sábado, 1 de junho de 2013

Ary Barroso ou torcer é muito perigoso...


A coluna ‘Deixa Falar: o Megafone do Esporte’ apresenta nesta semana um artigo do antropólogo e professor da Universidade Federal Fluminense Marcos Alvito sobre Ary Barroso. O genial compositor de 'Aquarela do Brasil' era também radialista, jornalista, boêmio e político - foi vereador pela UDN. Mas, acima de tudo, era um torcedor de futebol.

O último jogo transmitido por Ary Barroso no rádio foi a tragédia do Maracanã em 1950. Depois da derrota para o Uruguai, decidiu abandonar para sempre a carreira de locutor esportivo. Naquele dia nem mesmo apareceu na Rádio Tupi para comandar a resenha esportiva dominical. Pelo menos ele conseguira irradiar Brasil e Uruguai até o fim. Quando de um jogo anterior da Copa, a vitória do Brasil sobre a Iugoslávia por 2x0, assim que Zizinho fez o gol Ary abandonou o microfone. O mesmo acontecera em um sul americano na Argentina e no famoso tricampeonato do Flamengo em 1944, conquistado sobre o Vasco no finalzinho da partida em um gol até hoje contestado pelos vascaínos.

Além de compositor genial, radialista, jornalista, boêmio e até vereador pela UDN, o autor de "Aquarela do Brasil" era acima de tudo um torcedor. E acima de tudo um torcedor do Flamengo. Sua parcialidade durante a transmissão dos jogos do seu time de coração era escancarada. Em 1949, a Rádio Tupi contratou Antonio Maria para dividir com ele a narração das partidas, fazendo uma dupla muito original: em um Flamengo e Vasco, por exemplo, Antonio Maria narrava os momentos em que o Vasco estava com a bola, Ary quando o Flamengo tinha a pelota. Em todos os jogos Ary e Antonio Maria defendiam partidos opostos, uma maneira brilhante e divertida de contemplar todos os torcedores.

Antes da contratação de seu parceiro de narração, todavia, Ary Barroso era o locutor de um time só. Depois que Valido faz o gol que daria ao Flamengo o tricampeonato já mencionado, aos 41 do segundo tempo, Ary Barroso fica tocando sua gaitinha sem parar e quando o Vasco dá a saída ele não transmite mais nada: larga o microfone e vai para a beira do campo comemorar alucinado. Seus colegas tiveram que correr para o microfone. À noite, como sempre, Ary participou do programa esportivo da Tupi, onde o grande debate girou em torno da legalidade ou não do gol rubro-negro. Os vascaínos alegavam que Valido teria se apoiado em Argemiro, half esquerdo do Vasco. Os rubro-negros diziam que Valido tinha pulado muito mais alto e pronto. Quando perguntado, Ary não se fez de rogado, mas surpreendeu a todos com a sua resposta:

"– É verdade. Valido se apoiou no ombro de Argemiro. Melhor do que isso será a decisão do ano que vem: o Flamengo vai ganhar com um gol marcado com a mão, cinco minutos depois do tempo regulamentar, com seu autor em impedimento."

E coroou tudo com uma sonora gargalhada. O vascaíno Sérgio Cabral, que conta esta história, lembra que depois disso o Flamengo ficou sete anos sem ganhar do Vasco. 

A paixão de Ary pelo Flamengo era tanta que ele recusa um convite para ser o diretor musical da Walt Disney Productions. Diante da surpresa de Walt Disney, que lhe pergunta por que não aceitou, Ary teria dito:

"– Because 'don't have' Flamengo here.'"

O amor pelo rubro-negro levou Ary a desafiar seu maior medo: andar de avião. Acontece que o Flamengo queria contratar um jovem jogador paraguaio chamado Modesto Bria, que no futuro viria a ser um homem chave na conquista do tricampeonato de 44. O Fluminense, entretanto, já estava de olho no promissor meio-campista. Ary toma coragem e pede um avião emprestado a seu patrão Assis Chateubriand, vai até o Paraguai, convence os paraguaios e traz Bria para o Flamengo .

