sábado, 27 de outubro de 2012

FLORESTAN ATACA O CONSENSO


(Entrevista publicada pela Folha de S. Paulo em 20 de agosto de 1995). Há dez dias morreu o sociólogo paulista Florestan Fernandes, aos 75 anos. Em tempos de consenso -ou aparência de consenso- neoliberal, o sociólogo aparecia como uma das estrelas solitárias da esquerda revolucionária brasileira.

JOSÉ LUIS SILVA
Orgulhoso de sua origem humilde e de ter começado a trabalhar aos seis anos, o que o impediu de completar o curso primário e o levou a se formar no curso de madureza, Florestan não via o destino da ex-URSS como a derrocada do socialismo e do marxismo, nem a globalização como a esperança dos excluídos -ao menos, dizia, enquanto o "capitalismo da fase atual não conseguir uma "equação definitiva para a questão social.
Florestan nasceu em 22 de julho de 1920, em São Paulo. Bacharelou-se em 1943 em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, onde doutorou-se em 1951 e foi livre docente e professor titular na cadeira de sociologia. Ligado ao PT, exerceu pelo partido dois mandatos de deputado federal (1987-1991 e 1991-1995).
Escreveu mais de 50 livros. O problema do desenvolvimento econômico na América Latina é decisivo em sua obra. Em entrevista à Folha (``Mais!", 28/05), o sociólogo chileno Enzo Faletto, co-autor com Fernando Henrique Cardoso do clássico "Dependência e Desenvolvimento na América Latina, citou Florestan como uma das fontes da chamada "teoria da dependência, que nasceu de reflexões sobre o desenvolvimento e é a principal formulação teórica do sociólogo FHC.
A referência de Faletto serviu de mote à entrevista a seguir, sobre a trajetória intelectual de Florestan, uma das últimas concedidas por ele, no final de julho, horas antes de uma internação às pressas na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Uma semana depois, Florestan sofreu um transplante de fígado e, no dia 10 de agosto, morreu em uma sessão de hemodiálise, por erro médico.
Mesmo debilitado, Florestan falou por mais de duas horas, com vigor e lucidez, e só então comunicou o enorme esforço que fazia. Entusiasmado, rememorou seu passado intelectual e analisou a situação atual das esquerdas. Intransigente, recusou-se, de modo categórico, a comentar o governo de FHC. "E isso para não magoar nem a ele nem a mim mesmo, disse o antigo mestre intelectual do presidente.

Folha - É possível, como quer o sociólogo chileno Enzo Faletto, ver em sua obra ao menos uma das origens da "teoria da dependência, formulada pelo próprio Faletto e FHC?
Florestan Fernandes - É muito complicado falar sobre a origem de meu pensamento. Eu me envolvi em várias pesquisas que determinaram, em circunstâncias diferentes, exigências distintas de elaboração interpretativa.
Folha - Quais exigências e em que circunstâncias?
Fernandes - Meu primeiro trabalho, feito em 1941, foi sobre o folclore. Eu me identifiquei muito com esse trabalho. Por minha origem pobre, sou sob certos aspectos um produto da cultura do folclore. Minha experiência de vida me permitiu desvendar muitos aspectos do folclore. Era uma maneira de pensar o que iria acontecer com aquela herança aparentemente morta, mas de fato viva, por exemplo, na socialização da criança.
Folha - O resultado deste trabalho foi o livro "Folclore e Mudanças Sociais na Cidade de São Paulo?
Fernandes - Sim. Eu pensava em fazer um grande trabalho sobre o folclore. Saiu este volume. Procurei mostrar as discrepâncias existentes em certas tentativas de partir do folclore para a compreensão da realidade do presente, sem considerar o fato de que a herança folclórica vem de um passado muito longínquo. Nos folguedos infantis, eu descobri cantigas de roda com restos de romances que deitam raízes na Idade Média, não só de Portugal e Espanha, mas da França, e de outros países europeus.
Folha - Depois disto, o que o levou a estudar os Tupinambá, tema de sua primeira tese, "A Organização Social dos Tupinambá?
