Leilão de linhas em Belo Horizonte expõe o poder de um cartel que inclui o dono da maior frota de ônibus do mundo
Marcos Gusmão E José Edward
Marcos Gusmão E José Edward
(publicado na revista Veja em 28 e janeiro de 1998)
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Ônibus em Belo Horizonte: empresas terão de prestar bom serviço
Na semana passada, a prefeitura de Belo Horizonte abriu os envelopes de uma concorrência pública até então inédita no Brasil. O objetivo era vender o direito de exploração de todas as linhas de ônibus urbano da capital mineira. Antes, essas linhas eram concedidas, por critérios políticos, a empresários aliados do prefeito ou dos vereadores. A novidade é que, desta vez, os empresários tiveram de pagar para continuar a explorá-las. Quem não ofereceu o melhor preço, perdeu o direito. O resultado foi surpreendente. Algumas ofertas alcançaram um ágio de 370% sobre o preço mínimo fixado no edital da licitação. Com isso, quebrou-se um mito: o de que o transporte de passageiros nas grandes cidades é um negócio pouco lucrativo, mantido por empresas que vivem no prejuízo e precisam ser subsidiadas com dinheiro público. O leilão foi também a primeira tentativa concreta de quebrar um cartel que reúne empresários poderosos e números impressionantes no país.
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Há mais empresas de ônibus no Brasil do que em outros países simplesmente porque, aqui, quase não existe metrô ou trens urbanos. O ônibus responde por 90% do transporte coletivo no Brasil. A iniciativa da prefeitura de Belo Horizonte é decorrente de uma lei federal que pretende organizar e melhorar a vida de usuários e passageiros. A chamada Lei das Licitações, de 1994, exige que todo serviço público seja concedido por meio de concorrência. Até agora, no entanto, só Belo Horizonte cumpriu rigorosamente a lei. Mesmo assim, a prefeitura enfrentou dois anos de briga na Justiça para conseguir fazer a licitação. É compreensível. A mudança atinge em cheio um cartel sólido e lucrativo.
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O maior de todos
Joaquim Constantino, dono da maior frota de ônibus do mundo, domina 13% do mercado de São Paulo, onde circulam 10 800 veículos. Mineiro de Patrocínio, começou a carreira nos anos 50, transportando leite no interior do Nordeste. Hoje, aos 65 anos, leva uma vida discreta. "Nenê" Constantino, como é conhecido, não freqüenta festas badaladas e só fez duas viagens ao exterior: uma para a Disney e outra para a Europa. Prefere passar férias no Guarujá, no litoral paulista. Apesar do jeito simples, Constantino é um empresário agressivo. Associado a Baltazar José de Souza e Ronan Maria Pinto, dois ex-cobradores de ônibus que também saíram do interior de Minas para fazer dinheiro no ramo, Constantino começou a encampar empresas até formar em São Paulo o chamado Grupo Mineiro. Em pouco tempo, dominaram o mercado. A sociedade foi desfeita há dois anos.
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O serviço de ônibus urbano em São Paulo é tão ruim que, de 1995 para cá, o número de passageiros caiu 10%. Carros particulares, ônibus clandestinos e lotações ficaram com a diferença. São opções de transporte que cobram tarifas mais baratas ou prestam serviço mais eficiente. "Não há surpresa nenhuma", diz o presidente da Associação Nacional de Transporte Público, Rogério Belda. "Com ônibus tão precários, é natural que os passageiros tentem alternativas melhores." Em vez de melhorar os serviços para tentar recuperar os passageiros perdidos, os empresários de ônibus de São Paulo usaram seu poder na Câmara Municipal para quebrar a espinha da nova concorrência. Em outubro do ano passado, os vereadores paulistanos aprovaram uma lei que limitou a ação dos perueiros. "É lógico que a gente fez pressão na Câmara", afirma Sérgio Pavani, ex-presidente da Transurb, o sindicato das empresas. "É nosso direito."
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A concorrência dos perueiros e as mudanças estabelecidas pela Lei de Licitações têm obrigado alguns barões do transporte urbano a se mexer. Um deles, o paraense Jacob Barata, de 64 anos, está preparando uma grande guinada nos negócios da família. Dono de 25% da frota de ônibus do Rio de Janeiro, Barata vai tentar a sorte na privatização de trens e barcas do Estado. No fim do ano passado, associado a grupos europeus, por pouco não arrematou o metrô carioca, privatizado pelo governador Marcello Alencar. "Com as privatizações, o ônibus vai ser um transporte auxiliar", acredita Barata. "Não posso perder o bonde." De família pobre, Barata chegou ao Rio aos 14 anos e fez de tudo um pouco. Vendeu panelas e penicos no subúrbio, foi escriturário de banco e revendedor de jóias. Aos 18 anos, comprou seu primeiro ônibus, que ele mesmo dirigia. O carro foi comprado em sociedade, até hoje uma característica do empresário: ele participa das ações de 25 companhias diferentes. Barata tem 85 sócios com quem lida pessoalmente. Além das empresas de ônibus, possui três concessionárias de veículos, três hotéis, uma fábrica de ônibus e um banco, o Guaranabara. Mora num apartamento na Avenida Vieira Souto com vista para o mar de Ipanema e passa os fins de semana numa mansão no Alto da Boa Vista, bairro de classe alta e tradicional do Rio de Janeiro.