A paixão desmedida, com o perdão da redundância, traz não somente alegrias e tristezas, mas também alguns problemas. Ary, que não tinha uma personalidade fácil, criou e teve que enfrentar muitos problemas por causa da sua obsessão com o Flamengo. Seu ídolo maior era Leônidas, o Diamante Negro e foi Ary que batizou o famoso lance como "bicicleta". Sérgio Cabral explica que muitos já o haviam praticado, tanto no Brasil quanto no exterior, mas foi o "marketing" de Ary que associou definitivamente a jogada ao centroavante do Flamengo. Quando o Flamengo vende o craque para o São Paulo por um bom dinheiro, Ary fica furioso: como o presidente do clube tinha fechado o negócio na sexta-feira da Paixão, Ary Barroso começa a chamá-lo de "Judas". 

Já Silvio Pirilo, contratado pelo Flamengo ao Peñarol para substituir Leônidas, passa a ser incansavelmente perseguido por Ary. Se Pirilo perdia um gol, ele não perdoava: 'Imaginem se Leônidas perderia um gol desses. Nunca!'. Pirilo respondeu com gols e marcou 39 gols no campeonato de 1941, batendo o recorde dos campeonatos cariocas (Leônidas fizera 30 no ano anterior). Em 1943, Ary tenta se redimir e faz uma vaquinha entre amigos, arrecadando mais de cinco mil cruzeiros para dar ao centroavante. Pirilo, ainda sentido com as críticas, aceita o dinheiro mas doa a quantia a uma instituição de caridade. Anos depois, defendeu-se dizendo que as críticas eram uma forma de desafiar Pirilo.

Sabendo da sua loucura pelo Flamengo, os adversários o provocavam. Tim, habilidoso ponta direita do Fluminense na década de 1940, era muito criticado por Ary Barroso por não soltar a bola. Ary vivia esbravejando no microfone: 'Solta a bola, Tim!'. Pois bem, depois de uma vitória do Fluminense sobre o Flamengo, Tim, ao ser entrevistado chama a atenção do repórter para uma interessante "coincidência": as críticas a ele eram muito mais duras em dia de FlaxFlu. E completou, sarcástico: 'Pode ficar tranquilo, Ary Barroso, que não vou soltar a bola, não.'.

O curioso é que Ary já torcera para o Fluminense. Pelo menos até 1929, quando fora ver um Fluminense x Andaraí nas Laranjeiras. O então time de Ary precisava vencer de qualquer maneira para ter chances de ser campeão. Ainda no primeiro tempo, todavia, para desespero de Ary, o Fluminense estava perdendo de 3x0. Um diretor desavisado, pede a Ary que toque um pouco de piano 'para divertir os sócios'. Furioso, diz que não veio ali pra divertir ninguém e sim para ver seu Fluminense perder o campeonato. Depois disso, é suspenso do clube e mais tarde expulso por não pagamento de mensalidades, o que não era culpa dele e sim do clube que não enviou ninguém para cobrá-las como de costume. O Fluminense perde o campeonato e o torcedor. Ary fica entre o Botafogo e o América mas acaba tornando-se Flamengo depois de passar a frequentar o clube a convite do ex-jogador Telefone (zagueiro entre 1920-3). 

A pior rivalidade de Ary, todavia, não era com o Fluminense e sim com o time da cruz de Malta. Em 1941 Ary resolveu dar palpite na eleição do Vasco, apoiando seu amigo Ciro Aranha e criticando duramente ao microfone os outros candidatos. Resultado: foi simplesmente proibido de entrar em São Januário, palco dos maiores jogos antes da construção do Maracanã. Ary era Ary. Não se conformou com a proibição, muito pelo contrário. Antes de um Vasco e Fluminense, instalou todo seu equipamento em um telhado de uma casa de onde se podia ver o campo. Os vascaínos descobrem Ary e estendem várias faixas impedindo a visão e a transmissão do jogo. 