Fernandes - Esta tese nasceu do ensino do professor (alemão Herbert) Baldus, no curso de pós-graduação da ELSP (Escola Livre de Sociologia e Política). Ele era muito meu amigo.
Havia na ELSP um seminário aberto para debates. Nele surgiu a idéia, que eu mesmo sugeri, de uma pesquisa sobre os Tupi da Costa, que era como eles chamavam os Tupinambá. Havia muito material sobre eles. Fiz o estudo de vários autores, e foi possível descobrir a consistência dos dados. Parti então para formar uma documentação sobre os índios Tupi.
Uma parte deu origem à minha tese de mestrado, "A Organização Social dos Tupinambá, e depois à minha tese de doutorado, "A Função Social da Guerra nas Sociedades Tupinambá. Esse segundo livro tem muito maior envergadura teórica. E uma tendência para a interpretação mais elaborada.
Folha - Como o sr. vê, hoje, o significado destes seus três primeiros trabalhos?
Fernandes - Os dois trabalhos sobre os Tupinambá definiram todo um momento, em que havia uma grande preocupação pela pesquisa empírica. Dizia-se que na faculdade de filosofia não se fazia pesquisa. Mas se fazia. O que ocorria é que fazíamos pesquisa com um grau de preocupação teórica que nem sempre aparecia nos trabalhos de caráter sociográfico.
Agora, tomados em conjunto, esses três livros alcançam dois momentos da nossa história. Aquele que se mantém no presente, mas vai para o passado, que é o do folclore. E aquele de um passado que se esgotou, mas que explica a nossa história em termos do ponto de partida. É o ponto zero da evolução social do Brasil.
Folha - Qual é a história do trabalho "Negros e Brancos em São Paulo, que o sr. fez com o pensador francês Roger Bastide?
Fernandes - Em 1950, Bastide recebeu um convite da Unesco para fazer uma pesquisa sobre o negro em São Paulo. Eu não queria participar deste projeto porque estava terminando de redigir "A Função.... Mas ele insistiu, e acabei cedendo. Fui co-diretor da pesquisa. Havia US$ 1.000 de colaboração da Unesco: metade ficou com a pesquisadora que trabalhou com Bastide, metade com o pesquisador que trabalhou comigo. E nada mais (risos).
Mas foi o trabalho mais educativo de que participei. Vivi em cortiços, em vários bairros de São Paulo, e sabia muita coisa sobre as condições reais de vida do negro entre nós. Toda essa tentativa de escamotear a realidade não pegava comigo. Por isso, logo de cara, tive um grande problema com o professor Bastide. Ele não tinha uma posição firme com relação a se havia ou não preconceito, se havia ou não democracia racial.
Folha - O que ele argumentava?
Fernandes - Ele dominava igualmente o campo da antropologia, da sociologia e da psicologia. Com hipóteses psicológicas, por exemplo, ele muitas vezes tendia a pensar que certos comportamentos e alegações eram produtos da autodefesa do negro, para se proteger de suas próprias deficiências. Outras vezes, ele pensava que os brancos de fato camuflavam a realidade, sem que, com isso, tivessem a intenção de excluir o negro de participação de certas esferas da vida.
Ele interpretava o Brasil da maneira mais civilizada possível. E aceitava os estereótipos, as auto-avaliações correntes. Eu já vinha predisposto a trabalhar contra elas. Para haver ajustamento entre nós, sugeri a idéia de um continuum, em que a intensidade de discriminação poderia variar de zero até um máximo ``x". Indivíduos brancos e negros podem se colocar nesse continuum. É o que acontece. Não há padronização. Encontra-se gente mais aberta ao convívio inter-racial, gente mais fechada. Gente que discrimina, gente que não discrimina. Era preciso uma hipótese como esta para nós podermos trabalhar sem conflito.
Folha - Como ele reagiu a isso?
Fernandes - Ele felizmente aceitou. E fizemos este livro, que tem, no primeiro capítulo, um corte vertical, desde as origens do negro em São Paulo até aquele momento em que fazíamos a pesquisa. Sabíamos os vários tipos de ocupação dos negros desde a evolução da escravidão até as manifestações finais da desagregação do regime servil.
