sábado, 31 de agosto de 2013

Saúde: buscando respostas às perguntas erradas


hospital
Não se pode negar atendimento médico à população desassistida alegando que “falta infraestrutura”. Mas doutores estrangeiros são saída de emergência — não solução
Andressa Pellanda
Um dos principais debates que tomou o governo, a mídia, as redes sociais, as esquinas e os botecos nas últimas semanas tem girado em torno do mais recente programa do governo federal, o Mais Médicos. A pergunta que se faz e que se tenta responder é como levar médicos para os mais distantes rincões deste país. O governo respondeu com um salário de R$ 10 mil e o convite a médicos estrangeiros. O Conselho Federal de Medicina, com uma enxurrada de críticas ao programa, defende a passagem por uma avaliação de conhecimento anterior e obrigatória à atuação profissional, o Revalida.
A resposta é simples: erraram por terem feito uma só pergunta. É óbvio que a preocupação do governo está focada na necessidade de atendimento de uma parcela da população, que não pode esperar a melhoria da infraestrutura como um todo e/ou dos reflexos de maiores investimentos em saúde pública para ter seu direito básico garantido. Os méritos desta ação não podem ser deixados de lado. Porém, também não pode ser adiada uma discussão mais efetiva, e de médio e longo prazos, acerca do tema. É preciso questionar o por quê de a taxa de médicos por 1000 habitantes variar tanto de um estado para o outro; se essa discrepância no sistema de saúde pública e as taxas de mortes evitáveis no Brasil serão reduzidas com a uma melhoria na distribuição de médicos; e, para além disso, se os médicos são o foco do problema.
De acordo com o Datasus 2010, a média de médicos por habitante no Brasil é de 1,86 médicos por 1000 habitantes, acima do valor ideal estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1 médico para cada 1000 habitantes. Olhando somente para este dado, conclui-se que o Brasil tem médicos suficientes, o que significaria um quadro quantitativo de médicos satisfatório. Para se ter um verdadeiro panorama da saúde no país, porém, é preciso ir além.
A média de médicos por 1000 habitantes não representa a realidade de muitos estados: alguns não atingem a média e outros a elevam. No Maranhão, por exemplo, a taxa é de 0,53; no Amapá, de 0,75; e no Pará, de 0,77. Em contrapartida, o Distrito Federal alcança a maior razão, com 3,61. Atrás dele estão o Rio de Janeiro, com 3,52; São Paulo, com 2,5; o Paraná, com 1,97; e Santa Catarina, com 1,68 médicos para cada 1000 habitantes.
Para piorar o quadro, o cruzamento com um dado elementar se faz necessário: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil de 2010 – para compararmos laranjas com laranjas – o município que ganhou o troféu e o carimbo de melhor IDH foi São Caetano do Sul e o pior, Fernando de Falcão. Até aqui, isso não diz muita coisa. É importante, aí, observar que os quinze municípios no topo do ranqueamento estão situados nas regiões sul e sudeste e os quinze últimos no norte e nordeste. Coincidentemente, municípios do Maranhão, Amapá, e Pará não só estão no final da lista de IDH mas como são os que figuram como últimos da lista da relação médico/habitante.
O índice de desenvolvimento humano, entretanto, engloba outros dados que não somente de saúde – educação e renda – e, por conta disso, esta comparação poderia ser considerada rasa. Não seja por isso. As taxas de mortalidade infantil (antes de completar um ano de idade) e de mortalidade na infância (até cinco anos) seguem o mesmo padrão. Em 2010, a taxa de mortalidade na infância por 1000 habitantes no Pará foi de 25,6; no Amapá, de 29,5; no Maranhão, de 25,8. O dobro das de São Paulo, de 13,9; Rio, de 16,7; DF, de 13,8; e Santa Catarina, de 12,9. Muitas delas morreram por causas simples e evitáveis. No Pará, por exemplo, 3,3% das mortes de crianças menores de cinco anos foi por doença diarreica aguda, comparadas a 1% em São Paulo.
É claro que mortes como esta não são causadas somente por falta de acesso a médicos e a saúde. Há muito por trás desses índices entristecedores. O saneamento básico – e a falta dele – é um dos grandes fatores que contribuem para o problema de saúde no país. Quase que de olhos fechados é possível adivinhar a conjuntura: novamente, os estados do norte e nordeste são os mais precários – Pará tem 29% de serviço de esgoto; Amapá, 22%; Maranhão, 25% – enquanto que os do sul e sudeste os mais bem servidos – São Paulo, com 90%; Rio, com 85% e Santa Catarina, com 75%, segundo dados do Datasus de 2010.