Ary não desistiu e no domingo seguinte, quando seu Flamengo jogaria contra o Botafogo, pediu permissão ao diretor do Colégio Pio Americano para transmitir o jogo do alto da escola, ficando no telhado com um binóculo, em uma posição incômoda e sem grande visão do jogo, razão pela qual ia conferindo a transmissão do locutor de outra rádio. Cansado, Ary simplesmente antecipa o final da partida três minutos antes, para o desagrado dos alunos que estavam acompanhando o jogo e a transmissão. Mas isto parece ter sido providencial, porque poucos minutos depois de Ary sair do colégio dezenas de vascaínos chegaram ao local, furiosos, xingando o locutor de todos os palavrões possíveis.

A Associação Brasileira de Imprensa, percebendo a gravidade da situação, intervém e obriga Ary Barroso a fazer as pazes com Antônio Campos, presidente de Vasco, dando a briga por encerrada com um aperto de mão diante de dezenas de repórteres. Mas as relações com a torcida do Vasco continuaram tensas. Contratado para animar um programa de calouros em um circo em Madureira, Ary gonga uma moça, eliminando-a do concurso. O que ele não sabia é que ela era irmã de Isaías, um jogador do Vasco. A plateia, achando que fosse perseguição de Ary, cerca o compositor, que só conseguiu sair do circo com ajuda policial.

Nem todas as suas brigas, todavia, eram causadas pelo amor ao clube da Gávea. Em 1942, quando do Campeonato Sul-Americano de futebol, a Rádio Mayrink Veiga, concorrente da Tupi, consegue um contrato de exclusividade para transmitir os jogos. Ary acha um desaforo que somente Oduvaldo Cozzi tivesse o direito de transmitir os jogos do Brasil. Antes do Brasil e Argentina, vai até Montevidéu disposto a transmitir o jogo de qualquer jeito. Seu rival, todavia, pede a intervenção policial para fazer valer o contrato de exclusividade e consegue impedir Ary. Não seja por isso. Ary viaja até Buenos Aires e de lá "transmite" o jogo a partir da escuta da transmissão do próprio Cozzi e de um locutor argentino.

Em Buenos Aires, aliás, tinha ocorrido uma das maiores aventuras de Ary como locutor. Fora alguns anos antes, em 1937. A final foi entre Brasil e Argentina, no campo do San Lorenzo. O Brasil perdeu de 2x0, graças ao juiz segundo Ary e outros jornalistas brasileiros. Ary, que transmitia o jogo das cadeiras, não poupava "elogios" ao árbitro e torcia apaixonadamente pelo Brasil em meio a um mar de argentinos. Microfone em punho, invade o campo para protestar contra uma marcação do juiz e a certo momento larga tudo para ir incentivar os jogadores brasileiros, tendo que ser substituído. A torcida argentina arremessa objetos na sua direção e ele tem que sair de campo protegido pela polícia.

A gaitinha não era o único elemento musical presente nas transmissões futebolísticas de Ary Barroso. É muito interessante notar a relação que Ary Barroso estabelecia entre a narração de um jogo e a música. Certa vez a Tupi, rádio na qual trabalhava, faz um concurso para locutor esportivo. Apareceram mais de 400 candidatos dos quatro cantos do Brasil. Ary é que ficou encarregado de selecioná-los. Pedia que lessem textos em francês, inglês e espanhol e depois que transmitissem jogos da categoria juvenil. Ficava horas ouvindo as gravações e reclamava da falta de musicalidade. Já sem esperanças, reune os candidatos e dá-lhes uma aula:

"– Transmissão esportiva é como uma escala de piano. O meio do campo é o dó. Aí, vocês percorrem a escala: dó-ré-mi-fá-sol-lá-si e, depois, voltam para o dó. Entenderam?"

