sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Una furtiva lagrima‏. por Jacques Gruman


Una furtiva lagrima‏

Submetido a grandes pressões, um homem pode dar respostas moralmente inaceitáveis. Em situações limite, no entanto, as referências mudam. Como condenar, por exemplo, um preso torturado que sucumbe e se abre aos algozes?
Vocês não podem compreender/vocês que não escutaram/bater o coração/daquele que vai morrer (Charlotte Delbo, escritora francesa)

Amava Schubert. O velho Franz era uma espécie de trilha sonora de sua vida, irmão atemporal que sabia traduzir seus sentimentos. Certo dia, um carro estacionou em sua porta. Sem maiores cerimônias, foi sequestrada, encapuzada e levada para um lugar gelado. Tiraram-lhe a roupa. Ouviu uma voz nervosa, mas firme, fazia-lhe perguntas que não sabia responder. Era espancada, e a voz, agora, dizia obscenidades, a mão percorria-lhe os recantos mais íntimos, quebrava o resto de vontade que tinha de entender. Na sala, ironia cruel, tocavam 'A morte e a donzela', quarteto de cordas de Schubert que adorava. A tortura sangrava seus afetos.

Sobrevive. Prefere isolar-se numa casa no alto da colina mais alta que encontrou. Não consegue mais ouvir Schubert. O acaso resolve surpreender. O marido traz para casa um viajante cujo carro quebrara na estrada. Aquela voz ... Reconhece o sádico que a violentara, só podia ser ele. O primeiro sentimento foi de vingança. Olho por olho. Dá um jeito de imobilizá-lo, quer torturá-lo, matá-lo. Aos poucos, percebe que usar a violência seria a vitória do torturador. Legitimaria o método abjeto que quase destruíra sua vida. Solta-o, com a sensação de que, finalmente, tinha se libertado do pesadelo. Podia, enfim, sair do autoexílio e se reconciliar com Schubert.

Vai a um concerto. No programa, claro, A morte e a donzela. Ritual de passagem para exorcizar os demônios daquela sala da Morte. Antes dos primeiros acordes, percebe que o torturador também estava ali. Acompanhado de mulher e filhos. O sádico tinha vida familiar, também gostava do velho Franz, quem sabe que outros gostos teria em comum... O Mal não tem fisionomia definida, pode se esconder atrás de uma vida medíocre, de uma oportunidade para fugir da rotina, de um poder ilusório, de uma excitação improvável. “Aquele ali tem cara de bandido” não passa de versão em prosa de preconceitos disfarçados. 

Essa história, escrita como peça de teatro pelo chileno Ariel Dorfman, foi filmada por Roman Polanski nos anos 90. Filme, infelizmente, pouco rodado. Em tempos de Comissão da Verdade, é tremendamente atual. Quem, afinal, são os torturadores ? Não falo, claro, de certidões de nascimento, mas dos processos que levam pessoas a se transformarem em bestas. Não acredito, neste caso, na prevalência de rastros genéticos. Wislawa Szymborska, poetisa polonesa e ganhadora do prêmio Nobel de literatura em 1996, escreveu o poema Primeira foto de Hitler. Uma delicada pancada no estômago. Fala daquele “anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol”, do sonho realizado de um casal, da esperança no futuro. “É o Adolfinho, filho do casal Hitler !”. Fofinho como todos os bebês, quem poderia imaginar ... Sai-se do terreno ainda fosco do DNA e se penetra nas estradas esburacadas da História, dos acidentes, das monumentais fragilidades humanas, das forças mutantes dos grandes embates políticos. Um burocrata obscuro como Eichmann, condenado desde cedo ao esquecimento, teve poder suficiente para chacinar e destruir. Nasceu bárbaro ? 

