Os defensores do programa e do quadro apresentam a argumentação de sempre, em prol da “liberdade de criação”, e de que se trata apenas de um programa humorístico. Mas será que a expressão humorística é descolada da realidade?
Dennis de Oliveira
Dennis de Oliveira
O advogado Humberto Adami protocolou ação civil pública contra o programa, alegando desrespeito ao capítulo VI do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288). Adami lembra que essa é a única personagem negra do programa e que aparece nessa condição.
Os defensores do programa e do quadro apresentam a argumentação de sempre, em prol da “liberdade de criação”, e de que se trata apenas de um programa humorístico. Mas será que a expressão humorística é descolada da realidade?
Sobre humor e risos
Já o pensador russo Mikhail Bakhtin atribui ao riso uma possibilidade crítica presente nas culturas populares com as metáforas da inversão. Analisando os carnavais medievais, Bakhtin demonstra que as figuras cômicas e grotescas – o rei Momo, os bufões, homens vestidos de mulheres, entre outros – representam olhares invertidos de uma ordem rigidamente hierarquizada, transformando-se, assim, em um espaço de crítica. Rir da inversão é uma forma de retirar a seriedade (construída ideologicamente) da ordem, principalmente pelo fato de que a comicidade expressa o fato de que uma outra ordem é possível.
Por outro lado, a inversão simbólica de um comportamento desejável e reivindicado pelos movimentos sociais antirracistas (o comportamento racista como algo cômico) é uma crítica ao antirracismo, é a sua desqualificação e desmoralização.
Em um país no qual o racismo é uma prática vigente, mas envergonhada, e negada peremptoriamente por quem o pratica, o deslocamento simbólico do racismo para o humor cumpre duplo papel – o de ser uma expressão pura, sem qualquer “amarra” de códigos éticos e normativos, do racismo mais cruel, e também de ser uma forma de desqualificação do discurso antirracista.
As reações às atitudes de quem critica programas como esse se encontram neste mesmo diapasão: defesa da “liberdade” de criação e ridicularização das ações propostas.
Tendências do racismo à brasileira
O incômodo dos privilegiados racialmente encontra dificuldades em se expressar em um espaço público já contaminado pela condenação moral do racismo enquanto prática política. Daí o seu deslocamento para o campo simbólico, em especial o midiático e, particularmente, o espaço do entretenimento e do humor (lugares de fala em que se consolidam estilos de vida e comportamentos cotidianos).
O racismo midiático tenderá a ser uma das formas mais agudas de expressão da ideologia racista. De qualquer forma, o que se conclui desta rápida análise do caso é que o racismo do programa Zorra Total – e de qualquer outro programa – não tem graça nenhuma.
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