Nem tudo o que é sólido desmancha no ar
Em Edukators (2004), filme dirigido por Hans Weingartner, os amigos Jan e Peter querem inocular o caos na burguesia de Berlim. Os educadores invadem os encouraçados burgueses e reconfiguram a noção de expropriação revolucionária. Por Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler*
“Seus dias de fartura estão contados!” Eis a mensagem que os Edukators (2004), filme dirigido por Hans Weingartner, deixam nas mansões que invadem. Os amigos Jan e Peter querem inocular o caos na burguesia de Berlim. Os educadores invadem os encouraçados burgueses e reconfiguram a noção de expropriação revolucionária. Não se trata de furtos, não se trata de roubos. Jan e Peter mudam os móveis requintados de lugar. O sofá torna-se anfíbio e vai parar no fundo da piscina. A frieza burguesa que só une os familiares em meio às fotos padronizadas recebe um novo pedestal: a gaveta de legumes da geladeira. Ao fim da intervenção artístico-revolucionária, os educadores assinam sua cartilha pedagógica. “Seus dias de fartura estão contados!”
Enquanto isso, Jule, a namorada de Peter, participa da enésima manifestação contra a exploração capitalista. Jovens vestidos por Che Guevara entram em lojas de roupas e tênis e revelam aos consumidores vorazes o custo de produção das iguarias:
− Você sabia que o chinês que produziu esse tênis ganhou menos de 10 centavos por hora trabalhada?
Antes que a conscientização consiga se enraizar contra o automatismo do cartão de crédito, o segurança privado entrega os revolucionários aos seguranças do Estado: a polícia dispersa a enésima manifestação e, para mostrar produtividade e eficiência aos jornais locais, um manifestante é preso. Ao que Jule, indignada, entoa o brado da revolução contra a parede:
− Soltem-no! Estamos em uma manifestação legal!
Ora, desde quando o ímpeto revolucionário precisa de autorização para se expressar? Desde quando os revolucionários precisam da aquiescência e da vigilância burguesas para agir? Quando é que os últimos combates de maio de 68 se transformaram em espetáculos? Tese de maio de 68: “a revolução não será televisionada”. Antítese da Editora Maio de 68: “a manifestação passará ao vivo”. Nosso controle – que, de fato, é bastante remoto – conseguirá assistir à revolução que tem data, hora e local para começar e terminar. Em Londres – e esta cena foi acompanhada ao vivo por este articulista, caros leitores –, os garis municipais seguem os manifestantes e, em tempo real, recolhem seus escombros. A ordem deve amealhar os vestígios da desordem.
Quando é que a revolução passou a ter que se esconder? Antes, os conflitos se davam em amplas avenidas e bulevares. Caixas e mais caixas de bolinhas de gude estavam preparadas para os cavalos dos militares. (Há algumas semanas, um ator, outrora opositor da ditatura militar, me contou que policiais e milicos chegavam a atirar nos cavalos assim que os animais despencavam por conta das bolinhas de gude. “Não havia mais o que fazer, patas quebradas, cavalos inutilizados”.) Piquetes, pichações, pedras e coquetéis Molotov, se não venciam os agentes da reação, ao menos impunham certo receio tático. Mas, atualmente, as contraposições ocupam edifícios como se a tomada de bunkeres representasse uma efetiva contestação aos poderes constituídos. Assim, a reitoria da Universidade de São Paulo foi invadida, bem ao espírito dos edukators, duas vezes. É bem verdade que o reitor não pôde ocupar seu posto. Mas acabou o espraiamento do fator surpresa. A tropa de choque sabe onde está a revolução. Os revolucionários desarmados se esgueiram atrás de pilastras. As bandeiras não conseguem tremular dentro dos prédios. As paredes, por si sós, bloqueiam os gritos e cânticos de protesto. Com data, hora e local para acontecer, ficou mais fácil de a revolução ser televisionada. (Enquanto isso, em mais um prédio que a especulação imobiliária abandona e lacra no centro de São Paulo, o fundamental Movimento dos Trabalhadores Sem Teto realiza mais uma invasão para tentar conquistar o direito básico da habitação – no Brasil, a reforma cidadã beira a revolução; no entanto, como não se trata dos filhos da classe média, a revolução que pretende a reforma não será televisionada.)