Uma outra parte do livro é a análise de uma estrutura social em que a transformação da própria estrutura causa a mudança do substrato racial. Há aí um continuum histórico. Lido com uniformidades de sequências. É possível estabelecer ligações entre diferentes situações concretas. Isso permite que se passe de uma análise funcional para uma análise dialética.
Folha - Elas não se contradizem?
Fernandes - Não, elas não se excluem. Se for preciso uma interpretação concentrada em um dado momento, explora-se a análise funcional. Se se lida com a evolução daquela totalidade em transformação, explora-se uma análise que é macro-sociológica. É preciso então usar recursos dialéticos de interpretação.
Folha - Como terminou sua divergência com Bastide?
Fernandes - Nossas interpretações convergiram para a negação da existência de uma democracia racial. Esta foi nossa denúncia mais importante. Aliás, se não havia democracia para branco, por que deveria haver democracia para negro? Era fantasia. Quando houver cidadania universalizada e a democracia abranger todos de uma forma mais ou menos homogênea, aí sim se poderá falar de uma democracia racial. Caso contrário, escondemos a realidade atrás de um véu.
Folha - Como foi a passagem deste trabalho para "A Integração do Negro na Sociedade de Classes?
Fernandes - Vê-se, nessa totalidade de investigações, que passei do Brasil do ponto zero para o Brasil da vinda dos imigrantes, da desagregação do sistema escravista. "A Integração... é o trabalho mais importante que fiz, tanto em termos empíricos quanto teóricos. O título já é dialético, pois fala da integração que não houve. É um recurso descritivo de muita importância. A integração deveria ser o processo real, mas o que houve foi uma incorporação parcial, com uma segregação muito intensa.
Folha - Durante esses primeiros anos de pesquisa, qual era sua atividade política?
Fernandes - Cresci dentro de um ambiente em que as experiências humanas me levavam para a oposição, para o ressentimento. Na faculdade de filosofia, o que se ensinava era realmente o conhecimento científico da realidade. Não entrava em conexão com nenhuma prática. Era o edifício do saber de uma determinada disciplina.
Depois, quando me tornei assistente de professor, tive de enfrentar a situação típica da faculdade. Durante as décadas de 50 e 60, havia um corte dentro da universidade. Como professor, não se podia tornar muito sucessivas as suas preferências ideológicas. O professor era alguém que ensinava sociologia. E só. Era preciso manter-se dentro de um terreno científico tido como estritamente acadêmico. Já na relação com o meio, era possível ser alguém preocupado com os trabalhadores e com aqueles que estavam excluídos do trabalho.
Folha - Essas duas coisas não se misturavam?
Fernandes - Naquela época, as duas coisas corriam paralelas. Elas de fato só se interpenetraram na década de 60. E de forma progressiva. Embora certos professores integrassem uma coisa e outra no plano da personalidade, eram papéis que eles procuravam não misturar.
Folha - De qualquer modo, o sr. enfrentou o Estado Novo?
Fernandes - Sim, a primeira atividade política que eu realizei foi contra o Estado Novo, em 1942. Eu vivia seduzido pela luta clandestina contra o Estado Novo. Há aí uma evolução ideológica paralela e interligada a uma evolução científica. Na luta contra o Estado Novo, eu fazia parte do movimento trotskista. E era filiado à Quarta Internacional.
Folha - Como o sr. começou a trabalhar com o problema do desenvolvimento?
Fernandes - Essa era uma época em que o desenvolvimento era um dos sistemas mais vivos no campo das ciências sociais. A situação de países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, e os problemas de resistência às mudanças por eles enfrentados, me levaram a estender para fora do Brasil os problemas que eu tinha elaborado aqui. Foi aí que comecei a trabalhar com o desenvolvimento. Eu trabalhava às vezes com analogias entre o Brasil e outras sociedades da América Latina. Outras vezes, em perspectivas mais ricas, vinculadas ao conhecimento da realidade exterior. As convergências eram grandes.
Folha - E a dependência?
Fernandes - Disso tudo nasceu a necessidade de estudar melhor as relações entre os países periféricos subdesenvolvidos e os países centrais. Por aí eu começo a estudar as relações de dependência. E principalmente as formas de dominação. Eu não parti da dependência para combater o imperialismo. Ao contrário, eu compreendia que a noção de imperialismo não entrava em conflito com o conceito de dependência.
