A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 33/2009, que pretende reinstituir a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da profissão e foi aprovada no Senado dia 7 de agosto, se fundamenta na defesa da ideia do jornalismo profissional. Trata-se de uma ideia revolucionária: surgiu com a modernização do jornalismo, na primeira metade do século 20, que preconizou separar os interesses dos proprietários dos meios de comunicação e anunciantes da equipe jornalística.
João Alexandre Peschanski
João Alexandre Peschanski
Expressão dessa forma de pensar foi, nos Estados Unidos, a Comissão Hutchins, de 1947, que redigiu um dos primeiros códigos de ética da profissão. Esse documento estabeleceu uma visão transformadora à época: o jornalismo teria de ser exercido de maneira responsável, sem abuso de poder, até mesmo porque o mau jornalismo podia ter consequências deploráveis para o bem-estar da sociedade, o princípio máximo da atuação jornalística. O exercício do jornalismo tinha de ser neutro, independente dos pontos de vista de indivíduos e organizações poderosas.
No Brasil, a ideia do jornalismo profissional chegou mais tarde. Durante a primeira metade do século 20, os principais meios de comunicação, com raras exceções, veiculavam explicitamente os interesses de seus donos ou aliados. Foi o período de ouro do conglomerado Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e do jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Sob influência direta da experiência estadunidense, houve na década de 1950 algumas tentativas de implementar o jornalismo profissional, mas não tiveram sucesso.
Curiosamente, foi durante a ditadura, quando parte da mídia foi sistematicamente censurada, que se impuseram reformas para supostamente modernizar o jornalismo brasileiro, interrompendo, segundo os militares à época, o irresponsável populismo midiático pré-1964. O Decreto-Lei 972/1969 limitou, entre outros pontos, o exercício da profissão de jornalista aos portadores de diploma de curso superior de jornalismo. Esse decreto serviu para justificar violências contra a mídia de oposição, especialmente a imprensa alternativa. À época, a maioria dos jornalistas não tinha diploma, ou seja, podia ser eventualmente proibida de exercer a profissão se incomodasse o regime militar. (Sobre a relação entre mídia e ditadura, vale conferir o excepcional trabalho de Beatriz Kushnir, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 [Boitempo, 2004].) Apesar de a primeira faculdade de jornalismo, a Fundação Cásper Líbero, ter sido criada em 1947, muitas escolas de jornalismo só foram abertas na década de 1960, influenciadas aliás pela exigência do decreto. Algumas associações de jornalista consideram, hoje, que, apesar da origem autoritária, a obrigatoriedade do diploma é positiva. Houve reflexões sérias sobre o jornalismo profissional e sua prática no Brasil, em especial as experiências do jornalista Cláudio Abramo, que tentou criar uma linha profissional de jornalismo na virada das décadas de 1970 e 1980, sobre a qual escreveu o importante A regra do jogo (Companhia das Letras, 1988).
A promessa de que, sob exclusividade do jornalista profissional, a notícia seria objetiva, não partidária e precisa simplesmente não se realizou. Nem nos Estados Unidos, nem no Brasil, nem alhures. As reformas profissionalizantes se deram num contexto de redução sistemática dos custos de reportagem. A prática jornalística se tornou, no geral, a veiculação das opiniões de fontes oficiais; isso é evidentemente menos custoso do que apurar e verificar essas opiniões. Em seu livro Império das ilusões: o fim da capacidade de ler e o triunfo do espetáculo (2009, sem tradução para o português), o repórter Chris Hedges, por sinal vencedor do Pulitzer, revela uma das consequências dessa prática: “A mídia tem acesso à elite apenas se esta relata de maneira fiel o que a elite quer que seja relatado. No momento em que esse pacto se rompe, os repórteres, os repórteres de verdade, são marginalizados e não têm mais acesso às fontes”. Outra consequência é que, quando as fontes oficiais se calam, não há pauta, e o repórter que questionar os silêncios convenientes da elite é taxado de antiprofissional. Além disso, como salienta José Arbex Jr., em Showrnalismo: a notícia como espetáculo (Casa Amarela, 2001), o exercício do jornalismo dito profissional depende em grande parte de notas que recebem de assessores de imprensa e agências noticiosas, reduzindo simultaneamente os custos de produção e a credibilidade do que é publicado. Num contexto de enxugamento das redações, novamente na lógica de economizar custos, a habilidade dos jornalistas de investigar é ainda menor.
É preciso repensar fundamentalmente o sistema de mídia. Defender a promessa do jornalismo profissional, que espera reforçar a PEC 33/2009, é ou irrelevante ou um obstáculo a um projeto de mídia mais participativo e democrático. Isto porque pode enfraquecer a solidariedade entre os produtores sérios de notícia — com ou sem diploma –, uma das forças sociais a serem construídas para mudar o sistema de mídia vigente. Também pode não estar de acordo com a construção de uma alternativa de jornalismo, entendido como um bem público, não mercantilizado, radicalmente democrático e igualitário.
João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário