Assunto mal resolvido
Para a juventude pobre e negra da periferia, o comportamento de uma ditadura militar se mostra incansável em "pleno" Estado Democrático de Direito. No fim, as peças mudaram, mas o jogo é o mesmo.
Caio Sarack
O sujeito, se não é o principal, é um dos principais objetos de análise da psicologia e psicanálise. O problema do sujeito pode ser apreendido também no plano social, segundo a psicanalista Maria Rita Kehl em artigo publicado no livro de 2010 da Boitempo, O que resta da Ditadura (com organização de Edson Teles e Vladimir Safatle).
Qualquer frase feita ou maniqueísmo quando tratamos do plano psicológico e ainda mais do psicossocial nos leva a marginalizar pontos cruciais de um debate tão contraditório. A professora soube ver essas dificuldades. Uma noção como a do "trauma não resolvido" é econômica e não dá todas nuances necessárias ao debate que pretende dar conta, no entanto, mostra certa similaridade entre o senso moral mais comum e a crítica que se faz ao esquecimento pelo Estado de suas "exceções tornadas regras" - como, no exemplo brasileiro, a tortura e o desrespeito aos direitos humanos.
A leitura sobre o tema é extensa e não cabe (nem é possível) dar fim a ele agora, mas é interessante trazê-lo de forma não anacrônica, e sim perceber o que resta desse problema, o que desse problema se atualiza na história. A psicanalista em certo momento escreve, "a impunidade não produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz". Existe uma similaridade discursiva entre senso comum e a crítica de Maria Rita Kehl, em relação à função do Estado: proteger e garantir a paz. Todo cidadão fora de sua situação particular, isto é, num momento de julgamento público, parece concordar com a posição da psicanalista de que somos todos assinantes do contrato social com um Estado que nos deve garantir paz e proteção.
Tal efeito confirma o problema e mostra que realmente "a impunidade não produz apenas a repetição da barbárie", mas "tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas". É o cidadão comum que sofre a barbárie e é a ele que a reparação deve se dirigir. O esquecimento dessas práticas abusivas que permeiam a história (não só) do Brasil explicita, como salienta a psicanalista, o movimento do trauma social: nenhuma sociedade sai ilesa de uma paz social sem alcance efetivo àqueles que sofreram tais traumas.
A "renovação" deste debate - até então irrisória - toma fôlego com as Comissões da Verdade e abertura de arquivos da Ditadura e, agora, recebe novos denunciantes: a juventude pobre e negra da periferia. O comportamento de uma ditadura militar se mostra incansável em "pleno" Estado Democrático de Direito. No fim, as peças mudaram, mas o jogo é o mesmo.
Voltando ao texto, Maria Rita Kehl alcança um ponto de reflexão radical e necessário mas ainda não desenvolvido por completo no texto: "muita gente ainda insiste em pensar que a prática da tortura teria sido (ou ainda é) uma espécie de mal necessário imposto pelas condições excepcionais de regimes autocráticos, e que sob um regime democrático não precisamos mais nos ocupar daqueles deslizes do passado". O que é responsável por essa relativização corriqueira dos direitos humanos? O que leva pessoas as mais pacíficas destilarem ódio em cima do menor infrator e o batedor de carteira? Ainda hoje, as instituições e o indivíduo em seu particular não podem levar (ou levam) ao limite esse processo de suspensão de direitos? O apego ao formalismo do Estado Democrático de Direito sem a atenção a sua aplicação acaba por marginalizar o direito à memória e reparação dos crimes ontem e hoje cometidos, além de também deixar vácuos que cobram preço alto do sujeito e da sociedade. Polícias divididas formalmente mas que tem em comum seu trato militar e de guerra nas ruas e Estado que revoga direitos ao tentar eliminar quaisquer conflitos são alguns exemplos da forte correspondência entre Estado/instituições e indivíduo que só faz reproduzir a barbárie e suas práticas abusivas mesmo que meio a ordem democrática. O trauma individual resultado dessas situações limites de rescisão da humanidade, quando não reparados e sem a garantia pela própria sociedade de que tais situações não se repetirão, passam a deixar marcas no social que, agora calcadas, nos legam modelos de reprodução da barbárie.
