“O tempo de trabalho se adequa às exigências do processo produtivo tornando menos claras as fronteiras entre o espaço do trabalho e o da vida da casa, da família”, afirma José Ricardo Ramalho
Graziela Wolfart E Cesar Sanson
Graziela Wolfart E Cesar Sanson
Ramalho: “A introdução de relações de trabalho marcadas pela flexibilidade colocou em xeque os empregos de longa duração e disseminou ocupações atípicas e precárias”
“A crise de produtividade do sistema de produção capitalista em anos recentes e as demandas dela decorrentes, em um mercado cada vez mais globalizado, resultaram em mudanças importantes no mundo do trabalho”. A conclusão é do professor José Ricardo Ramalho, que concedeu a entrevista a seguir para a IHU On-Linepor e-mail. Ele não tem dúvida de que o trabalho “continua sendo uma importante atividade constituinte da sociedade contemporânea, mas abre-se agora um leque de outras possibilidades que precisam ser exploradas pelo investigador social preocupado em desvendar as novas estratégias postas em prática no processo de acumulação e o que acarretam para os que vivem do trabalho, até no que se refere às manifestações de resistência que irão emergir”.
José Ricardo Ramalho é sociólogo e professor no Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fez doutorado e mestrado em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pós-doutorados na Universidade de Londres e na Universidade de Manchester. É autor de, entre outros, Sociologia do Trabalho no Mundo Contemporâneo (2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir de uma perspectiva histórica e tendo presente a evolução das forças produtivas, particularmente a Revolução Tecnológica, quais são os novos temas – ou paradigmas – que se colocam para a análise do mundo do trabalho?
José Ricardo Ramalho – A crise de produtividade do sistema de produção capitalista em anos recentes e as demandas dela decorrentes, em um mercado cada vez mais globalizado, resultaram em mudanças importantes no mundo do trabalho. O processo de reestruturação das empresas, nos países industrializados, se fez com a criação de novos mecanismos de controle e de organização da produção, amparado no uso intenso de tecnologias de informação, e teve consequências nas formas de assalariamento vigentes. A introdução de relações de trabalho marcadas pela flexibilidade colocou em xeque os empregos de longa duração e disseminou ocupações atípicas e precárias. Um contexto como este, combinando intensificação do trabalho com insegurança no emprego, trouxe para o debate, por um lado, a necessidade de rever os argumentos construídos em situações de trabalho formal e assalariado e, por outro, a insegurança com relação à pertinência do trabalho como formador de identidade social.
Não há dúvida de que o trabalho continua sendo uma importante atividade constituinte da sociedade contemporânea, mas abre-se agora um leque de outras possibilidades que precisam ser exploradas pelo investigador social preocupado em desvendar as novas estratégias postas em prática no processo de acumulação e o que acarretam para os que vivem do trabalho, até no que se refere às manifestações de resistência que irão emergir.
Para a sociologia do trabalho, as teorias construídas a partir do conhecimento sobre o controle gerencial exercido pela unidade fabril fordista, de produção em massa, não são mais suficientes para explicar o que acontece hoje dentro de empresas dos diversos setores, tal como o de serviços, marcado pela flexibilização das relações de trabalho, pelo crescimento do emprego precário e inseguro, e pela ausência de proteção da legislação trabalhista. Além do fato de a elaboração teórica a partir do trabalhador formal não captar com a devida acuidade as manifestações de trabalho informal, a domicílio, que se multiplicam nesse novo contexto.
IHU On-Line – A reflexão acadêmica acerca das mudanças no mundo do trabalho tem conseguido acompanhar o que está acontecendo no mundo real ou há defasagens significativas? O que dizer das críticas à sociologia do trabalho por continuar analisando o mundo do trabalho com as mesmas categorias da sociedade industrial? Qual é a sua visão?
José Ricardo Ramalho – Embora já seja possível identificar um conjunto expressivo de pesquisas voltadas para a investigação das transformações no mundo do trabalho e seus desdobramentos sobre a vida dos trabalhadores, sobre a estrutura das empresas e sobre as formas de emprego que emergem na sociedade contemporânea, creio que ainda há lacunas importantes a ser preenchidas pelos estudos dedicados a essa temática.
No caso do Brasil e da América Latina, por exemplo, a referência bibliográfica tradicionalmente utilizada se inspira em uma literatura produzida a partir da realidade de sociedades industrializadas, no contexto de um mercado de trabalho formalizado. O que se tem percebido, neste caso, é a incapacidade de, com esse corpo conceitual, explicar as particularidades do emprego, do mercado de trabalho com a marca da informalidade, do processo de industrialização tardio e, em consequência, das características diferenciadas assumidas pela organização sindical. Trata-se, portanto, do desafio que se coloca para a sociologia do trabalho: refazer ênfases e aprofundar pesquisas também sobre o que é o trabalho “não clássico”.
Outras tradições além das fábricas
Por outro lado, pensar o trabalho em outras dimensões além de sua manifestação dentro das fábricas tem exigido uma abertura maior para dialogar com outras tradições de análise social. A organização das empresas em rede, por exemplo, colocou relevância nas localidades e regiões onde se estabelecem as atividades econômicas e trouxe para o debate a dimensão da participação dos trabalhadores e sindicatos nas discussões públicas sobre projetos de desenvolvimento e sobre atuação política. Importante também é atentar para a necessidade de revisitar as instituições de representação dos trabalhadores. Os sindicatos ainda passam por grandes dificuldades para enfrentar as novas estratégias das empresas, e as práticas políticas anteriores não têm sido eficazes na resistência aos efeitos negativos para os que vivem do trabalho. Novas pesquisas precisam avaliar o modo como a instituição sindical poderia retomar sua capacidade de contestação e regulação das atividades no mercado de trabalho.