Para além desse cenário da desigualdade regional da saúde, há outros fatores que contribuem significativamente para a piora do quadro dos municípios mais carentes do Brasil. Uma pesquisa desta semana do Estadão Dados, a partir do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, mostrou que para cada ponto percentual retirado da taxa de analfabetismo da população de 18 anos ou mais, a taxa de mortalidade de crianças até 5 anos cai 4,7 pontos. Na prática, se 1% dos adultos de uma cidade é alfabetizado, em média, mais 47 crianças sobrevivem à primeira infância, a cada 10 mil nascimentos.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) não deixa de ter razão ao alardear sobre a falta de infraestrutura para os médicos no interior do país. Não é somente uma visão classista. Uma boa sugestão é a criação de carreira médica no serviço público, semelhante à de juízes e promotores, como propõe a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 454/2009. “Que fique registrado, contudo, que a resolução do problema do atendimento integral não depende somente da melhor distribuição geográfica de médicos, mas também de estrutura adequada à assistência. Atualmente, repetimos, o SUS enfrenta um grave subfinanciamento e também distorções no processo de gestão. Por consequência, pleiteamos o aumento da destinação de verbas federais para 10% da Receita Bruta, e a criação de mecanismos adequados à fiscalização da gestão”, ressalvou Renato Azevedo Jr, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp).
O movimento Saúde + 10, Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, foi criado em 13 de março do ano passado por diversas organizações, dentre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Médica Brasileira (AMB), o Conselho Nacional de Saúde (CNS), entre outras. O objetivo no movimento foi a coleta de assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular que assegure o repasse efetivo e integral de 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde pública brasileira, alterando, dessa forma, a Lei Complementar no 141, de 13 de janeiro de 2012. A ideia era agregar 1,5 milhão de assinaturas para o projeto de lei, objetivo alcançado neste mês, com a apresentação do projeto, no dia 05/08, que contou com 1,8 milhão de assinaturas.
Não há, entretanto, uma rede de incidência política articulada e permanente na área de saúde no Brasil, como ocorre para a educação com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. A Campanha é considerada hoje a articulação mais ampla e plural no campo da educação básica no Brasil, constituindo-se como uma rede que articula mais de 200 grupos e entidades distribuídas por todo o país, incluindo movimentos sociais, sindicatos, organizações não-governamentais nacionais e internacionais, fundações, grupos universitários, estudantis, juvenis e comunitários, além de centenas de cidadãos na defesa de uma educação pública e de qualidade.
Em sua história de lutas, obteve diversas conquistas, como a criação do Fundeb (Fundo da Educação Básica); a reformulação e melhoria do texto do Plano Nacional de Educação (PNE) 2010-2020, com a aprovação de diversas de suas emendas; e a mais recente aprovação do PL 323/2007, que destina 50% do Fundo Social do Pré-Sal e 75% de seus rendimentos para a Educação – sendo os outros 25% para a saúde. Um movimento como este para a saúde seria uma grande plataforma para a exigir o cumprimento pelo Estado de seu dever de garantir o direito à saúde pública de qualidade para todos nas mais longínquas comunidades pelo país.
Portanto, o problema da saúde pública no país e, especialmente, nos pequenos municípios do norte e nordeste é muito mais profundo e amplo que a má distribuição de médicos. Há má distribuição de médicos, de saneamento, de unidades de saúde, de escolas, de professores, de recursos e, principalmente e de forma basilar, de um olhar igualitário, que parece não existir neste sistema social. Para que efetivas mudanças sejam feitas na sociedade é necessário que o grito por elas venha de quem tem seus direitos violados. Por isso, se faz cada vez mais necessária a organização, o engajamento e a incidência política da sociedade civil. É aí que reside a força motriz das mais profundas transformações sociais.

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