Está em cartaz aqui no Rio uma senhora peça de teatro: Nem mesmo todo o oceano, de Alcione Araújo. Com interpretações magistrais, seis atores se revezam em múltiplos papéis, mas o protagonista é um rapaz que nasceu no interior de Minas e veio para o Rio fazer o curso de medicina. Indiferente à tempestade política que varreu o Brasil no início dos anos 60 (uma colega de turma pergunta se ele era “alienado, reacionário ou cu de ferro”), acaba arrastado pelos acontecimentos e se emprega no Exército, que o encaminha para o setor clínico do famigerado quartel da rua Barão de Mesquita, conhecido centro de tortura da ditadura militar. Aos poucos, vai percebendo, não sem uma certa perturbação, que não estava ali para curar dores de cabeça e furunculoses. Era chamado para atestar se os prisioneiros tinham ou não condições de resistir a novas sessões de tortura. Tenta, timidamente, se afastar, mas não consegue. Continua na rotina do trabalho sujo, até que um dia se vê diante de uma moça severamente machucada e encapuzada, que reconhece ser uma antiga paixão não correspondida. Descontrolado e ciente do poder de vida e morte de que estava casualmente investido pela caserna, tira proveito da situação. Mantém a moça afastada dos algozes, mas se aproveita para violentá-la seguidas vezes. O ex-matuto, denunciado pelo pai da vítima, era, agora, um lobo solitário, desprezado, incapaz de voltar à trilha original. No lugarejo do interior de Minas, no entanto, era impossível projetar esse desfecho. Como e quando, afinal, foi parido o monstro?

Submetido a grandes pressões, um homem pode dar respostas moralmente inaceitáveis. Em situações limite, no entanto, as referências mudam. Como condenar, por exemplo, um preso torturado que sucumbe e se abre aos algozes? Mais ainda: que suas informações resultam em mortes ? Os chamados Judenrats eram entidades criadas pelos nazistas em campos de concentração, formadas por lideranças judaicas que mediavam os contatos e colaboravam com as autoridades nazistas. Eram odiados, mas alguns deles ajudaram na organização de grupos de resistência. Outros, atuavam na esperança de que, mesmo ao preço de servir aos objetivos imediatos dos nazistas, pudessem salvar o maior número possível de prisioneiros. Adam Czerniakow, responsável pelo Judenrat do gueto de Varsóvia, suicidou-se ao saber do início das deportações em massa para os campos de extermínio. Como julgá-los ? Não é tarefa trivial. Recuso, nesses casos, as extremidades. Branco ou preto são insuficientes.

Ressalvadas as exceções de praxe (em geral, patológicas), parto de um princípio: sempre há uma opção. Cada um de nós é responsável pelas decisões que toma, individual e coletivamente. Um torturador pode ou não recusar uma ordem. Pode, ou não, denunciar quem deu a ordem. Qualquer que seja a atitude, por ela deve ser identificado e julgado, para o bem e para o mal. É o que a sociedade espera das investigações da Comissão Nacional da Verdade. O Yad Vashem, memorial que lembra as vítimas do Holocausto, localizado em Jerusalém, homenageia os chamados Justos entre as Nações. São não-judeus que, mesmo sob ameaça de morte pelos nazistas, ajudaram a salvar milhares de judeus. Escondendo-os e sustentando-os até o fim da guerra. Concedendo vistos para fuga. São, hoje, mais de 22 mil. Podiam, como muitos o fizeram sadicamente, delatar amigos e vizinhos. Sua opção foi outra. Acabo de ler uma história singela, que ilustra, em outro terreno, as humanas opções. Um médico paulista, falecido semana passada, nunca quis abrir consultório particular. Negava-se a cobrar dos pacientes (trabalhava em hospitais públicos), pois achava que os serviços de saúde deviam ser gratuitos. Tinha enorme apreço pelos que o procuravam. Fazia questão de ouvir atentamente todas as queixas dos pacientes, mesmo que a consulta se estendesse muito. Podia ter aderido a essa indecorosa linha de produção mercantil em que se transformaram muitos consultórios médicos, onde os pacientes são despachados em três minutos. Sem rosto, sem alma. Quantos não o olhavam com ironia, Robin Hood extemporâneo? Quantos não o admiravam, ilha de decência num mar de ganância?

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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