quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Dialeto é gramática.

Doutorado da Unicamp mostra que a agenda de estudos sobre dialetos promoveu avanços na gramática prescritiva do português brasileiro

Marcelo Módolo E Henrique Braga
Os estudos dialetológicos ganharam visibilidade no Brasil entre fins do século 19 e meados do 20, resultado de uma espécie de "conflito existencial" de país colonizado: proclamada a República em 1889, empreende-se uma busca pela identidade linguística brasileira. É essa procura por uma "língua nacional" que o pesquisador Marcelo Rocha Barros Gonçalves toma como tema de seu doutorado: Teorias Linguísticas da Espacialidade: uma agenda dialetológica na gramatização do português do Brasil, disponível em bit.ly/GA2oaY.
Marcelo propõe como discussão a espacialidade na linguística e seu funcionamento na relação língua-sujeito-estado. Entende-se "espacialidade" como a tomada de consciência, por parte do falante, sobre estes fatores:
a) A interação de seu corpo com o meio ambiente
b) Seu lugar e orientação em relação a pessoas e coisas;
c) A possibilidade de organizá-las entre si, colocá-las em um lugar e movimentá-las.
Marcelo investiga como as tecnologias linguísticas (artigos em revistas científicas, dicionários, gramáticas, etc.) plasmaram esses discursos em um espaço-tempo e como tais discursos se relacionaram para a constituição da nação e da língua nacional. Assim foram entendidas as "várias línguas portuguesas" do Brasil, numa relação língua-sujeito-estado de cada parte do território nacional, contextualizadas histórica e politicamente.
Com fundamentação teórica em Orlandi e Auroux, o autor problematiza os efeitos da chamada "gramatização" (a composição de uma gramática). Relembra que a gramatização brasileira não deve levar em conta só o trabalho dos jesuítas, a chegada dos negros ao país ou o uso da língua geral por bandeirantes, mas analisar as discussões em torno do idioma nacional, quando a relação língua-estado-nação é posta em xeque pela Independência.
Independência
A Independência brasileira repõe a discussão sobre a língua nacional - e seu uso - em um novo espaço-tempo.
Essa nova época aparece representada, diz o autor, em artigos de A Revista Brasileira (1879-1899), da Academia Brasileira de Letras, no Esquisse D´une Dialectologie Portugaise (1901), do filólogo português José Leite de Vasconcelos, e na Revista de Língua Portuguesa, do filólogo brasileiro Laudelino Freire (1919-1924).
Interpretadas isoladamente, essas produções demonstram tomadas de posição diferentes em relação à diversidade linguística brasileira. Analisadas em conjunto, denotam que as interpretações dessa diversidade partiam quase sempre de diferenças entre variedades portuguesas e brasileiras.
As diferenças entre o português no Brasil e em Portugal, e suas conexões com a espacialidade, são vistas em mais detalhes num segundo momento, pós-Independência: os trabalhos diatópicos de Amadeu Amaral (Dialeto Caipira, 1920) e Antenor Nascentes (Linguajar Carioca, 1922) vão produzir instrumentalização científica para o estudo da(s) língua(s) falada(s) no espaço linguístico brasileiro.
Os estudos, que lidam com variedades restritas a um espaço físico mais ou menos delimitado (região; estado da federação), registram e descrevem os dialetos pertencentes à realidade brasileira. Essas obras são instrumentos linguísticos de um momento do fenômeno da gramatização brasileira, no qual falar dos "usos variados" seria defender uma "outra língua".
Uniformização
Nesse segundo momento, há uma terceira etapa de implementação dessa agenda dialetológica, por meio de ações governamentais:
1) A publicação, em 1943, pela ABL, do Formulário Ortográfico, documento que, com as alterações introduzidas pela Lei 5.765 de 18 de dezembro de 1971, regulou a grafia do português no Brasil até 31 de dezembro de 2008, e cujas normas continuam a ser aceitas até 31 de dezembro de 2015;
2) A formação da comissão de professores, escritores e jornalistas para opinar sobre a denominação do idioma nacional, em 1946, com o filólogo carioca Sousa da Silveira na relatoria;
3) A elaboração da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) em 1959, que uniformizou o tratamento oficial ao idioma, normatizando nomenclaturas diversas e dando tom local, nacional, ao português brasileiro.Tais medidas reafirmam ser do Estado a função de uniformizar o idioma.
O estudo sobre espacialidade é concluído com a análise dos trabalhos de Cândido Jucá (filho), de Serafim da Silva Netto e do projeto ALiB.
Gramática Histórica do Português Contemporâneo (1945), de Jucá (Filho), cria uma espécie de gramática interna do português do Brasil:
1) a fonologia brasileira,
2) o vocabulário brasileiro,
3) "creação" vocabular no Brasil,
4) a morfologia no Brasil,
5) a "sintasse" brasileira (sic).
Dessa maneira, o autor aponta diferenças e semelhanças entre o português falado no Brasil e em Portugal.
Espacialidade
Serafim da Silva Netto, em especial com Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (1950), olha para a língua oficial - o padrão - de outro modo.
O que ele chamava de "língua comum", em oposição aos falares, funcionava dentro da relação entre o regional e o urbano, a cultura e a civilização.
Suas ideias se concretizaram no Atlas Linguístico-etnográfico Brasileiro, o projeto ALiB (www.alib.ufba.br). Segundo Marcelo, apesar de as questões sobre espacialidade e diversidade linguística serem impactantes nos anos 40, a partir dessa época a agenda linguística estaria apartada do fenômeno da gramatização no Brasil.
A possibilidade de legitimar usos genuinamente brasileiros retorna à baila, em fins da década de 80 e início da de 90, graças a grandes grupos de pesquisa (como o projeto História do Português Brasileiro) e a gramáticas mais focadas em tratar de uma norma nacional. Não está mais em jogo o nacionalismo, mas um fazer linguístico-científico.

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