terça-feira, 11 de junho de 2013

Uivo fulminante - Allen Ginsberg

Uivo fulminante
Ícone da geração beat, o escritor norte-americano Allen Ginsberg levou a improvisação do jazz para a poesia, sem medo de transitar entre dois mundos: o marginal e o erudito

Revista SESC

Quando a obra de autores beat é relembrada, surge uma sensação de que ainda não houve outra geração literária e cultural norte-americana como aquela, que entrou em cena na década de 1950. Sentimento justificável, segundo o poeta e tradutor Rodrigo Garcia Lopes, que salienta a ousadia do pensamento dos participantes. “Esses autores foram ambiciosos e levaram à frente uma tradição de ruptura que andava esquecida”, explica. “Foi um fenômeno literário que se espalhou e contaminou o imaginário da cultura contemporânea.”

Irwin Allen Ginsberg nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1926. O poeta, considerado o místico dessa geração, tornou-se um dos ícones do movimento que ultrapassou o âmbito da criação literária para se transformar em estilo de vida. Isso sem contar a inegável influência para quem abraçou os livros escritos por ele. Para não alongar a lista, basta citar Jack Kerouac (1922-1969), William Burroughs (1914-1997) e Gregory Corso (1930-2001). 

A origem do termo beat foi confirmada por Ginsberg em um de seus últimos textos, no prefácio do livro The Beat Book, Poems and Fiction of the Beat Generation, organizado por Anne Waldman (Boston: Shambala, 1996). Segundo o registro, a expressão surgiu em conversa entre Kerouac e John Clellon (1926-1988). Discutiam a natureza das gerações, lembrando o glamour da geração perdida, e Kerouac disse: “Ah, isso não passa de uma geração beat”. 

Falavam sobre ser ou não uma geração encontrada (como Kerouack às vezes a denominava), uma “geração angélica”, ou qualquer outro epíteto. Mas Kerouac descartou a questão e ficou com geração beat.
De acordo com o ensaísta e tradutor Claudio Willer, já se falava na existência de uma geração beat antes que esta realmente viesse a público. 

“Foi a partir da leitura de poesia na Six Gallery de São Francisco, em 1955, com a apresentação de Uivo, livro de Ginsberg, e a subsequente publicação de Uivo e Outros Poemas e, em 1957, On the Road, de Kerouac”, diz. Aliás, a amizade entre os dois chegou a ser maior do que a plataforma defendida pelo movimento literário. 

“O antagonismo de suas ideologias e visões de mundo se acentuou com o tempo, mas Ginsberg foi fiel a Kerouac até o fim, e depois disso, ao tratar dele em palestras e artigos. A amizade foi maior do que as diferenças entre um católico provinciano e um budista cosmopolita”, acrescenta Willer.

Os beats são uma espécie de pais do movimento hippie dos anos de 1960, porque colocaram em pauta assuntos tabus, como direito civis, liberdade sexual e uso de drogas. Descrito como homem charmoso e doce, com curiosidade intelectual acima da média, Ginsberg transpirava seu pensamento no que escrevia. 

Além da influência do amigo Kerouac, sua obra tem como uma das principais características conceituais o preceito de primeira ideia ou a melhor ideia. “Sobretudo a ideia de uma prosódia bop, influenciada pelo improviso do jazz e o uso de uma linguagem frequentemente coloquial”, sintetiza Lopes. “Ginsberg também fez experiências com vários estilos e formas durante sua extensa carreira.”

Carreira que foi reconhecida pelo pai, Louis Ginsberg, precocemente. Na compilação de entrevistas Mente Espontânea (Editora Novo Século, 2013), o poeta diz que o pai o reconheceu como artista antes da publicação de Uivo, em 1956 (o livro na época foi apreendido pela polícia de São Francisco por ser considerado obsceno). Ginsberg acrescenta que o pai sabia que ele escrevia desde os 15 anos. No entanto, o pai ficou tocado de fato com Kaddish e outros poemas (1961), livro que o fez chorar, de acordo com Allen Ginsberg. A cena teria feito o escritor exclamar: “Poxa, fazer declarações e abrir a consciência até chegar às lágrimas!”.

Caderno de viagens

Homem de declarações surpreendentes, suas frases não eram aleatórias, mas fruto de constante ruminação, combinando conceitos e sentimentos para cada situação. Quem atestou isso de perto foi Rodrigo Garcia Lopes, que o entrevistou pessoalmente, em 1990. Segundo Lopes, a conversa foi acertada com antecedência, mas, ao se apresentar ao poeta, Ginsberg afirmou não se lembrar do combinado. 

“Digamos que quase tivemos um entrevero. Mais tarde eu o abordei de novo, o convenci, e ele desistiu. No dia seguinte, a entrevista ocorreu dentro de um fusca verde de um agente literário, ex-hippie, e depois na sala da casa desse amigo. Foi maravilhoso, ele parecia o velho Ginsberg. Uma mente brilhante. E com certeza uma das melhores entrevistas que já fiz”, confessa.

Não apenas sua mente era inquieta, mas os pés também romperam fronteiras. Cresceu na cidade de Paterson, também localizada no estado de Nova Jersey.  Em 1943, entrou para o Columbia College, com a intenção de ser advogado, o que foi deixado de lado quando se aproximou da literatura. Em 1947, ingressou na Marinha Mercante e partiu para a África, onde estreitou os laços com as filosofias orientais, budismo e a própria poesia. Nos traços desse mapa frenético, Ginsberg ainda viajou para a América Latina, Europa Oriental, Índia; voltou aos Estados Unidos e não se calou frente à Guerra do Vietnã. 

Com seus versos transgressores transformados em sucessos editoriais, foi premiado em 1974 pelo National Book Award e, em 1992, homenageado com a medalha de Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras pelo Ministério da Cultura francês. De revolucionário a escritor reconhecido e premiado, foi absorvido pela cultura pop, gravando com a banda inglesa The Clash, Bob Dylan e colaborando com Philip Glass no álbum Hydrogen Jukebox (1993).

A partir da década de 1970, deu aulas em cursos de verão e no Brooklyn College e, mesmo doente, não parou de colocar o pé na estrada, publicando e viajando por vários países. “À época de sua morte, em 5 de abril de 1997, o livro Howl e Outros Poemas havia vendido mais de 800 mil exemplares e sido traduzido para mais de 25 línguas”, afirma Lopes. “Uivo foi um dos últimos poemas fortes de nosso tempo, daqueles que marcam uma era e são relidos e reinterpretados pelas novas gerações.” E a mística de Ginsberg, segue intacta, aberta aos novos olhos e ouvidos.

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