"Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus."
Presente em "Cidadezinha Qualquer", esse retrato de uma vida pacata encontrado em "Alguma Poesia", primeiro livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade, de 1930, sugere uma reflexão sobre se o Brasil rural do século XXI ainda se vê nessas linhas. Onde a vida segue sendo assim e onde as transformações já deixaram para trás a noção de que o campo seria um lugar de atraso?
Pesquisadores questionam se de fato sabemos como é constituída, do que vive e como vive a população do Brasil rural. Mais: as pesquisas que dão informações para essa fotografia mostram todas as diferenças entre os espaços rurais? E será que a realidade vista a olhos nus é captadas pelas pesquisas estatísticas atuais? Será uma expressão adequada dessa realidade a própria conceituação do que é rural e do que é urbano?
Estudo em fase de conclusão, encomendado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, deve trazer respostas que, ao permitirem uma identificação diferenciada de espaços rurais, adequada à atualidade econômico-social do país - os critérios hoje aplicados são de um decreto de 1938, do Estado Novo - estarão, ao mesmo tempo, viabilizando um melhor direcionamento e a eficácia de políticas públicas.
"O Brasil deve reler o seu [espaço] rural porque seremos grandes produtores de energia renovável e de alimentos para o mundo e isso não se faz nas cidades", diz a economista Tânia Bacelar, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que está à frente da equipe de 15 pesquisadores encarregada do estudo. "Essas "oportunidades para o século XXI" exigem que o rural seja revisitado e redescoberto. A marca de que o rural é atraso tem que desaparecer. Não é verdade que seja um Brasil que não se modernizou."
Hoje, a principal pesquisa que distingue o Brasil rural do urbano é o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o último levantamento, de 2010, 15,64% da população do país seria rural e 84,36%, urbana.
A nova pesquisa deve mostrar que a população rural é bem maior - pelo menos o dobro do que foi constatado no último censo - se adotada uma outra metodologia, que aprofundará a análise das características dos espaços rurais e também as relações que mantêm com espaços urbanos. Será adotada uma cesta de variáveis. Pelo censo do IBGE, a definição que pesa para essa análise é uma divisão jurídica, aquela do decreto de 1938. É considerado urbano, basicamente, todo cidadão que mora naquilo que se denomina perímetro urbano do município (onde fica a sede municipal/geralmente onde está a prefeitura). Rural é tudo que não for urbano. Resta-lhe, portanto, um papel residual, obtido por exclusão daquilo que é urbano.
"Com isso, você diz que é urbano alguém que mora num município de 10 mil habitantes se ele morar no perímetro urbano desse município. E é urbano também quem mora numa cidade como São Paulo. O conceito homogeneíza, porque chama esses brasileiros de urbanos, só que a vida dos dois é completamente diferente", diz Tânia.
Ao arcaísmo legal soma-se a fragilidade institucional: a definição de áreas como urbanas cabe aos municípios, geralmente interessados em expandi-las, para elevar a arrecadação própria, por meio do Imposto de Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), mesmo que tais áreas não necessariamente tenham características urbanas - e devessem, portanto, estar submetidas ao regime do Imposto Territorial Rural (ITR), de responsabilidade federal.
A nova tipologia, já se prevê, deverá indicar não apenas que o país possui um espaço rural maior do que se imagina, como também definirá sua distribuição: haverá entre 20 e 30 tipos de espaços rurais diferentes.
"A maioria dos municípios no Brasil é rural", diz Jan Bitoun, geógrafo da UFPE, que coordena a descrição da tipologia. "Vamos mostrar o que todo mundo sabe. Basta andar pelo interior e ver que muitas pequenas cidades estão integradas ao campo. Não há dúvidas de que o Brasil é mais rural do que se calcula."