Falso prejuízo
O transporte urbano do Rio é negócio de mais de 1 bilhão de reais por ano. Quase 80% da população carioca depende dos ônibus para se locomover. O poder político dos empresários é enorme. "Os políticos sempre querem ganhar com o lançamento de novas linhas de ônibus", reconhece Barata. "Sou empresário e entro em qualquer bom negócio que aparecer." Nos anos 70, para evitar a concorrência das barcas estaduais, as empresas cancelaram suas linhas de ônibus nos terminais da orla marítima. Conseqüência: até hoje, apenas 2% dos passageiros que cruzam a Baía da Guanabara usam as barcas. Os demais se acotovelam nos ônibus da Ponte Rio
Niterói. Cinqüenta e cinco empresas controlam os ônibus da cidade. A maioria está nas mãos de apenas seis empresários que, nas décadas de 60 e de 70, receberam as linhas de graça da prefeitura e ainda ganharam o direito de explorá-las sem pagar impostos. "Os empresários dos ônibus têm um poder grande de barganha porque, se pararem de trabalhar, a cidade também pára", diz o engenheiro de transporte carioca Fernando McDowell.
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O mineiro Clésio Soares de Andrade não é tão rico quanto "Nenê" Constantino ou Jacob Barata. É, no entanto, o empresário mais influente do setor no país. Andrade ganhou a liderança entre seus pares ao conseguir que, nos anos 80, o governo mineiro deixasse por conta dos próprios empresários a decisão sobre o valor da tarifa cobrada nos ônibus da cidade. As empresas, além de cobrar o valor que bem entendessem, ainda poderiam reclamar uma compensação da prefeitura caso tivessem prejuízos. "Foi uma festa", conta um empresário de ônibus que atua na região metropolitana de Belo Horizonte. "Teve empresa que passava a noite inteira voltando roleta para trás para apresentar prejuízo falso." Nesse período, Belo Horizonte chegou a ter uma das tarifas de ônibus mais caras do Brasil, os empresários mineiros se tornaram os mais capitalizados do país e expandiram seus negócios.
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Lobby poderoso
Em 1993, Clésio Andrade foi eleito o presidente da CNT
entidade que representa 300 000 transportadores autônomos e 40.000 empresas. Em 1994, tornou-se suplente de senador por Minas Gerais e elegeu um irmão, Oscar Andrade, deputado federal por Rondônia. Nas eleições municipais do ano passado, distribuiu centenas de cestas básicas para eleger o pai, Oscar Andrade, prefeito de Juatuba, um recém-emancipado município da região metropolitana de Belo Horizonte.
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Com um lobby contra tão poderoso, não é de estranhar que a Lei de Licitações demore a pegar nas grandes cidades brasileiras. A prefeitura do Rio de Janeiro só fez concorrência para as linhas novas, que não são rentáveis e não atraíram interessados. As antigas, e muito lucrativas, continuam em mãos dos mesmos donos. Em Porto Alegre, a prefeitura diz que vai precisar de dois anos para adequar o seu sistema de transporte. Brasília só licitou as linhas que estavam irregulares. Modelo do transporte urbano, Curitiba não pretende fazer a licitação, com a desculpa de que a lei não estabelece prazos para ser cumprida. "O sistema funciona bem do jeito que está", justifica Euclides Rovani, diretor da empresa de transporte da cidade. Em São Paulo, o governo do Estado promete leiloar no ano que vem as linhas metropolitanas. As empresas vencedoras vão ter de cumprir um contrato e serão avaliadas por meio de pesquisas regulares com os passageiros. A empresa que, por duas pesquisas seguidas, for reprovada será multada e pode até perder a licença se o problema persistir.
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O exemplo de Belo Horizonte mostra que o esforço para acabar com o cartório dos ônibus vale a pena. Depois de vencer a briga judicial com as empresas, a BHTrans
empresa gerenciadora do transporte coletivo na capital mineira
cassou todas as linhas de transporte e as ofereceu em leilão. Para operar cada ônibus por um prazo de dez anos, os candidatos teriam de desembolsar no mínimo 13 500 reais por uma linha. Em média, o ágio obtido foi de 70%. Nas linhas mais rentáveis, no entanto, o preço oferecido chegou a 64 300 reais, quase cinco vezes o mínimo estipulado. No total, a prefeitura arrecadou 69 milhões de reais com o leilão. Os 2 795 ônibus da cidade, que antes eram operados por 54 empresas cartelizadas, agora serão operados por 46 companhias que terão de competir entre si. Entre elas estão dez empresas de outros Estados ou cidades. Essas forasteiras passam a disputar espaço num negócio que, durante décadas, foi um clube exclusivo de 35 famílias mineiras. "Agora, quem não renovar frota e não cumprir horários perde o direito de explorar a linha", diz Jafete Abrahão, da BHTrans. "Acabou a história de os empresários mandarem na vida da cidade."
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