Jule está deitada em maus lençóis. A namorada de Peter deve a não mais poder. Por ter batido no carrão de um ricaço, 94.500 euros serão sua companhia amortizada pelos próximos 8 anos. Jan, amigo do peito de Peter, mostra simpatia pela causa de Jule. Enquanto Peter está em Barcelona, Jan e Jule vivenciam o aforismo de que “todo coração é uma célula revolucionária”. Revolucionária e, por vezes, adúltera.
Jan para Jule: “Fazer a revolução hoje em dia é difícil. Antes, bastavam drogas e cabelos compridos e automaticamente éramos contra o sistema. O que antes era subversivo, hoje se compra em lojas. Camisetas do Che Guevara, adesivos anarquistas”.
Jan sintetiza o ímpeto voraz e pragmático do capitalismo pós-guerra fria: a revolução se transforma em mais um nicho de mercado.
Jule: “Não acho nada em que eu acredite de verdade”.
Nesse momento, Jan encontra uma nova parceira e, na ausência do fiel escudeiro Peter, transforma a namorada do melhor amigo em educadora. Os dois acabam parando em frente à mansão de Hardenberg, o ricaço cuja Mercedes fora avariada pela lata velha de Jule. “Vamos invadir!” Mais um espectro rondaria a Berlim burguesa – “seus dias de fartura estão contados!” – se Jule, em uma típica manobra pragmática do roteiro de Edukators, não acabasse esquecendo o celular na mansão de Hardenberg. Os educadores precisam voltar à cena do crime para resgatar a evidência, mas então se deparam com um Hardenberg estupefato. “Mas o que está acontecendo aqui?!” Jan golpeia Hardenberg enquanto o ricaço tenta imobilizar Jule. A essa altura, Peter, já de volta de Barcelona, é envolvido no imbróglio. Como Hardenberg pôde reconhecer Jule, já não é possível abandonar o ricaço desacordado e sumir. “Temos que sequestrá-lo”.
Jan, Jule e Peter se refugiam em um chalé nas montanhas com o magnata Hardenberg, outrora revolucionário de maio de 68.
Jan, Jule e Peter em coro: “Como foi que você abandonou seus ideais?”
Hardenberg, o líder, faz coro ao discurso da servidão voluntária: “É da natureza humana querer ser melhor que os demais. Todo grupo elege um líder. E a maioria só fica feliz quando compra algo novo”.
Diante da tese cínica e resignada de Hardenberg, Jan articula o ponto alto da crítica social de Edukators: “Eu tenho uma notícia para você, executivo: a máquina superaqueceu. Somos só os precursores. Sua época está para acabar. Enquanto você surfa na tecnologia, outros sentem ódio. É só o começo. Haverá mais. Mais casos de insanidade, serial killers, almas destruídas, violência gratuita. Não se pode sedar todo mundo com game shows e shoppings, e os antidepressivos não vão funcionar sempre. O povo está cansado da merda do seu sistema”.
Quando o ímpeto revolucionário parece pronto a explodir, Hardenberg inocula uma réplica que aprofunda a discussão e coloca os educadores ainda uma vez contra a parede: “Eu jogo o jogo, mas não fiz as regras”. Ora, adianta cortar as cabeças dos burgueses? A contraposição de Hardenberg insinua que a lógica de exploração é impessoal e estrutural. Ela se transforma em segunda natureza e, com o capitalismo, vira ideologia insana: todos querem ser Hardenberg. O ímpeto de explorar se confunde com a automutilação. Hardenberg trabalha mais de 14 horas por dia. Comparado a um ocioso senhor feudal, o magnata Hardenberg é mais um trabalhador. Um trabalhador privilegiadíssimo e explorador, mas, ainda assim, um trabalhador. A questão não seria simplesmente eliminar os jogadores que comandam o tabuleiro. Os peões querem virar bispos e se engalfinharão pelo trono do rei, pois só assim terão chances com a rainha. A questão seria transformar as regras do jogo, alargar os limites do tabuleiro, criar novas jogadas, relegar o xadrez capitalista ao passado. Mas nem tudo o que é sólido desmancha no ar: o voluntarismo dos edukators se vê emparedado pelo atual contexto histórico que não apresenta efetivas antíteses para a tese da indústria cultural que transforma a revolução em um privilegiado setor da livraria cult. A Editora Maio de 68 retoma a acepção etimológica da palavra revolução: o movimento que se volta sobre si mesmo. O capitalismo de Francis Fukuyama, o apologista do fim da história, sentencia: revolução, o movimento que se volta contra si mesmo.
