terça-feira, 30 de abril de 2013

Existe diálogo em São Paulo, mas que diálogo queremos?


Existe diálogo em São Paulo, mas que diálogo queremos?

Os primeiros cem dias do governo Haddad supriram uma carência de diálogo entre a administração e a sociedade. Esse processo é um marco no diálogo com a população, depois do vácuo deixado pelas administrações anteriores. Mas a Frente de Entidades em Defesa do Plano Diretor elenca pelo menos duas ressalvas para que haja eficácia e democracia no diálogo entre a prefeitura, a sociedade civil e os movimentos populares. O artigo é de Luciana Itikawa e Benedito Barbosa.

A promessa do diálogo

No dia 27 de Abril começou o processo participativo de discussão do novo Plano Diretor da cidade de São Paulo. Esse processo é um marco no diálogo com a população, depois do vácuo deixado pelas administrações anteriores. 

De fato, os primeiros cem dias do governo de Fernando Haddad foram caracterizados por suprir uma carência de diálogo entre a administração e a sociedade paulistana, conforme apontou Nabil Bonduki em seu artigo na Carta Capital do dia 14 de abril de 2013. Segundo Bonduki, ainda é cedo para termos uma avaliação sobre os resultados e o monitoramento dos encaminhamentos.

O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos vem monitorando há mais de 20 anos alguns canais de participação e controle social nos temas ligados à moradia, população em situação de rua, coleta seletiva, população indígena na cidade e comércio ambulante.

No dia 9 de abril, o Fórum dos Trabalhadores Ambulantes da Cidade de São Paulo iniciou um diálogo com a Prefeitura e o secretário de Coordenação das Subprefeituras, Francisco Macena. O Fórum estava representado por ambulantes das regiões de Santana, Brás, Lapa, São Miguel Paulista, Jabaquara, Conceição, República, Sé e pela equipe do Projeto “Trabalho Informal e Direito à Cidade” do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. 

A gestão anterior, do então prefeito Gilberto Kassab, foi marcada por uma série de irregularidades e um processo de retirada em massa do comércio ambulante, que culminou na proibição total da atividade. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que estavam monitorando todas as ilegalidades dos processos, escreveram em conjunto uma Ação Civil Pública que defendeu, entre várias questões, o direito do ambulante de participar das decisões que os afetem (Direito à Participação Popular) e o direito de ter um espaço planejado na cidade para trabalhar (Direito à Cidade). Em junho de 2012, a Justiça concedeu medida liminar que permitiu o retorno dos ambulantes que tiveram suas licenças cassadas no ano de 2012.

Com a mudança de gestão, o Fórum dos Ambulantes mobilizou-se para dialogar com a Prefeitura para reestabelecer o diálogo e apresentar suas propostas, uma vez que ainda algumas irregularidades ainda acontecem em ações da administração municipal.

Em relação aos ambulantes, Haddad declarou apenas que cumpriria a lei e se comprometeria com um processo de diálogo com os trabalhadores e os diversos setores da sociedade. O prefeito assumiu que este processo deve acontecer a partir da constituição de um grupo de trabalho dirigido por Macena, no qual devem ser discutidos parâmetros para o planejamento do comércio ambulante que nortearão as ações nas diversas regiões.

O significado e os riscos do diálogo
Segundo a professora Ermínia Maricato, “as conquistas de reivindicações concretas imediatas são alimento essencial para qualquer movimento reivindicatório de massas”. Para ela, nunca fomos tão participativos, porém, nunca a esfera política foi tão cheia e, ao mesmo tempo, tão vazia.

Embora a participação e o controle sobre as ações do Estado sejam conquistas legais, verificadas em diversos marcos da legislação nacional e internacional, a sua realização enfrenta obstáculos. Entre estes, estão a subordinação dos espaços de diálogo aos interesses privados e individuais e a restrição dos poderes de decisão. 

O enfraquecimento dos espaços de diálogo, por meio da redução do poder decisório e propositivo, se evidencia no caráter meramente formal atribuído às comissões e conselhos, instituídos com o objetivo de conferir legalidade às ações do Estado. 

Além disso, diante da complexidade das coalizões e das contradições que resultam dos contrapesos dos poderes, o Estado situa-se, muitas vezes, entre a omissão e a cooptação daquele que senta à sua frente na mesa para negociar. Por outro lado, quando um grupo que negocia não está coeso e fortalecido o suficiente para ter a clareza do papel reivindicatório coletivo, pode cair na armadilha da negociação das demandas no ‘varejão’ a partir das ofertas residuais e escassas.

