“Trabalho para me preparar para a vida”. Essa frase, dita por um menino de 14 anos, impressionou a coordenadora de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) do Brasil, que conduzia encontros para um estudo sobre exclusão escolar no país. “Aquilo acabou comigo. Não deveria ser a escola, a infância a preparar para a vida?”, pergunta Maria de Salete Silva.
Maria Denise Galvani
Maria Denise Galvani
Para proteger a infância e a adolescência, a legislação brasileira proíbe qualquer trabalho para crianças com menos de 14 anos e reconhece o direito do adolescente à profissionalização, desde que com “respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, segundo o artigo 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
De acordo com Renato Mendes, coordenador de erradicação do trabalho infantil da OIT e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, são três os aspectos do desenvolvimento individual afetados pelo trabalho infantil: o aproveitamento escolar, a saúde e a socialização.
Educação
No estudo da Unicef, conduzido simultaneamente em mais de 20 países, concluiu-se que o trabalho infantil contribui duplamente para a exclusão escolar: de forma direta, no caso das crianças que deixam a escola para trabalhar; e de forma indireta, porque o trabalho prejudica o desempenho escolar, e o aluno com defasagem de aprendizado deixa a escola mais facilmente. “O traballho infantil e o atraso escolar são os fatores universais da exclusão escolar, em todos os países”, concluiu Salete.
A pesquisa encontrou defasagem idade-série com maior frequência entre as crianças que trabalham: em 2006, 68,4% dos meninos e 49,4% das meninas que trabalhavam estavam atrasados na escola, enquanto esse percentual cai para 50,5% e 41,3%, respectivamente, entre meninos e meninas que não trabalham.
No Brasil, segundo relatório da Unicef, publicado em agosto deste ano, são 3,6 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola. Para eles, frequentar a escola seria obrigatório, de acordo com a legislação brasileira. “Não se pode chamar isso de acesso universal à educação, temos insistido em derrubar esse mito no Brasil. Mesmo na faixa do Ensino Fundamental (dos 6 aos 14 anos), em que 98% estão matriculados, a parcela dos 2% fora da escola representa mais de 600 mil crianças”, diz Maria Salete.
Como os dois grandes fatores determinantes da exclusão, figuram o trabalho infantil e o atraso escolar. Por isso, universalizar a matrícula sem investir na qualidade da escola e no acompanhamento adequado da criança é “enxugar gelo”, nas palavras da representante do Unicef. “As escolas poderiam se envolver muito mais no combate ao trabalho infantil e à vulnerabilidade. Elas precisam sentir que também são parte da rede de atenção e do sistema de garantias à criança”, afirma.
Saúde
Um exemplo da combinação de esforços vindos de várias áreas para a erradicação do trabalho infantil é um termo de cooperação assinado entre o Ministério da Saúde e o Ministério Público do Trabalho (MPT) no final de 2010. Desde 2004, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem procedimentos para identificar se trabalham os menores de 18 anos atendidos na rede pública de saúde. O acordo com o MPT permitiu mais eficiência no encaminhamento dessas crianças e jovens à rede de proteção local.
Carmen Silveira, coordenadora de vigilância da saúde do trabalho no Ministério da Saúde, integra ainda grupos de trabalho interministerais que estudam maneiras de melhorar essa articulação. Segundo ela, os postos de atendimento emergencial têm condições de identificar se crianças e jovens se acidentaram ou desenvolveram alguma doença em função do trabalho.
Entre 2007 e 2011, levantamento preliminar do SUS identificou mais de 7,5 mil casos no país, muitos envolvendo acidentes de trabalho doméstico ou no campo. Segundo Renato Mendes, da OIT, acidentes de trabalho atingem duas vezes mais crianças que adultos, já que elas não atingiram a maturidade do de desenvolvimento físico e motor. “A visão periférica, por exemplo, só chega ao fim de seu desenvolvimento entre os 18 e 21 anos. Descobriu-se que, por esse motivo, é altíssimo o índice de acidentes entre crianças e adolescentes que trabalham na colheita do babaçu, uma árvore espinhenta. Algumas são feridas nos olhos e perdem à visão”, diz.
Socialização
Ainda do ponto de vista da saúde, a convivência de crianças entre si é importante para seu pleno desenvolvimento. “O contato com o lúdico é importante”, diz Carmen. O “lúdico”, essencial ao desenvolvimento infantil, envolve contato com outras crianças e tempo de brincadeira, que são roubados por uma jornada de trabalho.
Crianças e adolescentes em condições de descobrir e exercitar seus potenciais tornam-se adultos mais preparados para a vida, concordam especialistas de várias áreas, especialmente em sociedades e mercados de trabalho cada vez mais exigentes. O economista Márcio Pochmann, especialista em estudos do trabalho, defende, por exemplo, que o ingresso no mercado de trabalho moderno deveria acontecer depois de um ciclo de educação intensiva e formação de personalidade que, em geral, só vai se concluir depois dos 20 anos.
Pela experiência de Salete, do Unicef, é uma questão delicada convencer a sociedade de que trabalho não só não ajuda, como também atrapalha o desenvolvimento da criança. “Não é que os pais não valorizem a formação do filho. Muitos querem que os filhos estudem, tenham oportunidades que eles próprios não tiveram, mas não conseguem entender que trabalho desprotegido não é formação”, afirma. “É comum achar que o menino que trabalha no campo está aprendendo o ofício do pai, e que a menina que olha os irmãos treina para um dia cuidar dos próprios filhos”.
A defasagem escolar, como consequência do trabalho infantil, também é um problema impedindo a socialização adequada das crianças e adolescentes com colegas da mesma idade. “Nos últimos anos do Ensino Fundamental, isso fica muito evidente. Metade dos alunos de 15 a 17 anos, que deveriam estar no ensino Médio, estão no Ensino Fundamental”, diz Salete, do Unicef.
O trabalho desprotegido na faixa etária dos 15 aos 17 anos tem preocupado, e equacionar o problema da educação de qualidade é fundamental para manter o interesse dos jovens na escola. “Acontece muito: o adolescente, desanimado, para de estudar para fazer algum trabalho que lhe parece mais atraente. Aí ele volta no ano seguinte para a Educação de Jovens e Adultos. Como esperar que o adolescente sinta que a escola é lugar para ele, se ora ele é tratado como uma criança grande, ora como um adulto pequeno?”, pergunta Salete.
Maria Denise Galvani é da Repórter Brasil
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