Mas Jan, a reboque do inconformismo dialético, interpela Hardenberg ainda uma vez. “Como alguém com o seu passado de contestação consegue viver como você vive agora? Você teve ideais”. O calejado Hardenberg transforma-se em educador e ilumina para o jovem Jan o corredor polonês do capitalismo distópico:
− Meu pai costumava dizer: “menos de 30 sem ser de esquerda, desalmado; mais de 30 e ainda de esquerda, burro”. Acontece devagar, Jan, aos poucos. A gente nem nota. Um dia, vendemos o carro velho. Queremos um mais confiável, com ar condicionado e mais seguro. Você se casa, constitui uma família, compra uma casa. Educar filhos custa caro. Segurança. Você faz dívidas, trabalha para pagá-las e age como os demais. Até que numa eleição, para sua surpresa, seu voto é conservador.
Se o filme terminasse assim, o tom resignado poderia desanimar os mais aguerridos. Mas a tese do capitalismo unívoco provocaria tensões e reflexões para novas antíteses. Trata-se de uma velha e polêmica questão saber se a arte pode propor transformações ficcionais que resolvam conflitos que continuam a emergir na realidade. De qualquer forma, as colocações de Hardenberg – sentenças prontas para um epitáfio ou uma lápide – em grande medida sintetizam a falta de ímpeto e as contradições objetivas da contemporaneidade. Se os edukators não quiserem se ossificar; se a revolução não quiser se transformar em mero panfleto dogmático e anacrônico, será preciso engatilhar o pensamento crítico contra a própria têmpora e refletir a contrapelo das próprias aspirações para alcançar os limites historicamente configurados da transformação social. Quando a crítica se transforma em um pergaminho a ser arrolhado em uma garrafa e então atirado ao mar revolto da história para buscar náufragos esparsos, os outrora revolucionários, talvez seja preciso lançar cada vez mais luz sobre a introjeção da lógica do capital para descobrir até que ponto a resignação se confunde com os limites da imaginação. Nesse sentido dialético, as tensões de Hardenberg, e não as dos edukators Jan, Jule e Peter, é que se apresentam como eminentemente revolucionárias. Para se voltar sobre si mesma, a revolução talvez precise pensar contra si mesma.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Enquanto isso, Jule, a namorada de Peter, participa da enésima manifestação contra a exploração capitalista. Jovens vestidos por Che Guevara entram em lojas de roupas e tênis e revelam aos consumidores vorazes o custo de produção das iguarias:
− Você sabia que o chinês que produziu esse tênis ganhou menos de 10 centavos por hora trabalhada?
Antes que a conscientização consiga se enraizar contra o automatismo do cartão de crédito, o segurança privado entrega os revolucionários aos seguranças do Estado: a polícia dispersa a enésima manifestação e, para mostrar produtividade e eficiência aos jornais locais, um manifestante é preso. Ao que Jule, indignada, entoa o brado da revolução contra a parede:
− Soltem-no! Estamos em uma manifestação legal!
Ora, desde quando o ímpeto revolucionário precisa de autorização para se expressar? Desde quando os revolucionários precisam da aquiescência e da vigilância burguesas para agir? Quando é que os últimos combates de maio de 68 se transformaram em espetáculos? Tese de maio de 68: “a revolução não será televisionada”. Antítese da Editora Maio de 68: “a manifestação passará ao vivo”. Nosso controle – que, de fato, é bastante remoto – conseguirá assistir à revolução que tem data, hora e local para começar e terminar. Em Londres – e esta cena foi acompanhada ao vivo por este articulista, caros leitores –, os garis municipais seguem os manifestantes e, em tempo real, recolhem seus escombros. A ordem deve amealhar os vestígios da desordem.