O imperialismo, na verdade, é um estado de fato. Se um país central desempenha funções imperiais (aglutina uma colônia, ou mantém controle sobre uma colônia que se tornou parcialmente independente), há então imperialismo. Existem ainda nações que não têm estatuto colonial nem neocolonial, mas de aproximação maior com o modelo da sociedade central.
Folha - O filósofo alemão Jrgen Habermas, em entrevista ao ``Mais!", argumenta que a "teoria da dependência não se sustenta porque supõe a "teoria do imperialismo, a qual ele julga falsa. Como o sr. vê esta posição?
Fernandes - O imperialismo não é questão de teoria, mas de sistema de poder. Ele abrange uma nação imperial e seus satélites. Por sua origem germânica, Habermas tem alto conteúdo historicista. Na Alemanha, o imperialismo foi identificado ao poder expansivo dos impérios. Isto é muito eurocêntrico.
Que se considere a expansão moderna, nos séculos 15 e 16. Países como a Espanha e Portugal conseguem impor domínios sobre povos chamados bárbaros. Criam colônias e por elas expandem suas estruturas de poder. Este é o protótipo mais simples do imperialismo.
Qual era a situação neocolonial? O Brasil rompe o pacto colonial. A família real instala-se aqui. O centro geográfico do império passa a ser o Brasil. Logo, a coroa deveria manter o controle da economia, da cultura e do poder. Mas, no fim, para onde se transfere o controle? Para a Inglaterra, que passa a ser o centro neocolonial do Brasil.
Essa transformação desagrega a coroa portuguesa. A economia teria de evoluir para o protótipo inglês e destroçar a herança portuguesa. Tem-se assim o imperialismo, que opera por relações neocoloniais stricto sensu. Não é porque não foi chamado de imperialismo nos séculos 16, 17 e 18 que não é imperialismo. O que está em jogo é um sistema de poder, não uma teoria. Habermas derrapou de modo exuberante. É incrível que alguém que conheça a economia moderna, como Habermas, cometa um equívoco como esse.
Folha - Como o sr. pensa a passagem, no Brasil, de uma situação neocolonial a uma situação de dependência?
Fernandes - Houve dentro do Brasil o desenvolvimento de um setor novo do modelo inglês. Havia a burguesia, o proletariado, uma produção industrial diferenciada, centros urbanos e até uma metrópole. Já do ponto de vista norte-americano, a carga era transformar a sociedade brasileira em uma réplica da deles, com pontos nevrálgicos de controle político, militar e cultural.
Em um trabalho sobre a dominação externa, que apresentei em Toronto ("The Latin American in Residence Lectures 1969-70), classifico três formas de dominação -colonial, neocolonial e de dependência-, que pressupõem situações de fato. São vários momentos sucessivos. O regime colonial e seu esfacelamento. A aquisição, pelas colônias, de potencialidades próprias de desenvolvimento, ainda que contidas pela dominação neocolonial. E a dominação por meio de dependência, que se implantava na América Latina.
Folha - Como a dependência era definida nesse momento?
Fernandes - A dependência estava sendo redefinida na passagem de um capitalismo urbano-comercial para um capitalismo industrial. Isso favorecia muito a penetração dos estudos por esse tema. Havia interesse ao mesmo tempo empírico, teórico e prático pelo que se estava fazendo. Isto me permitiu escrever muitos trabalhos que têm como eixo essa problemática, a qual acaba depois por ser redesenhada pela ditadura militar.
Folha - Qual é a relação entre a ditadura, como uma situação de fato, e o livro "A Revolução Burguesa no Brasil?
Fernandes - Minha luta contra a ditadura, como sociólogo e socialista, me levou a interpretar a realidade para melhor combatê-la. Essa é a origem deste livro. Foi isso que me fez remontar às nossas origens mais profundas. E não apenas às origens históricas. Elas estão sedimentadas no sistema de civilização que aqui se amalgamou com as formas de violência inerentes à escravidão, à implantação do trabalho livre e às dificuldades organizacionais dos trabalhadores.

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