terça-feira, 30 de abril de 2013

Dias difíceis para a 'austeridade'


Dias difíceis para a 'austeridade'

Já foi amplamente noticiada a débâcle que se abateu sobre o mundo teórico da dupla Reinhart-Rogoff, que vinculava percentual da dívida em relação ao PIB (90%) e estagnação econômica. Mas as críticas vêm agora inclusive de dentro do mundo “austero”. A chamada “Troika” trincou.

As críticas à política de “austeridade” vêm agora de todas as partes. Já foi amplamente noticiada a débâcle que se abateu sobre o mundo teórico da dupla Reinhart-Rogoff, que vinculava percentual da dívida em relação ao PIB (90%) e estagnação econômica. Os dois economistas apresentaram defesas na mídia, mas com pouco efeito prático: a sua tese enferrujou, e está condenada ao passivo acadêmico.

Mas as críticas vêm inclusive de dentro do mundo “austero”. A chamada “Troika” trincou. Dias atrás o presidente da Comissão Européia, José Manuel Barroso, deu uma declaração bomba, dizendo que a “austeridade” estava correta no fundamento, mas teria atingido o seu “limite”. Autoridades do FMI, inclusive a presidenta Christine Lagarde, deram declarações pedindo uma visão mais “suave” das políticas de arrocho atualmente em curso na Europa. Lagarde alertou para os “perigos” de uma recuperação em”ritmos desiguais” de diferentes regiões da economia mundial, uma flecha claramente disparada para a Europa, considerada a de velocidade mais “retardada”, se é que se pode falar em “retardo” no caso europeu. Melhor seria dizer que ela vai na contramão, impondo a partir da Zona do Euro o “austero arrocho” que levou a uma taxa de desemprego recorde na União Européia: 26 milhões de trabalhadores, 4 milhões a mais do que o dobro da população de São Paulo.

Estas declarações provocaram manifestações em defesa da “austeridade”, de Wall Street a Jörg Asmussen, membro do Comitê Executivo do Banco Central Europeu (membro também do SPD alemão). De um modo geral, vários analistas vêm apontando a formação de dois blocos dentro da “Troika”, com o FMI e pelo menos parte da Comissão Européia de um lado, defendendo uma versão mais “light” da “austeridade”, e o Banco Central Europeu (ainda fortemente influenciado pelo Banco Central Alemão), defensor da atual rigidez política e econômica.

Perguntada se de fato “o parafuso da austeridade tinha sido apertado demais”, a chanceler Ângela Merkel saiu pela tangente semântica. Disse ela que houve um deslizamento de sentido, que o que antes se chamava de “poupança, ou consolidação ou orçamento equilibrado” passou a se chamar de “austeridade”, ganhando, de fato, uma conotação “má” ('NY Times', 26/04/2013, “Europe Facing More Pressure to Reconsider Cuts as a Cure”, por Andrew Higgings). 

A abordagem semântica também foi posta em evidência por pronunciamento de Olli Rehn, da Comissão de Finanças da Comissão Européia, considerado um “linha dura” da “austeridade”, perante um Parlamento Europeu descrito genericamente como “hostil”. Sua argumentação, já apresentada antes, foi a de que, com os mercados “em calmaria” diante dos ajustes já feitos, seria possível que a política de “consolidação fiscal” – essa foi a expressão usada – seguisse um ritmo mais suave. O próprio Asmussen, do BCE também, aderiu a este eufemismo tecnocrático.

Entretanto o “ajuste semântico” não é sinal absoluto de que haverá um “ajuste”profundo na política em curso, pelo menos até setembro, quando ocorrem as eleições tidas como as mais importantes do ano, para o Bundestag, o Parlamento alemão. É de se perguntar se a própria chanceler alemã fará até mesmo o pequeno “ajuste semântico”, trocando de público a “austeridade” pela “consolidação fiscal”, porque o primeiro termo parece ser mais explícito e do agrado para a mentalidade de “contenção moral” que vem caracterizando a cultura econômica vulgarizada no país de Lutero e Max Weber.

