sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O pêndulo da vulnerabilidade


Conceito de mobilidade espacial da população põe em xeque antigos dogmas sobre migração

Maria Teresa Manfredo
 

Compreender as características e tendências de como a população se movimenta no espaço, assim como analisar as causas e consequências da segregação urbana, são os principais objetivos dos estudos do professor José Marcos Pinto da Cunha, pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. O docente, que é coordenador da linha de pesquisa Redistribuição Espacial da População e Urbanização, explica que os processos investigados por ele nunca são simples. “Diversos e complexos são os fatores subjacentes aos deslocamentos populacionais de uma área a outra”, aponta.
“No passado, particularmente nos países em desenvolvimento, como era o caso do Brasil, quando a migração de mais longa distância era a que ditava o compasso do fenômeno, talvez fosse mais fácil pensá-la a partir de categorias mais fechadas como origem/destino, urbano/rural, industrial/não industrial etc. Hoje, a questão se coloca de forma mais complexa.”, afirma.
Por isso mesmo, o pesquisador prefere falar em “mobilidade espacial da população” do que usar diretamente o termo migração. Mobilidade espacial é um fenômeno que pode envolver não apenas a migração, considerada como mudança de lugar de residência, mas também os deslocamentos regulares, dos quais os mais tratados pelos demógrafos são os movimentos pendulares. Trata-se de deslocamentos invariavelmente diários, por razões de trabalho ou estudo, cruzando os limites geográficos de duas unidades espaciais, em percurso de ida e volta. Segundo José Marcos, tornou-se fundamental ter uma visão mais ampla desse processo – passo importante para se compreender melhor as características, condicionantes e consequências reais da dinâmica da população nos seus vários contextos socioespaciais.
 “Nascer, morrer e migrar são três pilares a partir dos quais se modificam o tamanho, estrutura e distribuição da população. Contrariamente ao que ocorre com as duas primeiras variáveis-chave da demografia, a definição de migração abre enormes pontos para discussão”, enfatiza José Marcos. Segundo o pesquisador, a migração, que é parte constitutiva do pensar demográfico, deve ser encarada a partir de duas perspectivas: por um lado, como fenômeno demográfico, e por outro, como processo social.
José Marcos destaca que uma característica tem balizado todas essas definições e coloca novamente uma grande dificuldade para estabelecer a noção de migração, em particular na atualidade: a mudança de residência. É cada vez mais difícil definir o que seria uma mudança permanente ou não de domicílio, o que colocaria em xeque definições já estabelecidas do que seja migrar.
Por meio do ponto de vista que encara a migração também como um processo social, além de fenômeno demográfico, José Marcos destaca o conceito de “espaço de vida”, considerado como a porção na qual o indivíduo realiza todas suas atividades.
Um caso emblemático dessa discussão seria a migração (ou mobilidade residencial) que ocorre dentro das regiões metropolitanas, denominada por José Marcos como intrametropolitana. Para o demógrafo, este fenômeno não apenas interfere no crescimento e na forma das grandes aglomerações urbanas do país, como também reflete, em muitos sentidos, a redistribuição da população no espaço metropolitano. Assim, embora implique em mudança de residência – mesmo que de forma não definitiva –, a mobilidade intrametropolitana não necessariamente resulta em mudanças no espaço de vida e, portanto, não constituiria migração.
Ademais, o pesquisador lembra que um dos tipos de deslocamento espacial mais comum hoje em dia, a mobilidade pendular, seria uma das faces mais visíveis deste processo: muda-se de lugar, mas não se perde o vínculo pré-existente com outro território.
“Neste sentido, pensar de maneira mais geral na mobilidade espacial da população talvez fosse o mais adequado para nos desprendermos tanto de certos pressupostos e visões ultrapassadas que nos acompanharam até pouco tempo, quanto para vislumbrar novos conceitos, novas relações entre estes movimentos populacionais e, mais que isso, novas formas de compreender a dinâmica demográfica de nosso país e mais especificamente de nossas cidades e aglomerações urbanas”, destaca.