Outro risco muito recorrente, largamente cometido por administrações dos mais variados espectros políticos, é fazer do espaço de diálogo um evento de marketing governamental ou um debate entre pares, omitindo o contraditório. 

O Centro Gaspar Garcia presenciou no dia 17 de abril, em um fórum de discussões sobre o tema “Espaço Público” promovido pela Prefeitura, a apresentação de projetos de reurbanização de áreas públicas de um escritório dinamarquês para as cidades de Toronto, Nova York e Copenhague. Neste fórum, não houve nenhuma menção aos conflitos e contradições presentes nas nossas ruas, particularmente sobre as necessidades e direitos de catadores de materiais recicláveis, movimentos de moradia, trabalhadores ambulantes e população em situação de rua.

Algumas entidades e movimentos populares também se manifestaram contra alguns processos que vêm correndo paralelamente ao Plano Diretor e, apesar do grande impacto que produzirão, não têm sido discutidos ampla e extensamente com a população: o Arco do Futuro, o Plano Municipal para a Copa do Mundo de 2014 e o Projeto ‘Casa Paulista’. Este último prevê a construção de 20 mil unidades de moradia no centro de São Paulo. 

As principais críticas, expressas em carta aberta assinada pelo Centro Gaspar Garcia, Central de Movimentos Populares, União dos Movimentos de Moradia, LabHab e LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, são a condução do processo e o descolamento entre planejamento urbano, participação social e formas de financiamento. Para Raquel Rolnik, relatora da ONU sobre questões relacionadas a moradia, há uma inversão nesse processo participativo: começou com a discussão da forma de financiamento, passando pelo planejamento e deixou, por último, para comunicar à população, sem o direito ao contraditório. 

No Conselho Consultivo do Plano de Metas instituído pelo prefeito no dia 11 de abril, por exemplo, composto por representantes da Prefeitura e da sociedade civil, não estão discriminados atribuições, responsabilidades e instrumentos de monitoramento e fiscalização dos compromissos assumidos. Além disso, existe um abismo entre os compromissos enunciados no Plano de Metas, devidamente amarrados e contabilizados no planejamento financeiro do município, e a real aplicabilidade das propostas que estão sendo mostradas pelos diversos grupos sociais. Isso gera uma enorme expectativa a todos os participantes, porém, sem respostas concretas a suas demandas.

Qualificar o diálogo
A Prefeitura se comprometeu, em documento que explica a metodologia participativa das plenárias de discussão do Plano Diretor, dar extensa divulgação das reuniões, preparar cartilhas sobre o Plano com linguagem acessível, bem como democratizar o debate com os vários grupos sociais no território. Entretanto, no manifesto do dia 19 de abril, a Frente de Entidades em Defesa do Plano Diretor da cidade de São Paulo elenca pelo menos duas ressalvas para que a democratização seja efetiva no processo de diálogo entre a Prefeitura, sociedade civil e movimentos populares:

• As audiências precisam ter caráter vinculante, gravadas e devidamente lavradas em atas cujos conteúdos devem ser pensados em normativas (Portarias, Decretos, etc.). 

• A prefeitura precisa garantir audiências devolutivas para manifestação do contraditório e para apresentação das propostas não consolidadas para que os grupos não contemplados possam se manifestar.

Diálogo para quem não quer diálogo
A participação na elaboração e discussão das políticas públicas e o controle sobre a gestão e a destinação dos investimentos são resultado de larga trajetória de luta dos movimentos populares. Este direito garantido na Constituição Federal é um divisor de águas na relação do Estado com seus cidadãos, como uma concepção contemporânea da cidadania: a democracia direta.

Entretanto, há ainda aqueles que não só o repudiam, como contrariam a Constituição. Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, manifestou nesta quinta feira, dia 25 de abril, “que excesso de democracia afeta a organização da Copa”. Para Joseph Blatter, presidente da FIFA, a Copa do Mundo da Argentina em 1978 pode conciliar o povo com o sistema ditatorial da época. Eles podem saber sobre negócios, mas certamente nunca saberão o que significa reforma urbana, reforma agrária, Mães de Maio ou Diretas Já.

A luta por canais de participação e controle social não pode estar descolada do significado dos processos participativos. Ocupar um espaço não é um fim em si mesmo. A participação e controle social sobre o Estado têm um significado político de transformação social, ou seja, da efetivação da justa distribuição dos benefícios e ônus dos processos de urbanização e de crescimento econômico.

(*) Luciana Itikawa é coordenadora do Projeto Trabalho Informal e Direito à Cidade desenvolvido no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, com apoio da Christian Aid e União Europeia. Benedito Barbosa é advogado da União dos Movimentos de Moradia e educador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

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