segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A reinvenção da família


Mulher no mercado, queda da fecundidade e maior expectativa de vida mudam universo doméstico

Isabel Gardenal
 

As investigações mais recentes de demógrafos da linha de pesquisa Família, Gênero e População da Unicamp apontam que, na contramão do que se prega, a família brasileira não está em crise. Mantém-se viva e mais heterogênea do que num passado recente. A memória que as gerações mais velhas guardam de suas experiências familiares certamente não correspondem às realidades contemporâneas, sustenta a demógrafa Maria Coleta Oliveira, coordenadora dessa linha do Núcleo de Estudos da População (Nepo), da qual participam pesquisadores, docentes, pós-doutorandos e alunos de doutorado e mestrado.
A demógrafa é categórica em enfatizar que não se pode mais falar em família brasileira no singular. Segundo ela, há hoje um amplo espaço de reinvenção e uma boa parte dessas mudanças pode ser atribuída à condição da mulher. A sua crescente participação em um mercado de trabalho consolidado no país abre espaço para novas tensões no mundo doméstico. “São tensões que têm a ver com as definições das atribuições de gênero de homens e mulheres”, diz Maria Coleta, que chama a atenção para o fato de a dimensão de gênero estar presente desde o início dos trabalhos do grupo.
Essa visão é compartilhada pela demógrafa Elisabete Bilac, para quem as mudanças da condição feminina questionam o modelo provedor – a mãe em casa, o pai no trabalho –, embora atualmente as mulheres sofram com uma dupla jornada de trabalho.
Processos demográficos fazem parte das mudanças nos arranjos domésticos. Dois deles são especialmente importantes: a queda vertiginosa da taxa de fecundidade e o aumento da expectativa de vida. Ambos os processos tornam imprescindível refletir sobre as relações de gênero e geração, resume Elisabete Bilac.
No Brasil, a fecundidade feminina passou da média de 6,3 filhos por mulher em 1960 para 1,86 em 2010, com impacto óbvio no tamanho das famílias e na descendência de sucessivas gerações, assevera Maria Coleta. Ao mesmo tempo, o envelhecimento porque passa a população brasileira e o aumento da sobrevida alteram o desenho, a configuração e a qualidade das relações familiares, concordam as pesquisadoras.
Ter poucos filhos e uma vida mais longa significa que a mulher viverá mais tempo como mãe de filhos adultos do que as suas próprias mães viveram. Por outro lado, os filhos pequenos de famílias pequenas terão uma infância completamente diferente em termos de sociabilidade. O seu mundo será povoado por personalidades adultas – pai, mãe, avós e professora – e poucos parentes e contemporâneos da mesma geração. 
Observa-se inclusive atualmente uma tendência de crescimento que se reflete na frequência de casais sem filhos nas classes médias e altas, os dink (ou dinc), abreviação do inglês “double income, no children” (ou no kids), traduzida como “renda dupla e ausência de crianças”, destaca Elisabete Bilac.
As relações de conjugalidade também já não são as mesmas, segundo as pesquisas. Em boa parte dos países latino-americanos, entre os quais o Brasil, a união consensual (informal) é uma dimensão histórica recorrente da vida familiar.
Há pouco, o acesso ao casamento era privilégio de camadas sociais com recursos econômicos e sociais. As uniões consensuais, ao contrário, eram associadas às camadas populares que não tinham acesso a cartórios ou não dispunham de recursos para uma cerimônia matrimonial. 
Por influência da Igreja, até o Censo de 1950 não se coletavam dados sobre a união consensual. A informação referia-se ao estado civil e não ao estado conjugal.
As pessoas que viviam nessa condição não eram consideradas como unidas. Um homem anteriormente casado, vivendo com outra mulher, solteira ou desquitada, também não era considerado como vivendo em união. “Por consequência, o censo estava repleto de mulheres solteiras com filhos”, ilustra Elisabete Bilac.
Isso foi alterado já no Censo de 1960, quando as uniões consensuais passaram a ser levadas em conta. E a cada década elas vêm aumentando e se disseminando por todas as classes sociais, a priori entre os jovens, deixando de estar associada exclusivamente à pobreza.
O entendimento dessas mudanças na conjugalidade, explica a demógrafa Gláucia Marcondes, tem sido prejudicado pela falta de bases de dados adequados à avaliação de tendências e transformações de um ponto de vista longitudinal. Pesquisas qualitativas são utilizadas como uma tentativa de sanar parcialmente essas lacunas.
Os homens
A pesquisa “Homens: esses desconhecidos”, coordenada pela demógrafa Maria Coleta, trouxe os homens para o mundo das relações domésticas. Com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a pesquisa é um exemplo das alternativas possíveis para o entendimento das mudanças de gênero e geração no campo de estudos de população.
O estudo, de natureza qualitativa, foi realizado com 154 homens e mulheres com idade entre 24 e 64 anos, provenientes de camadas médias paulistanas, recuperando suas trajetórias familiares, os contextos de suas relações afetivo-sexuais e as vivências de paternidade, próprias e a de seus parceiros.
O projeto sinalizou que os homens das camadas médias passam por momentos de experimentação de novas soluções para o cotidiano de suas relações de companheiros e de pais. Homens das gerações mais jovens revelam a expectativa de que suas mulheres contribuam para o sustento da família e de seu padrão de vida, achado consistente com a tendência detectada mais recentemente de consolidação de um padrão de dupla renda nas famílias.