Quando é que a revolução passou a ter que se esconder? Antes, os conflitos se davam em amplas avenidas e bulevares. Caixas e mais caixas de bolinhas de gude estavam preparadas para os cavalos dos militares. (Há algumas semanas, um ator, outrora opositor da ditatura militar, me contou que policiais e milicos chegavam a atirar nos cavalos assim que os animais despencavam por conta das bolinhas de gude. “Não havia mais o que fazer, patas quebradas, cavalos inutilizados”.) Piquetes, pichações, pedras e coquetéis Molotov, se não venciam os agentes da reação, ao menos impunham certo receio tático. Mas, atualmente, as contraposições ocupam edifícios como se a tomada de bunkeres representasse uma efetiva contestação aos poderes constituídos. Assim, a reitoria da Universidade de São Paulo foi invadida, bem ao espírito dos edukators, duas vezes. É bem verdade que o reitor não pôde ocupar seu posto. Mas acabou o espraiamento do fator surpresa. A tropa de choque sabe onde está a revolução. Os revolucionários desarmados se esgueiram atrás de pilastras. As bandeiras não conseguem tremular dentro dos prédios. As paredes, por si sós, bloqueiam os gritos e cânticos de protesto. Com data, hora e local para acontecer, ficou mais fácil de a revolução ser televisionada. (Enquanto isso, em mais um prédio que a especulação imobiliária abandona e lacra no centro de São Paulo, o fundamental Movimento dos Trabalhadores Sem Teto realiza mais uma invasão para tentar conquistar o direito básico da habitação – no Brasil, a reforma cidadã beira a revolução; no entanto, como não se trata dos filhos da classe média, a revolução que pretende a reforma não será televisionada.)
Jule está deitada em maus lençóis. A namorada de Peter deve a não mais poder. Por ter batido no carrão de um ricaço, 94.500 euros serão sua companhia amortizada pelos próximos 8 anos. Jan, amigo do peito de Peter, mostra simpatia pela causa de Jule. Enquanto Peter está em Barcelona, Jan e Jule vivenciam o aforismo de que “todo coração é uma célula revolucionária”. Revolucionária e, por vezes, adúltera.
Jan para Jule: “Fazer a revolução hoje em dia é difícil. Antes, bastavam drogas e cabelos compridos e automaticamente éramos contra o sistema. O que antes era subversivo, hoje se compra em lojas. Camisetas do Che Guevara, adesivos anarquistas”.
Jan sintetiza o ímpeto voraz e pragmático do capitalismo pós-guerra fria: a revolução se transforma em mais um nicho de mercado.
Jule: “Não acho nada em que eu acredite de verdade”.
Nesse momento, Jan encontra uma nova parceira e, na ausência do fiel escudeiro Peter, transforma a namorada do melhor amigo em educadora. Os dois acabam parando em frente à mansão de Hardenberg, o ricaço cuja Mercedes fora avariada pela lata velha de Jule. “Vamos invadir!” Mais um espectro rondaria a Berlim burguesa – “seus dias de fartura estão contados!” – se Jule, em uma típica manobra pragmática do roteiro de Edukators, não acabasse esquecendo o celular na mansão de Hardenberg. Os educadores precisam voltar à cena do crime para resgatar a evidência, mas então se deparam com um Hardenberg estupefato. “Mas o que está acontecendo aqui?!” Jan golpeia Hardenberg enquanto o ricaço tenta imobilizar Jule. A essa altura, Peter, já de volta de Barcelona, é envolvido no imbróglio. Como Hardenberg pôde reconhecer Jule, já não é possível abandonar o ricaço desacordado e sumir. “Temos que sequestrá-lo”.
Jan, Jule e Peter se refugiam em um chalé nas montanhas com o magnata Hardenberg, outrora revolucionário de maio de 68.
Jan, Jule e Peter em coro: “Como foi que você abandonou seus ideais?”
Hardenberg, o líder, faz coro ao discurso da servidão voluntária: “É da natureza humana querer ser melhor que os demais. Todo grupo elege um líder. E a maioria só fica feliz quando compra algo novo”.
