sábado, 30 de novembro de 2013

Um Rio de Janeiro dividido busca o mundo

A difícil jornada na frágil van vai subindo a colina íngreme do Morro da Providência, a favela
 mais antiga desta cidade. Última parada: a pequena praça, silenciosa, com uma loja de materiais
 de construção, um bar e um par de jovens policiais com coletes a prova de balas e metralhadoras em 
punho, patrulhando a estação de teleférico ainda fechada, construída recentemente. O porto se estende 
lá em baixo.

Michael Kimmelman
Morador estende os braços na beira da lagoa de Jacarepaguá, na vila Autódromo, no Rio. Estimuladas pela Copa do Mundo e pelos Jogos Olímpicos em 2016, as autoridades locais estão se esforçando para reinventar a cidade
As autoridades locais, estimuladas por dois iminentes megaeventos -a Copa do Mundo no ano que vem e os Jogos Olímpicos de Verão de 2016- estão se esforçando para reinventar esta cidade, outrora de terceiro mundo, com uma economia de primeiro mundo.

Na semana passada, começou a demolição de uma estrada movimentada que corta o caminho através da área do porto, para dar espaço para um passeio de pedestres e um novo bonde.

O prefeito do Rio, Eduardo Paes, está dizendo todas as coisas certas sobre o combate à expansão, a melhoria do sistema de transporte de massa, a construção de novas escolas e a pacificação e a integração das favelas, onde mora um em cada cinco habitantes da cidade.
Mas, como ilustram os meses de protestos de rua, os ideais progressistas estão enfrentando problemas antigos e intratáveis nesta cidade, onde a diferença de classes e a corrupção são quase tão imóveis quanto as montanhas. Esta é uma cidade dividida em si mesma.
Essa divisão fica mais aparente no gigantesco projeto do prefeito de desenvolvimento do porto, de US$ 4 bilhões (em torno de R$ 8 bilhões) que prevê a transformação de uma área industrial na escala de Lower Manhattan em um centro reluzente, cheio de arranha-céus do novo Rio global.

O porto é o coração histórico da cidade, com raízes portuguesas e afro-brasileiras -uma mistura de armazéns, máquinas pesadas e monumentos antigos- e também engloba bairros como o Morro da Conceição, Saúde, Gamboa e Santo Cristo: enclaves pobres e decadentes, mas belos, de casas multicoloridas e ruas de paralelepípedos.
Washington Fajardo, que assessora o prefeito em assuntos urbanos e preservação histórica, me mostrou o cais de pedra, para navios imperiais e negreiros, que foi recentemente descoberto perto do Morro da Conceição e transformado em patrimônio histórico.
Mas a reconstrução do porto é, na maior parte, um negócio de interesses imobiliários e comerciais. Segundo os críticos, é mais um exemplo de um governo que serve às incorporadoras, com um novo Museu do Amanhã (o que quer que isso seja), em forma de isópode gigante, projetado por Santiago Calatrava, arquiteto de ontem.

Na verdade, não há um plano mestre e nenhuma garantia de que aquilo que é bom e vale a pena preservar na mistura urbana do porto existente não será sacrificado por um mar de torres de escritórios. Promessas recentes do prefeito de inserir 2.000 unidades de habitação pública são tardias e vagas, anunciadas para apaziguar detratores sem perturbar os investidores.
Enquanto o prefeito promove a consolidação em torno do porto renovado, o Rio se alastra de forma incontrolável para o Oeste. Quilômetros de rodovias, condomínios fechados, shoppings e engarrafamentos tornam a área chamada Barra da Tijuca cada vez mais indistinguível dos arredores de Dallas ou Fort Lauderdale, na Flórida. Quando podem, os cariocas, como são chamados os habitantes da cidade, compram dois carros e um apartamento em uma torre na Barra, como se ainda estivéssemos em 1974.

No coração da Barra, há um símbolo dos gastos perdulários e divisão de classes do Rio de Janeiro: um novo centro de artes, a cidade da música, projetada pelo arquiteto francês Christian de Portzamparc, em frente a um shopping gigante com uma réplica da Estátua da Liberdade. Um projeto iniciado sob o prefeito anterior, duas vezes acima do orçamento de US$ 250 milhões e abandonado no meio de uma estrada, o lugar tem provocado queixas revoltadas por não estar afinado nem com a cultura da cidade nem com suas reais necessidades.

