventos de uma cultura psicológica. O delegado de menores pergunta a Judy se ela quis vingar-se de seu pai, sugere que Platão procure um psiquiatra e oferece-se para conversar com Jim, quando este necessitar.
Em seu primeiro dia de aulas na Dawson High, inadvertidamente Jim pisa no emblema do colégio. Censurado, desculpa-se. No entanto, ao fazer uma gracinha no planetário fica marcado pelo namorado de Judy e líder da gangue da escola - Buzz Gunderson (Corey Allen) -, que o desafia para uma briga de facas. Jim não quer se meter em encrenca, mas, ao ser chamado de covarde, entra na briga e desarma Buzz. Perplexo, este o desafia para um racha, uma chicken-run - literalmente, uma corrida das galinhas, dos covardes, medrosos, maricas - no penhasco de Millertown. Sem saber do que se trata, Jim topa o desafio. Nesse momento, o foco do filme desloca-se para o interior dos lares. Judy procura o afeto paterno, mas seu pai a rechaça. Dramática, a garota sai de casa. Jim pergunta ao pai como proceder em uma questão de honra, em uma situação perigosa, na qual se deve agir como um homem. O pai vacila, estremece. Jim pega sua jaqueta de couro vermelho - até então só andava de terno - e arranca com seu carro. A insuficiência paterna indica: é no espaço da rua e no convívio com os semelhantes, que se forja a adolescência.
No penhasco de Millertown, Buzz aproxima-se da borda e diz para Jim: "este é o limite, o fim". E: "gostei de você". Jim pergunta o motivo da disputa. Buzz simplesmente responde que é preciso. E dita a regra: "o primeiro que pular é um covarde". Ambos embarcam em carros roubados e avançam, velozmente, em direção ao penhasco. No limite, Jim pula. Sem perceber, Buzz prende a tira de sua jaqueta de couro preto no trinco da porta do carro e voa para a morte. "Ele está lá embaixo", exclamam, horrorizados, os amigos de Buzz, frente a um Jim sorridente, ignorante da tragédia. Habemus adolescência! Adolescência é uma experiência de borda, que faz fronteira entre o familiar e o social; que irrompe do lado de fora da escola, mas sob seu emblema; que surge entre a infância e a adultez, mas como uma cultura singular, com seus ritos de ingresso, pertinência e exclusão; e, principalmente, que transita entre a vida e a morte, pois se trata da morte de quem insufla vida a um sujeito - o pai - e da morte de quem recebe da mãe o dom da vida: o infans.
A partir desse momento, a trama reconfigura-se. Jim conquista a admiração de Judy e Platão demanda sua proteção. Porém, os amigos de Buzz querem eliminá-lo. Não encontrando conforto para sua angústia junto à família, Jim e Judy refugiam-se em uma mansão abandonada próxima ao planetário, para a qual também se dirige Platão. Nesse cenário fantasmagórico, Jim e Judy encenam recém-casados interessados em comprar a casa. "E quanto às crianças?", perguntam-se. "As crianças são barulhentas e encrenqueiras", diz Platão. "Seu choro é irritante", acrescenta Judy. "Deve-se afogá-las como cachorrinhos", sugere Jim, em volta da piscina vazia. Platão diz ter fugido muitas vezes para aquela velha mansão, mas que nunca se sentira tão alegre, pois dessa vez não estava sozinho. Em meio a reminiscências de uma infância infeliz, o garoto adormece no jardim, sob o olhar benevolente de seus protetores.
Enquanto Jim e Judy descobrem o amor no interior da mansão, os amigos de Buzz encontram Platão no pátio. Transtornado, o rapaz corre para dentro de casa. Ameaçado, alveja um dos inimigos com o revólver da mãe - único meio de proteção que esta lhe lega. Fora de si, corre para a rua, onde termina assassinado por um policial. A morte de Platão é um dos episódios cruciais de Juventude transviada. Se a cena do penhasco de Millertown indica o que há de disruptivo na juventude de meados da década de 1950, o fim trágico de Platão assinala a timidez daquela adolescência. No limite, o que Platão quer é que Jim seja o pai que não teve - e Judy observa isso com sagacidade, em determinado momento do filme. E o que o próprio Jim deseja é que seu pai ocupe o lugar paterno. Na cena em que chora a perda do amigo que não pôde proteger, seu pai o sustenta e mantém sua mãe fora do plano principal. Afinal, a rebeldia da juventude de meados dos anos 1950 tem uma causa: restaurar a potência paterna. O preço pago por isso? A morte de um corpo infantil.