O entrelaçamento da sociedade com o indivíduo é patente e sua separação só existe no recorte da análise de conceitos. Mais do que respostas, o número absurdo (há algum número aceitável?) de desaparecidos e mortos pelo Estado (tanto o democrático quanto o ditatorial) mostra que o real desafio é a franqueza frente as perguntas que estão aí. A tempo: onde está Amarildo?
Qualquer frase feita ou maniqueísmo quando tratamos do plano psicológico e ainda mais do psicossocial nos leva a marginalizar pontos cruciais de um debate tão contraditório. A professora soube ver essas dificuldades. Uma noção como a do "trauma não resolvido" é econômica e não dá todas nuances necessárias ao debate que pretende dar conta, no entanto, mostra certa similaridade entre o senso moral mais comum e a crítica que se faz ao esquecimento pelo Estado de suas "exceções tornadas regras" - como, no exemplo brasileiro, a tortura e o desrespeito aos direitos humanos.
A leitura sobre o tema é extensa e não cabe (nem é possível) dar fim a ele agora, mas é interessante trazê-lo de forma não anacrônica, e sim perceber o que resta desse problema, o que desse problema se atualiza na história. A psicanalista em certo momento escreve, "a impunidade não produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz". Existe uma similaridade discursiva entre senso comum e a crítica de Maria Rita Kehl, em relação à função do Estado: proteger e garantir a paz. Todo cidadão fora de sua situação particular, isto é, num momento de julgamento público, parece concordar com a posição da psicanalista de que somos todos assinantes do contrato social com um Estado que nos deve garantir paz e proteção.
Tal efeito confirma o problema e mostra que realmente "a impunidade não produz apenas a repetição da barbárie", mas "tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas". É o cidadão comum que sofre a barbárie e é a ele que a reparação deve se dirigir. O esquecimento dessas práticas abusivas que permeiam a história (não só) do Brasil explicita, como salienta a psicanalista, o movimento do trauma social: nenhuma sociedade sai ilesa de uma paz social sem alcance efetivo àqueles que sofreram tais traumas.
A "renovação" deste debate - até então irrisória - toma fôlego com as Comissões da Verdade e abertura de arquivos da Ditadura e, agora, recebe novos denunciantes: a juventude pobre e negra da periferia. O comportamento de uma ditadura militar se mostra incansável em "pleno" Estado Democrático de Direito. No fim, as peças mudaram, mas o jogo é o mesmo.
Voltando ao texto, Maria Rita Kehl alcança um ponto de reflexão radical e necessário mas ainda não desenvolvido por completo no texto: "muita gente ainda insiste em pensar que a prática da tortura teria sido (ou ainda é) uma espécie de mal necessário imposto pelas condições excepcionais de regimes autocráticos, e que sob um regime democrático não precisamos mais nos ocupar daqueles deslizes do passado". O que é responsável por essa relativização corriqueira dos direitos humanos? O que leva pessoas as mais pacíficas destilarem ódio em cima do menor infrator e o batedor de carteira? Ainda hoje, as instituições e o indivíduo em seu particular não podem levar (ou levam) ao limite esse processo de suspensão de direitos? O apego ao formalismo do Estado Democrático de Direito sem a atenção a sua aplicação acaba por marginalizar o direito à memória e reparação dos crimes ontem e hoje cometidos, além de também deixar vácuos que cobram preço alto do sujeito e da sociedade. Polícias divididas formalmente mas que tem em comum seu trato militar e de guerra nas ruas e Estado que revoga direitos ao tentar eliminar quaisquer conflitos são alguns exemplos da forte correspondência entre Estado/instituições e indivíduo que só faz reproduzir a barbárie e suas práticas abusivas mesmo que meio a ordem democrática. O trauma individual resultado dessas situações limites de rescisão da humanidade, quando não reparados e sem a garantia pela própria sociedade de que tais situações não se repetirão, passam a deixar marcas no social que, agora calcadas, nos legam modelos de reprodução da barbárie.
O entrelaçamento da sociedade com o indivíduo é patente e sua separação só existe no recorte da análise de conceitos. Mais do que respostas, o número absurdo (há algum número aceitável?) de desaparecidos e mortos pelo Estado (tanto o democrático quanto o ditatorial) mostra que o real desafio é a franqueza frente as perguntas que estão aí. A tempo: onde está Amarildo?
Caio Sarack é estudante de filosofia na USP e estagiário da Carta Maior.
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