Os arautos da “austeridade” sempre encontram novas “ilhas de argumentação” em meio ao naufrágio que esta política vem provocando nos países que são vítimas de sua “ajuda”. Estas ilhas agora deslocam-se para o Báltico, onde os governantes de países como a Estônia e a Lituânia tecem loas à “austeridade”, apontando-a como responsável pela sua recuperação depois de crises fragorosas no seu sistema financeiro. A presidenta da Lituânia, Dalia Grybauskaite, deu uma entrevista à 'Der Spiegel' (26/04/2013, “Brussels was Target Before, now it’s Merkel”) onde, além de defender ardorosamente a “austeridade” como indutora da recuperação econômica, tece loas e mais loas à chanceler Ângela Merkel. Perguntada se a chanceler alemã seria uma boa presidenta da U. E., Grybauskaite respondeu que “ela seria boa em qualquer lugar”. Deve-se assinalar, entretanto, que a “recuperação” da Estônia e da Lituânia não impede estes países de terem altos índices de desemprego, respectivamente 11,7% e 10%. Estes índices não são maiores porque uma parte dos desempregados emigra para outros países próximos.

Além da preocupação com o desemprego (27% na Espanha, 57% entre os jovens), outra preocupação que levou a estas manifestações oscilantes em torno da “austeridade”, foi o crescimento vertiginoso da desilusão com a União Européia. Pesquisa realizada nos seis países mais populosos da União, com 2/3 (350 milhões) de seus 500 milhões de habitantes, mostraram índices alarmantes de desconfiança. Foram comparados índices de 2007 e 2012, com os seguintes resultados, respectivamente:

Polônia, 18% e 42%; Itália, 28% e 53%; França, 41% e 56%; Alemanha, 36% e 59%(!); Reino Unido, 49% e 69%; e Espanha, 23% e 72%(!), de todos, o país que apresenta a mudança mais dramática.

Na Alemanha, o novo Partido Alternativa para a Alemanha, anti-euro, atingiu pela primeira vez a cláusula de barreira do Bundestag, 5%. Na Itália, o novo governo do primeiro-ministro Enrico Letta, do PD, foi formado com a participação de Angelino Alfano, secretário do Partido do Povo da Liberdade, do ex-primeiro-ministro Sílvio Berlusconi, hoje um anti-euro e eurocético. Alfano é nada mais nada menos do que o vice-primeiro-ministro e titular do Ministério do Interior.

O sinal mais curioso, entretanto, veio na pequena Islândia, como sempre uma espécie de termômetro 'avant-la-lettre' do que se passa nos interiores vulcânicos da Europa. Na virada do século XX para o XXI, a Islândia tornou-se a menina dos olhos do neo-liberalismo, desregulamentando tudo, inclusive seu sistema financeiro. Em 2008, foi o primeiro país europeu a afundar na marola da crise do Lehman Brothers e outras agências financeiras dos E. U. A. Foi também o primeiro país a se recuperar, depois de uma dramática série de manifestações e de uma troca de governo, com os social-democratas subindo ao poder, em coligação com os Verdes. Houve uma devassa no seu sistema bancário, e o país entrou em vias de recuperação. O desemprego caiu para pouco mais de 5%.

Entretanto no último fim-de-semana as eleições trouxeram de volta o Partido Independente, vastamente descrito como o responsável pela crise de 2008, com 26,5% da votação. Com o Partido Progressivo, também conservador, deve ter uma maioria folgada no Parlamento, com 38 cadeiras entre 63. O Partido Social-Democrata, até bem pouco tempo tido como o favorito, ficou com apenas 13,5% dos votos e nove cadeiras.

Um retorno da lógica conservadora anterior? Em termos. Em primeiro lugar a P. I. mudou sua retórica, falando agora na defesa dos empregos, numa diminuição de impostos e na resolução do problema – que permanece para larga parcela da população – de hipotecas que não têm como ser pagas. Além disso, defendeu a “reestruturação” – ou seja, cortes – das dívidas de seu sistema financeiro para credores internacionais, antes algo impensável para o partido.

Por outro lado, vários analistas na mídia vêm apontando que a principal causa da derrocada dos social-democratas foi sua insistente defesa da entrada da Islândia na União Européia, coisa que, no país, larga maioria parece abominar.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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