Como método alternativo à aplicação da lei de 1938, a nova tipologia envolve classificar os municípios em três dimensões-chaves. A primeira é o "habitat", que analisa, entre outros fatores, a densidade populacional do espaço rural e a distância dessas localidades rurais em relação às cidades, seja a mais próxima, que tem um mínimo de serviços básicos, como também em relação a uma cidade maior, que oferece diversos tipos de serviços. A segunda dimensão é "trabalho, condições de vida e características sócio-culturais", na qual são analisadas, por exemplo, a distância entre trabalho e casa, estrutura etária, composição étnica e renda. O terceiro segmento de análise trata de movimentos recentes, as dinâmicas socioeconômicas e demográficas. Nesta etapa, uma questão essencial está em verificar se houve, de fato, perda de população nos municípios rurais nos últimos dez anos.
A tipologia terá uma base territorializada. Isso significa colocar as características físicas (naturais) do território em primeiro plano, considerando os seis biomas brasileiros: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa.
Dessa maneira, evita-se comparar o espaço rural de uma cidade do interior de São Paulo com espaços rurais de outros biomas, como municípios da Amazônia. E é facilitado um olhar para as distinções dentro de um mesmo bioma. Na Caatinga, por exemplo, há grandes diferenças entre os municípios rurais. Os que estão localizados em áreas altas, como Triunfo (PE) e a região da Chapada do Araripe (CE), são distintos de outros municípios rurais localizados nesse mesmo bioma, como em Petrolina (PE), área de agricultura irrigada pelo rio São Francisco, que, por sua vez, também difere de São João do Cariri (PB), onde não há fácil acesso à água.
Outras conclusões podem vir de uma análise minuciosa dentro do bioma Amazônia, por exemplo. Um município rural mais próximo a Manaus é provavelmente bem diferente de um outro em que só se chega de barco, ainda que este também seja um espaço rural.
Para o coordenador de geografia do IBGE, Claudio Stenner, não é essencial a questão de qualidade da legislação de 1938, porque está ali definida apenas uma das abordagens possíveis. "Outras formas vão dar conta de outros aspectos". É possível fazer, por exemplo, pesquisas com informações morfológicas - características naturais do município - e cruzando informações do programa Regiões de Influência das Cidades (Regic), que caracteriza a rede urbana brasileira considerando aspectos da funcionalidade das cidades. "Não há um critério definitivo, mas várias formas de se tratar a questão."
Stenner entende que "é positivo qualquer estudo que trate de questão tão complexa como a territorial, para avanços futuros e para levar a um retrato mais apurado da realidade". Mas não vê a metodologia de 1938 como "desatualizada". Diz apenas que algumas "facetas estão encobertas" e alerta para o fato de que "algumas definições são conceitualmente consistentes, mas, na hora de incorporá-las a uma pesquisa como o censo, isso não é possível. "É preciso casar rigor conceitual com possibilidades operacionais."
Os que defendem mudanças veem como agravante o fato de, nos termos do método até agora aplicado, o Brasil aparecer como mais urbano do que vários países da Europa e acima também dos Estados Unidos. "Os Estados Unidos, a Suécia e a França, que usam uma tipologia da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), consideram que 70% da sua população vive em espaços rurais, e não em áreas urbanas", diz Roberto Nascimento, diretor do Núcleo de Estudos Rurais e Desenvolvimento Agrário (Nead), do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que encomendou a pesquisa.
"Dos 5.565 municípios do país, mais de 4 mil têm menos de 20 mil habitantes e, portanto, são cidades pequenas", observa Bitoun, da UFPE. "Na Europa, esses municípios seriam classificados como rurais. Mas o Brasil classifica como urbana qualquer sede municipal, mesmo que tenha apenas 2 mil habitantes."
Subestimar o rural é, em parte, uma inclinação de raíz histórica, de quando se adotou a indústria como sinônimo de progresso e de modernização, um marco que se estabelece a partir do governo de Juscelino Kubitschek, acreditam os pesquisadores.
"Um pouco, o Brasil quis fazer isso porque queria deixar de ser um país agrícola, para ser industrial. Colocamos todas as nossas preocupações nesse mundo industrial e urbano, e o rural ficou em segundo plano", diz Tânia.
Bitoun considera que o rural, além de ter sido de certa forma ignorado historicamente, foi revisto, essencialmente, como espaço de produção, e é preciso, na verdade, analisá-lo como "espaço de vida". "Basta ver o censo agropecuário (realizado pelo IBGE), que é um censo sobre a produção e fala pouco sobre as condições de vida da população rural."
