Internado em instituições francesas para doentes mentais, Van Gogh “traduziu” a obra do desenhista japonês Hiroshige, buscando a cura na calma que percebia na cultura oriental
Christian Ingo Lenz Dunker
Por volta de 1870 o pintor impressionista holandês Vincent van Gogh (1853-1890) ficou fascinado pelas estampas do desenhista japonês Hiroshige (1797-1858). A perfeição das obras era obtida por meio de uma máquina óptica, que permitia inundar a imagem com detalhes de pessoas, animais e cenas da vida cotidiana – um método precursor do que hoje conhecemos como mangá. Podemos pensar também na máquina óptica que Lacan usou como modelo para sua reinterpretação do conceito freudiano de narcisismo. As 36 vistas do Monte Fuji e as
53 etapas da viagem a Tokaido são séries de desenhos que retratam a complexidade das viagens em caravana – mas causam a sensação de que estamos diante de algo profundamente artificial, construído apenas para o deleite do olhar. Na estamparia japonesa, fator decisivo é a aparência e não a estética. A ilustração é um suporte para a meditação do sujeito que deve, ativamente, “fazer a viagem” dispondo, para tanto, de todo o material necessário para a reconstrução desta experiência coletiva.
O que encontramos em Van Gogh é quase o oposto disso. O impacto das cores, a deformação dos traços e a indefinição das figuras impõem uma experiência invasiva, que nos faz ver e sentir o que não está ali, nem disponível nem bem descrito. Somos levados a uma sensação de receptividade, no interior da qual gradualmente nos apossamos do que a “coisa estética” nos obrigou a sentir, dando a ela um destino que nos seria próprio e livre. Ou seja, no primeiro caso podemos “nos servir” da imagem como um meio; no segundo, temos de “nos apropriar”, tomar posse, possuir. No primeiro caso a forma subjuga a cor, no segundo se dá o contrário.
Quando Van Gogh pinta campos, carroças e botas de viagem ele não inventa apenas o “seu Japão”, mas cria outro Ocidente, introduz um novo objeto no real. Hiroshige, ao contrário, não está muito preocupado com sua própria dimensão de objeto. As sagas representadas em sua obra se voltam para o Outro real que vai viver a experiência da viagem, tomando a si mesma como mero equipamento. A Pinacoteca de Paris montou uma exposição cruzada na qual se pode ver como as estampas de Hiroshige foram “traduzidas” por Van Gogh. Nos asilos de Arles ou Saint Rémy, nos quais se internava voluntariamente, ele vivia sua cura como a possibilidade de reencontro da calma e da espontaneidade que percebera no modo de vida oriental. Esta relação, quase terapêutica, que Van Gogh viu entre forma e cor talvez nos ajude a entender algumas variações de nossa atitude diante das imagens. Hiroshige, nascido em uma família de samurais, apresentava inquietude com o excesso de “orientalismo” da pintura tradicional japonesa. Órfão desde a infância, tinha também o seu fascínio, justamente pelo senso de perspectiva ocidental, que veio a introduzir em suas estampas, recriando assim o gênero do Edo. De tal maneira, quando Van Gogh se vê atraído pelo olhar oriental, não estaria ele sendo atraído pela atração que seu próprio olhar "ocidental” causava ao Oriente? Ou, ao contrário, o que Van Gogh reconhecia em Hiroshige era uma experiência de inadequação da interação entre forma e cor, como a sua, mas não pelos mesmos motivos?
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