A partir de 1920, com rimas fáceis e bom humor, as marchinhas tornaram-se obrigatórias no carnaval. Mais que meros versos de folia, elas são crônicas da política e da sociedade brasileira
Érica Georgino
Érica Georgino
Embora ele seja avesso a receitas, de sua forma saíram algumas das mais famosas letras do carnaval brasileiro, como Maria Sapatão (1980), Bota a Camisinha (1987) - ambas escritas com a colaboração do apresentador de TV Chacrinha, o Abelardo Barbosa, entre outros autores - e Cabeleira do Zezé (1963), parceria com Roberto Faissal. O mote desta última veio de um garçom que o atendeu em um restaurante de Copacabana. O cabelo do rapaz chamava tanta atenção que João Roberto lhe disse: "Olha, se eu fosse um caricaturista, faria aqui mesmo um desenho seu. Como não sou dessa arte, faço à minha moda: com rimas e bom humor".
Ó abre alas
Novos gêneros não demoraram a surgir. Pelo Telefone (1917), de Ernesto dos Santos, o Donga, inaugurou a designação "samba", assim como O Pé de Anjo, de Sinhô, e Pois não, de Eduardo Souto e Filomeno Ribeiro, lançaram em 1920 as primeiras marchinhas. Elas já nasceram sazonais. Eram esquecidas durante o ano, mas tinham seu lugar garantido nos dias de folia (como ocorre com o samba-enredo). Tratava-se de uma mistura alegre e bem brasileira dos ritmos da polca, americanos (ragtime e one-step) e até mesmo das marchas das bandas de coreto e de desfiles militares.
Aos poucos, sua temática ganhou corpo: "A marchinha é um gênero sempre marcado pela crônica de época e pela malícia", diz Ricardo Cravo Albin, musicólogo e pesquisador da MPB. "Elas são a expressão do humor popular da praça pública; é um processo de carnavalização em que não se leva nada a sério", afirma Walnice Nogueira Galvão, autora de Ao Som do Samba- Uma Leitura do Carnaval Carioca. Como exemplo, ambos retomam Lamartine Babo, o "rei" do carnaval carioca (veja acima), que em 1932 versava sobre a mulata e aproveitava para cutucar o golpe de Estado getulista em 1930, com a consequente nomeação de interventores para administrar os estados brasileiros. Em uma das estrofes de O teu Cabelo não Nega, Lamartine canta: "Tens um sabor / Bem do Brasil / Tens a alma cor de anil / Mulata, mulatinha, meu amor / Fui nomeado teu tenente-interventor". Além de política, os motes eram as comédias de costumes, o nonsense (com o casamento de rimas sem sentido) e a crítica social, como nos versos "Tomara que chova / Três dias sem parar / A minha grande mágoa / É lá em casa não tem água / E eu preciso me lavar". O péssimo abastecimento de água no Rio inspirou Paquito e Romeu Gentil a lançar, em 1951, Tomara que Chova.
A vitalidade das marchinhas é explicada por sua identificação inata com o carnaval. Assim diz João Roberto Kelly: "O samba-enredo você escuta nos desfiles do sambódromo, mas para os blocos, ruas e nas piadas, para dançar sozinho ou em grupo, o ritmo é a marchinha". Ruth Amaral também arrisca um palpite: "As pessoas são muito austeras e só têm esses dias do ano para se esbaldarem. As marchinhas são singelas, dizem o que o coração pensa, sente e viu".
Os compositores continuam na ativa. E até preparam uma parceria, trocando estrofes na ponte-aérea Rio-SP. Segundo Kelly, o tema é a "dança da boquinha". Boquinha? "Sabe... Aquela boquinha, quando os políticos vão pedir a sua parte..."
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