Adolescência, função paterna e sociedade disciplinar
Em Juventude transviada, a morte de um corpo infantil é encenada inúmeras vezes. Na abertura do filme, a corda do boneco está terminando. No distrito policial, Judy enuncia a feminilidade de seu corpo, Platão é questionado por eliminar filhotes caninos e Jim desfalece inebriado pelos vapores etílicos. Na briga de facas, as estocadas tiram sangue de corpos que resistem à castração. No penhasco de Millertown, a morte traga a onipotência de quem supõe dominá-la. Na mansão abandonada, Jim, Judy e Platão fantasiam o infanticídio. Em espelho a cada uma dessas cenas, outra mostra a fragilidade da imago paterna. Que mutações culturais tais repetições assinalam?
Na ordem burguesa do século XIX, que se decompõe ao longo da primeira metade do XX, as instituições disciplinares consistem no suporte social da imago paterna. Nesse sentido, o declínio das técnicas disciplinares de poder - um efeito da resistência juvenil, dentre outras - é uma das condições de possibilidade do enfraquecimento da imago paterna e, consequentemente, do advento da adolescência. Disso decorre que a passagem adolescente constitui-se em um momento de desamparo frente ao Outro cultural, pois é no intervalo entre a queda da imago paterna e a invenção de um Nome-do-Pai, que a adolescência floresce.
Em Juventude transviada, tal lapso não é apenas psíquico, mas também histórico. O filme retrata a emergência de uma primeira geração adolescente. Por um lado, os rebeldes dos anos 1950 aprofundam a crise das instituições disciplinares. Por outro, não têm em que se agarrar, pois sua inscrição social é recusada: sua revolta é dita sem causa e seu espírito transgressivo é interpretado como delinquência. No entanto, essa juventude faz sua travessia rumo ao simbólico e, por meio de obras de inestimável valor - das quais Juventude transviada é emblemática -, deixa sua marca na cultura. Ao longo da segunda metade do século XX e até a atualidade, outras adolescências advêm, estabelecendo com esse traço primordial relações muito singulares. Porém, essa já é uma outra história.
Notas
1 Por Outro, compreendo uma posição ou função lógica em uma estrutura, a qual preexiste e é, sob certas condições, constitutiva de um sujeito. Diferencia-se do outro, semelhante frente ao qual um sujeito encontra-se em uma relação especular. É nesse sentido que Rassial (1997) refere-se ao Outro familiar e social e Ruffino (2004, pp. 50-51), ao Outro real, imaginário e simbólico: "o Outro é Real no masoquismo originário, é Imaginário na cena especular ... e tornar-se-á definitivamente Simbólico ... a partir da eficácia da interdição paterna".
2 Ruffino (2004) observa que, no estádio do espelho, não se trata propriamente de uma identificação, pois, no início do processo, não há um sujeito para incorporar uma imagem. O que ocorre é um impulso canibalístico do infans em relação a esse duplo especular - objeto de desejo da mãe e, portanto, um rival. E o que é devorado é um traço do pai presente no corpo da mãe. Tal traço paterno é a identificação primordial de um sujeito.
3 É importante realçar que tal operação psíquica é pertinente à Modernidade (Ariès, 1981). Nas sociedades tradicionais, os filhotes humanos não apenas padecem de violência física - infanticídio, exposição, abandono, enfaixamento, etc -, do que decorrem elevadíssimas taxas de mortalidade. Eles também não têm existência simbólica, pois não são objeto de discurso (DeMause, 1982).
4 Em Vigiar e punir (1987), Foucault expõe seu conceito de sociedade disciplinar. A crise de tal ordem é descrita em "A sociedade disciplinar em crise" (2003), de Foucault, e em "Post-scriptum sobre as sociedades de controle", de Deleuze (1992).
5 Não por acaso, o século XVII é designado o século da juventude, assim como o XIX é o da infância e o XX, o da adolescência (Ariès, 1981). A juventude do Ancien Régime termina com o casamento, isto é, situa-se entre os 15 e os 25 anos, aproximadamente (Aymard, 2006).
6 Não pretendo reduzir as condições do aparecimento da adolescência à crise das sociedades disciplinares. Na sequência da pesquisa de que este artigo é um passo inicial, duas outras linhas de investigação serão seguidas: uma que diz respeito ao declínio da tradição narrativa da Modernidade, com a consequente formação de uma cultura calcada na imagem; e outra que concerne às sucessivas revoluções tecnológicas nas economias capitalistas, das quais decorre uma explosão no consumo de mercadorias. Sincronizados com a crise das instituições disciplinares, tais processos entrelaçam-se e implicam a constituição de subjetividades seduzidas pela imagem de seu objeto-fetiche, tomadas por um anseio de satisfação plena e imediata e obstinadas em recusar toda autoridade que possa barrar-lhes suas formas de gozo. A tal modo de subjetivação, que enfeixa em si prazeres e poderes ilimitados, pode-se denominar adolescente.
Referências
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Amadeu de Oliveira Weinmann é Psicólogo, professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS. Endereço: Av. Montenegro, 186/602. Porto Alegre/RS, Brasil. CEP 90.460-160. Email: weinmann.amadeu@gmail.com

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