A pesquisa também mostrou existirem tensões entre as ideias de igualdade entre homens e mulheres, tanto no mundo do trabalho quanto no mundo da casa, e as práticas de gênero ao longo do curso de vida das famílias. Em oposição aos primeiros anos da vida em comum, onde se observa um maior compartilhamento das tarefas domésticas, quando nasce o primeiro filho nota-se um retorno a comportamentos mais convencionais.
Nesse caso, as mulheres ficam mais tempo com os bebês, passando a se ocupar mais da vida doméstica, enquanto os homens refugiam-se em seu papel de provedores. Para isso, contribuem com uma socialização masculina que os fazem se sentir despreparados para as tarefas de cuidado e concepções de gênero que naturalizam a capacidade feminina de ser mãe.
Os resultados do estudo deixam clara a inexistência de soluções mágicas para os conflitos entre as demandas de cuidado e aspirações profissionais e de geração de renda que incidem sobre as mulheres, tema sobre o qual atualmente se debruçam estudiosos das famílias, independentemente de suas especialidades, destaca Maria Coleta.
Elisabete Bilac ressalta que, ao lado desse homem que se torna um pai tradicional, emergem outros padrões, como o do pai que teve uma filha de uma relação eventual e ganhou sua guarda na justiça. Ele criou o bebê e controlou rigorosamente as visitas da mãe.
“A reinvenção da família envolve a reinvenção da paternidade, que passa também por várias transformações, assim como a sua negação. Há homens que não querem ser pais. O que devemos entender é que a paternidade não está mais ligada de modo irreversível à virilidade masculina”, garante a demógrafa.
Tornar-se adulto
Outra linha de investigação do mesmo grupo do Nepo aborda a transição para a vida adulta. Esse processo abarca diversos eventos marcantes da trajetória de vida dos indivíduos, como a saída da escola, entrada no mercado de trabalho, saída da casa dos pais e formação de família.
Os resultados de uma dessas pesquisas, que traça uma comparação entre os censos de 1970 e 2000, indicaram um padrão duplo de entrada na vida adulta. Jovens de baixa renda, definidos na pesquisa como os 20% mais pobres, têm um tempo de juventude inferior àqueles da camada de alta renda, os 20% mais ricos.
Na investigação, ficou notório que particularmente as jovens de baixa renda assumem responsabilidades próprias da vida adulta cerca de sete anos antes do que um jovem de alta renda, relata a demógrafa Joice Vieira, autora do estudo.
A interrupção dos estudos, a urgência em conquistar um trabalho fixo que atenda às suas necessidades de sobrevivência e a formação de família com filhos marcam o curso de vida dos jovens de baixa renda ainda no final da adolescência e princípios dos 20 anos.
Jovens das camadas de alta renda tendem a adiar essas preocupações e estender o tempo de escolarização, pontua a demógrafa, dedicando sua juventude a diferentes formas de experimentação e a outras vivências antes de assumir maiores responsabilidades.
Novos dados
Alguns dos pontos mais aguardados pelos pesquisadores com relação aos dados completos do Censo 2010, recém-divulgados, são as informações sobre os casais de mesmo sexo, a chefia compartilhada do domicílio e a co-residência com enteados.
Isso representa uma inovação para os estudos de famílias, pois o novo censo permitirá ter uma primeira radiografia de quantos são e como vivem casais em uniões homoafetivas; assim como a indicação da chefia compartilhada “possibilitará saber a quantidade de domicílios cujo gerenciamento é exercido de forma mais simétrica e menos autoritária”, acentua Gláucia Marcondes.
Sobre a presença de enteados no domicílio – ou seja, de filhos que são fruto de uma união anterior de um dos cônjuges –, até então eles eram incluídos em uma única categoria com os filhos do casal, sendo impossível distingui-los. Não se conseguia, em razão disso, avaliar a importância das chamadas famílias recompostas na população brasileira.
A expectativa de que famílias desse tipo fariam cada vez mais parte dos arranjos domésticos fez com que, pela primeira vez no Brasil, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) incluísse a distinção entre filhos e enteados. As estimativas com base nessas informações mostraram que as famílias que trazem filhos de uniões anteriores representavam 15,4% do total de famílias brasileiras em 2006.
Joice Vieira chama à atenção para o fato de o peso das famílias recompostas no Brasil atual ser comparável àquele verificado em outros países na região do Mercosul, como a Argentina, por exemplo. No entanto, ressalta que “a fecundidade brasileira está hoje em um nível mais baixo do que a fecundidade argentina ou de qualquer outro país do Mercosul. Quanto à complexidade dos arranjos familiares, a heterogeneidade das formas de família já é uma constante em toda a região”, pondera.
A importância dos estudos de família, conjugalidade e gênero não se restringem à ampliação do conhecimento sobre a sociedade brasileira. Como realça Elisabete Bilac, a contribuição deste campo de estudo consiste em considerar a diversidade das organizações familiares, tomando-se o cuidado para que as políticas públicas não as engessem em um modelo idealizado. “Afinal, todas as conformações familiares merecem respeito.”

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