Diante da tese cínica e resignada de Hardenberg, Jan articula o ponto alto da crítica social de Edukators: “Eu tenho uma notícia para você, executivo: a máquina superaqueceu. Somos só os precursores. Sua época está para acabar. Enquanto você surfa na tecnologia, outros sentem ódio. É só o começo. Haverá mais. Mais casos de insanidade, serial killers, almas destruídas, violência gratuita. Não se pode sedar todo mundo com game shows e shoppings, e os antidepressivos não vão funcionar sempre. O povo está cansado da merda do seu sistema”.
Quando o ímpeto revolucionário parece pronto a explodir, Hardenberg inocula uma réplica que aprofunda a discussão e coloca os educadores ainda uma vez contra a parede: “Eu jogo o jogo, mas não fiz as regras”. Ora, adianta cortar as cabeças dos burgueses? A contraposição de Hardenberg insinua que a lógica de exploração é impessoal e estrutural. Ela se transforma em segunda natureza e, com o capitalismo, vira ideologia insana: todos querem ser Hardenberg. O ímpeto de explorar se confunde com a automutilação. Hardenberg trabalha mais de 14 horas por dia. Comparado a um ocioso senhor feudal, o magnata Hardenberg é mais um trabalhador. Um trabalhador privilegiadíssimo e explorador, mas, ainda assim, um trabalhador. A questão não seria simplesmente eliminar os jogadores que comandam o tabuleiro. Os peões querem virar bispos e se engalfinharão pelo trono do rei, pois só assim terão chances com a rainha. A questão seria transformar as regras do jogo, alargar os limites do tabuleiro, criar novas jogadas, relegar o xadrez capitalista ao passado. Mas nem tudo o que é sólido desmancha no ar: o voluntarismo dos edukators se vê emparedado pelo atual contexto histórico que não apresenta efetivas antíteses para a tese da indústria cultural que transforma a revolução em um privilegiado setor da livraria cult. A Editora Maio de 68 retoma a acepção etimológica da palavra revolução: o movimento que se volta sobre si mesmo. O capitalismo de Francis Fukuyama, o apologista do fim da história, sentencia: revolução, o movimento que se volta contra si mesmo.
Mas Jan, a reboque do inconformismo dialético, interpela Hardenberg ainda uma vez. “Como alguém com o seu passado de contestação consegue viver como você vive agora? Você teve ideais”. O calejado Hardenberg transforma-se em educador e ilumina para o jovem Jan o corredor polonês do capitalismo distópico:
− Meu pai costumava dizer: “menos de 30 sem ser de esquerda, desalmado; mais de 30 e ainda de esquerda, burro”. Acontece devagar, Jan, aos poucos. A gente nem nota. Um dia, vendemos o carro velho. Queremos um mais confiável, com ar condicionado e mais seguro. Você se casa, constitui uma família, compra uma casa. Educar filhos custa caro. Segurança. Você faz dívidas, trabalha para pagá-las e age como os demais. Até que numa eleição, para sua surpresa, seu voto é conservador.
Se o filme terminasse assim, o tom resignado poderia desanimar os mais aguerridos. Mas a tese do capitalismo unívoco provocaria tensões e reflexões para novas antíteses. Trata-se de uma velha e polêmica questão saber se a arte pode propor transformações ficcionais que resolvam conflitos que continuam a emergir na realidade. De qualquer forma, as colocações de Hardenberg – sentenças prontas para um epitáfio ou uma lápide – em grande medida sintetizam a falta de ímpeto e as contradições objetivas da contemporaneidade. Se os edukators não quiserem se ossificar; se a revolução não quiser se transformar em mero panfleto dogmático e anacrônico, será preciso engatilhar o pensamento crítico contra a própria têmpora e refletir a contrapelo das próprias aspirações para alcançar os limites historicamente configurados da transformação social. Quando a crítica se transforma em um pergaminho a ser arrolhado em uma garrafa e então atirado ao mar revolto da história para buscar náufragos esparsos, os outrora revolucionários, talvez seja preciso lançar cada vez mais luz sobre a introjeção da lógica do capital para descobrir até que ponto a resignação se confunde com os limites da imaginação. Nesse sentido dialético, as tensões de Hardenberg, e não as dos edukators Jan, Jule e Peter, é que se apresentam como eminentemente revolucionárias. Para se voltar sobre si mesma, a revolução talvez precise pensar contra si mesma.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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