Mineiro de Ubá, onde começou o seu amor pelo futebol, Ary Barroso era o goleiro do Aimorés Futebol Clube, onde agarrava de óculos e tudo devido a sua miopia. Sua carreira artística foi toda desenvolvida no Rio, onde chegara com 18 anos, mas Ary também foi locutor em Minas Gerais por um breve período. Aproveitando uma brecha do campeonato carioca de 1943, fatura uns trocados transmitindo jogos para a Rádio Guarani de Belo Horizonte. Anunciado como "O maior locutor esportivo do continente", transmite dois amistosos do Botafogo: contra o América Mineiro e contra o Atlético. É muito bem tratado, apresenta um show de artistas locais na Pampulha e recebe homenagens. Mas como era de se esperar, não perdoa o fato de chover ininterruptamente durante a sua estada na capital mineira: logo faz um samba com o título Chove, chuva, de uma vez.

Ary Barroso estreou no rádio por acaso, em 1936, para substituir Afonso Scola, locutor esportivo da rádio Cruzeiro do Sul, acometido de uma úlcera no estômago. O novato deu um show ao microfone, misturando informações com comentários pessoais, muita irreverência, bom humor e frases de efeito. Foi ele o inventor do "repórter de campo" e o criador de um programa diário sobre futebol: Esportes na Batata.

Apesar de toda a originalidade de Ary Barroso, de seu estilo inconfundível, de suas marcas registradas como a gaitinha e as brincadeiras, não devemos tomar sua trajetória como excepcional. Ela é, na verdade, um exemplo da interdependência entre o campo jornalístico e o campo esportivo no caso brasileiro, sem falar no campo artístico-musical. O próprio Ary parecia ter consciência deste triângulo amoroso entre imprensa-música e futebol: certa vez criticou aqueles que não consideravam Silvio Caldas o maior cantor de sambas do Brasil, dizendo que era a mesma coisa que "falar em futebol e não citar Domingos da Guia". O rádio foi um instrumento fundamental para a popularização do futebol no Brasil e para a difusão da música popular, mas a recíproca era também verdadeira: o futebol e a música eram as principais atrações do rádio, aquilo que trazia para este meio uma audiência massiva. O que explica o papel ímpar de Ary Barroso é o fato dele estar bem inserido nos três campos ao mesmo tempo, um reforçando o outro: era jornalista, locutor esportivo e compositor. Sua postura de torcedor apaixonado, por mais verdadeira que fosse, expressando sua alegria por meio dos sons da gaita, parecia fundir estes três campos em um.

Marcos Alvito é carioca de Botafogo e Flamengo até morrer. É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984. Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Acaba de publicar ‘A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra’ (www.clubedeautores.com.br)

Dois toques do Megafone

1) Foi um sucesso a audiência pública em torno do projeto de lei de três vereadores do Rio de Janeiro, Eliomar Coelho, Renato Cinco e Paulo Pinheiro, propondo que o Engenhão passe a ser denominado Estádio Olímpico João Saldanha. Com mais de 200 presentes, participaram ex-jogadores como Afonsinho e Adalberto (campeão carioca pelo Botafogo em 1957, sob a direção de João Saldanha), jornalistas, músicos e arquitetos como Sabino Barroso, parceiro de Oscar Niemeyer na construção de Brasília.

Foi entregue uma moção de louvor e congratulação aos familiares de João Saldanha, com a assinatura de 32 vereadores. O coral da Câmara dos Vereadores apresentou os hinos de Botafogo, Flamengo, Vasco e Fluminense, realçando o caráter supraclubísitico do nome de Saldanha.

2) A seleção brasileira do Megafone do Esporte: dos 14 integrantes do Megafone do Esporte, apenas 9 escalaram a sua seleção brasileira ideal, refletindo o desânimo frente ao atual estágio do nosso futebol. O editor não compartilha desse pessimismo, embora considere Alemanha, Espanha e Argentina favoritas ao título da Copa do Mundo de 2014. Na média a seleção escolhida foi:

Jefferson; Daniel Alves; Thiago Silva; David Luiz; Marcelo; Paulinho; Ramires; Oscar; Ronaldinho Gaúcho, Neymar e Lucas. Uma observação: Zé Roberto teve quatro votos. Na seleção do Megafone não joga “botinudo”, “volante de contenção” ou “cabeça de bagre.” Te cuida Felipão!!

Deixa Falar: o Megafone do Esporte – criação e edição de Raul Milliet Filho.

Desenhos de Zuca Sardan

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