O centro talvez seja o prédio mais absurdo a ser construído em anos, com um complexo de teatros de concreto, sobre pilastras gigantes. Ele faz lembrar aquela famosa sátira do filme "This Is Spinal Tap", na qual os projetistas de um palco para um show de rock confundiram pés com polegadas– exceto que as proporções aqui são invertidas. Os responsáveis pela casa reclamam sobre seções inteiras de assentos inutilizáveis sem visão para o palco, palcos mal projetados, teatros sem vestiários, praças varridas pelo vento e escadas que não dão em lugar algum.
Mais a oeste, a Vila Olímpica, uma expansão urbana em rápido crescimento, sobe em um local que dará lugar a novas habitações de luxo após os jogos. O desenvolvimento ameaça desalojar a Vila Autódromo, uma antiga favela.
Andei pelas ruas tranquilas e esburacadas da favela. Crianças saltavam sobre um trampolim quebrado; uma música saía de uma igreja; uma família me levou para a sua laje com vista sobre mangueiras e goiabeiras para a baía.

Altair Guimarães, presidente da associação de moradores, despertou de seu cochilo na rede, depois de trabalhar no turno da noite, e sacudiu a cabeça. "Você não precisa massacrar o povo para fazer megaeventos", disse ele.

A história não é assim tão simples.

Nas áreas operárias ao norte da cidade, como Méier e Madureira, a prefeitura forneceu novas clínicas, criou novas linhas de ônibus, construiu escolas.
Eu visitei o Parque Madureira, de 2,5 km e US$ 50 milhões, uma faixa de concreto e verde, com um palco gigante de samba e um lago, construído em um terreno liberado pelo reposicionamento de linhas elétricas de alta tensão. O local tem sido um divisor de águas para os moradores de um bairro lotado com quase nenhum espaço aberto.
No Méier, visitei um antigo cinema onde Bob Dylan e Tom Jobim, o Dylan do Brasil, se apresentaram no passado. Recentemente, o local renasceu como o Centro Cultural João Nogueira, com um cinema multiplex, um espaço para exposições e um terraço. Os idosos tomavam banho de sol e os adolescentes flertavam à sombra de uma treliça de concreto.

Mas ao lado destas melhorias, outros projetos públicos não fazem sentido: os projetos do programa Minha Casa Minha Vida são tristes novos blocos habitacionais para os pobres, mal feitos, que proliferam ao redor da cidade, muitos longe a oeste, a uma longa distância do local onde moravam os reassentados.

O Morar Carioca, um programa público para unir arquitetos, moradores das favelas e funcionários públicos, prometeu soluções colaborativas para remodelação. Os moradores da Providência, consultados como parte do programa, disseram que queriam ruas limpas e pavimentadas.
Em vez disso, a prefeitura decidiu construir o teleférico, junto com um bondinho funicular e um centro cultural comemorando a vida na favela, e todos esses projetos vão exigir despejos. Hoje, muitos moradores lamentam o Morar Carioca.
"As favelas não são apenas locais de pobreza, cujos moradores são objetos de 'projetos de renovação'", salientou Jailson de Souza e Silva, um dos fundadores do Observatório de Favelas, uma ação social, apontou. "A participação é a chave".

Isso ainda não é uma prática comum aqui. Os representantes da comunidade da Providência ganharam uma liminar para adiar a construção do funicular.

Roberto Marinho,  38, presidente da associação de moradores, trabalha como gerente de um escritório imobiliário no centro. A casa onde ele mora com sua esposa e dois filhos é uma das que devem ser demolidas.
"Nós temos uma varanda e um terraço, e o apartamento do Minha Casa Minha Vida para onde querem nos levar seria uma perda grande em qualidade de vida", disse Marinho.
De certa perspectiva, favelas como a Providência, incubadoras históricas do samba e do funk brasileiro, são verdadeiros modelos do que Paes defende: são diversas, densas, organicamente desenvolvidas com habitações acessíveis -o oposto do Minha Casa Minha Vida.

Mas esses teleféricos e atrações culturais, o kit de ferramentas padrão das reformas da prefeitura de hoje, são boas ilustrações para folhetos Olímpicos e apresentações de PowerPoint, mesmo que não sejam necessariamente o que os moradores da Providência, e do Rio, mais precisem.

Conquistar o apoio da comunidade leva tempo. A colaboração é lenta.

O Rio tem pressa.

"Queremos um diálogo, uma conversa", disse Marinho. "Eles nunca nos ouvem de fato".

Tradução: Deborah Weinberg

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