A pesquisa pretende captar a pluriatividade existente no espaço rural. Como explica Tânia, "na avicultura de Santa Catarina, por exemplo, não se produz e se vende só o frango, mas se vende o corte; então, o rural também está vendendo o serviço de corte".
O estudo também ajudará a mostrar que certas atividades podem ser competitivas no campo e que não têm mais a ver com atraso. "A ovinocaprinicultura é muito valorizada. O leite e o queijo de cabra hoje são mais caros do que o leite de vaca, mas a gente não valorizava. Agricultura familiar não é necessariamente coisa de pobre. Sou de uma geração de economistas que participou de muito debate em que se dizia que 'isso aí esquece, não serve para nada'. Mas na cesta básica do brasileiro a agricultura familiar é fundamental", diz Tânia.
Um retrato mais detalhado do rural permitirá direcionar melhor as políticas públicas. "Imagine pensar políticas de saúde e educação para uma cidade de 300 mil habitantes e aplicar critérios iguais para quem é urbano e para quem é rural", questiona Carlos Miranda, presidente do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (Iica), organização que participa da coordenação da pesquisa.
O estudo chega uma década depois de a questão urbano-rural ter sido oferecida para discussão no livro "Cidades Imaginárias", do professor José Eli da Veiga, da USP, publicado em 2002. Seriam "imaginárias" justamente as "cidades" que existiam apenas institucionalmente (porque assim queriam seu prefeitos e assim se computava no censo), mas não pelo que eram de fato.
Veiga chegou a propor uma nova tipologia para o rural e já então justificava a argumentação de que o Brasil era menos urbano do que se calculava.
"Fiz tudo que pude, junto à imprensa e ao governo, para chamar a atenção de que criaram uma regrinha boba do tempo da ditadura do Getúlio, que na época parecia lógica para todo mundo, porque, no número de municípios que o Brasil tinha, isso não causava nenhum problema. Ao contrário, parecia que estava refletindo uma coisa muita clara: que a sede do município era uma cidade, sem qualquer outro tipo de definição daquilo que normalmente na história se chamou de cidade", afirma.
Quanto ao estudo de agora, Veiga acredita que nada mude se não houver ações simultâneas de outras ordens.
"Constatei [na época] que existe uma inércia institucional. E quando uma sociedade adota determinado caminho institucional, é muito difícil que ele se altere".
Veiga acredita que faltou (e talvez ainda falte) uma força social que tenha interesse em alterar definições e levá-las à prática. "Essa briga era meio quixotesca. Não sei agora o que vai acontecer, com uma nova pesquisa, muito mais articulada, porque há um ministério envolvido. Mas, baseado em minha experiência, posso dizer que ninguém vai dar ouvidos a isso. Não vai se transformar em nenhuma iniciativa legislativa, infelizmente."
"Quem é conservador em geral reage mal a mudanças. Por haver essa ideia de que urbano é sinônimo de moderno, então é melhor que a gente seja moderno, e também seria melhor continuarmos dizendo que somos mais de 80% urbanos", ironiza.
Veiga aponta diversos focos de resistência que observou no início dos anos 2000, que, em parte, podem ainda estar "em vigor". A começar pelo próprio IBGE. "As pessoas que trabalham no IBGE nesta área da geografia deveriam ser, em princípio, as mais sensíveis aos meus argumentos, e não eram. Hoje em dia não são as mesmas pessoas. Também na comunidade científica houve resistências e críticas virulentas." Segundo ele, havia uma ideia de que se estaria negando a urbanização do Brasil ao dizer que o país seria mais rural do que as pesquisas mostravam.
Outro foco de resistência, no entendimento de Veiga, são os próprios prefeitos, que somente se moveriam na direção de novas definições se houvesse alguma vantagem.
O estudo tem uma verba de pesquisa de R$ 1,3 milhão, sendo o principal em recursos atualmente em andamento no Nead. Conta com apoio da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), do MDA e do Banco do Nordeste. A comissão de acompanhamento da pesquisa tem membros do BNDES, do Ministério do Planejamento e do próprio IBGE, que participa das discussões e fornece material estatístico.
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