Assim, se no passado a complexidade e a diversidade das formas de movimento da população no espaço eram ofuscadas pelas grandes tendências da migração no Brasil, sobretudo a rural-urbana, hoje elas se manifestam com toda força, não apenas reproduzindo alguns aspectos já presentes nas décadas anteriores, mas também apresentando novas características, fenômenos, condicionantes e consequências.
Pobreza multifacetada
José Marcos defende que a diversidade e a complexidade de movimentos da população no espaço exigem novos esforços teóricos e metodológicos, a ampliação das fontes e tipos de dados coletados, bem como a utilização cada vez mais criativa das informações existentes.
Nesse contexto, uma de suas recentes conclusões é a de que não é verdade que a cidade é democrática e igualitária. Também não é verdade que haja apenas o recorte econômico para classificar a diferenciação social ou o que seja a pobreza ou riqueza. O demógrafo explica que há uma clivagem socioespacial muito forte que marca nossa sociedade, sendo que essa demarcação influencia diretamente as situações de pobreza e seu enfrentamento.
Outro ponto destacado por José Marcos em seus estudos recentes é o de pensar na pobreza como algo mais multifacetado do que a visão simplista de que pobre é a pessoa que tem ou não recursos financeiros – insuficiência de renda, no caso. “Pessoas que ganham a mesma faixa de renda, estando em lugares diferentes na metrópole, vão responder de maneiras diferentes para os riscos sociais e econômicos”, afirma. “As oportunidades das metrópoles estão influenciadas pelo lugar onde as pessoas moram. O espaço realmente importa dentro da análise demográfica”.
Na opinião do pesquisador, a problemática das aglomerações urbanas não se esgota apenas pela consideração do aumento de tamanho e concentração demográfica, mas pelos novos limites e possibilidades que criam para o enfrentamento dos desafios cotidianos dos cidadãos.
Sob esta visão, pobreza seria mais do que ter ou não ter dinheiro no bolso, já que existem outros elementos por trás dessa noção. A pobreza, na opinião do pesquisador, seria multidimensional. Mais do que insuficiência de renda, há outros elementos que precisam ser levados em conta. A infraestrutura de um bairro e o acesso que as pessoas têm aos serviços locais, por exemplo, são dimensões que interferem na situação de pobreza. “Podemos encontrar pessoas na mesma faixa de renda e motivadas por uma ‘geografia de oportunidades’, que estarão em situações totalmente diferentes uma da outra; gente com mais acesso, mais próxima de serviços mais eficientes, qualitativamente melhores, vai responder de maneira diferente aos problemas da escassez de renda”, destaca o professor.
Pensando na forma de acesso aos serviços, por exemplo, seus estudos recentes procuraram incorporar novas dimensões, entre os quais: dados sobre o entorno do domicílio, sobre as ruas do bairro e sobre acessibilidade e qualidade do acesso a determinados serviços como água, lixo, transporte, saúde, educação etc.
Todas essas conclusões são frutos de um projeto de pesquisa coordenado por José Marcos sobre urbanização, migração e suas consequências sociais e ambientais, no contexto do interior do Estado de São Paulo. O Projeto Dinâmica Intrametropolitana e Vulnerabilidade Sociodemográfica nas Metrópoles do Interior Paulista: Campinas e Santos – apoiado pela Fapesp e CNPq e que agregou entre 2003 e 2009 mais de 30 participantes, entre professores do Nepo e alunos de graduação e pós-graduação de vários programas da Unicamp – encontrou, nos estudos sobre vulnerabilidade social, um caminho para captar as dimensões sociais e demográficas da realidade metropolitana.
De acordo com a abordagem deste projeto, a capacidade dos indivíduos ou dos grupos domésticos de responder aos riscos sociais, econômicos e ambientais contemporâneos seria mediada não só pela posição que ocupam na estrutura social como também por uma série de condicionantes que incluem velhos e novos padrões de ocupação do território metropolitano.
A escolha desse conceito como eixo teórico deveu-se ao fato de que, ao contrário do enfoque da pobreza, a ideia de vulnerabilidade permite trabalhar não apenas com as necessidades das pessoas mais carentes, mas também com os recursos e potenciais de que elas dispõem para enfrentar os riscos impostos pelas privações. Assim, permite considerar outras dimensões fundamentais para captar distinções entre grupos com os mesmos níveis salariais ou de consumo.

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