IHU On-Line – Há novidades nos estudos sobre trabalho? Qual tem sido a contribuição da sociologia do trabalho brasileira nesse debate e quais são as principais ausências?
José Ricardo Ramalho – A ampliação do escopo de estudos sobre o trabalho tem demonstrado novos interesses de pesquisa e o despertar de outros tipos de curiosidade, muitas vezes a partir da revisita aos velhos temas discutidos em períodos históricos anteriores. Isso se aplica também à sociologia do trabalho brasileira. Alguns desses temas tem sido objeto de investigação continuada aqui e nos países industrializados, principalmente no que se refere às mudanças nas formas de organização das empresas e do trabalho. Assim, os estudos sobre a consolidação do padrão flexível têm garantido debates acirrados sobre seu caráter positivo ou negativo e sobre suas consequências sociais. Por um lado, argumenta-se a favor da multifuncionalidade como algo que dá autonomia ao trabalhador; por outro lado, enfatiza-se a “precariedade” dos novos laços de trabalho como forma de tornar o trabalhador mais vulnerável na relação com as empresas.
Tempo de trabalho
No Brasil e no exterior, uma discussão que avançou se deve à alteração da concepção de “tempo de trabalho”, tendo em vista que cada vez mais vem ocorrendo uma extensão da jornada de trabalho à revelia das legislações existentes. O “tempo de trabalho” se adequa às exigências do processo produtivo tornando menos claras as fronteiras entre o espaço do trabalho e o da vida da casa, da família. Ao mesmo tempo, algumas ausências no debate sobre o trabalho na sociedade atual começam a ser objeto de novos investimentos de pesquisa. Como mencionei acima, identifica-se a importância do aprofundamento de estudos sobre o chamado trabalho não clássico marcado por atividades não assalariadas, ocupações atípicas, precárias e inseguras. Da mesma forma, é preciso avaliar a dimensão do chamado “trabalho imaterial” – aquele cujo produto não se evidencia de imediato como resultado do esforço humano – e chegar à compreensão de outro tipo de trabalhador que se forma a partir das atividades assim designadas.
Um fato do mundo contemporâneo do trabalho é, sem dúvida, o crescimento da participação das mulheres, que tem provocado a sensibilidade dos pesquisadores no sentido de discutir, por exemplo, a importância da flexibilização no mundo do trabalho para a organização e a reprodução da vida familiar, associando as questões do trabalho às questões de gênero.
Outra questão incontornável se refere à relação entre o trabalho oferecido e as condições de vida dos trabalhadores. Para pensar positivamente vale a pena lembrar os escritos de Robert Castel, que ressaltavam a relevância do trabalho na construção de redes de sociabilidade e de presença do trabalhador, na estrutura social.
Entretanto, agora como em qualquer outro período da história, o tema traz à tona os mecanismos pelos quais a inserção no trabalho, reincidentemente, leva à exacerbação da pobreza e à exclusão social. O contexto atual das relações de trabalho no Brasil também aponta para uma ênfase necessária na investigação sobre a existência de laços de trabalho tão precarizados que chegam a configurar trabalho infantil e formas de trabalho análogas à escravidão.
IHU On-Line – No que Marx continua indispensável para o estudo do mundo do trabalho e no que deve ser revisto e ampliado?
José Ricardo Ramalho – Não vejo como pesquisar o tema do trabalho sem fazer referência a Marx e a sua análise fundamental sobre o funcionamento do sistema capitalista e do seu processo de acumulação. A cada crise do capitalismo, como a mais recente de 2008, a atualidade da obra de Marx se confirma e fornece elementos para um entendimento geral dos mecanismos do sistema econômico. Mas os estudos sobre o mundo do trabalho, hoje, não podem prescindir de outros enfoques e de considerar os diferentes contextos nos quais as formas e usos do trabalho se manifestam. Preocupações em compreender o trabalho imaterial, por exemplo, ou a formação de diferentes subjetividades associadas ao trabalho não clássico, demandam abordagens elaboradas em situações sociais inexistentes no período histórico ao qual Marx dedicou as suas análises.
IHU On-Line – Em que medida a pesquisa acadêmica sobre o mundo do trabalho pode contribuir para uma mudança na legislação trabalhista? Há necessidade de uma revisão nesse sentido?
José Ricardo Ramalho – O estudo sistemático dos efeitos do padrão flexível sobre o mercado de trabalho no Brasil, e das estratégias empresariais para abolir parte considerável da proteção legislativa traz bons elementos para a reflexão e o debate político sobre alterações necessárias na legislação trabalhista. Pesquisas acadêmicas e a decisiva contribuição do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese para a elucidação dos principais problemas que afetam o mundo do trabalho têm demonstrado a necessidade de discutir e, eventualmente, fazer alterações nas leis que não amparam ou não regulam como deviam os laços de trabalho, deixando que se reproduzam os casos de terceirização de atividades, e de condições de trabalho análogas à escravidão. O mesmo se aplica aos escritos dedicados ao sindicalismo no passado e no presente que, ao abordarem questões relativas à pluralidade sindical e ao imposto sindical, por exemplo, contribuem não só para o debate político no interior do próprio movimento sindical como oferecem argumentos para tornar os sindicatos menos dependentes do Estado.
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