sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Empresas estrangeiras expulsam cambojanos de suas fazendas


Polícia reprime manifestantes durante protesto em Phnom Penh. Ativistas do Camboja dizem que o governo já expropriou milhares de famílias de suas fazendas para ceder os terrenos a empresas privadas

A cada ano, empresas agrícolas estrangeiras privam milhares de agricultores cambojanos 
de seus campos --e isso com ajuda do governo. Grupos de direitos humanos alegam que 
dinheiro dos contribuintes alemães é usado para financiar um programa que beneficia os tomadores 
de terras.

Andreas Lorenz
Polícia reprime manifestantes durante protesto em Phnom Penh. Ativistas do Camboja dizem que o governo já expropriou milhares de famílias de suas fazendas para ceder os terrenos a empresas privadas
Todo mundo na aldeia cambojana de Chouk lembra do que aconteceu na manhã de 19 de maio de 2006, quando tratores apareceram na Rota Nacional 48, que corta a cidade. Homens de uma empresa tailandesa, a Khon Kaen Sugar Industry PCL, apresentaram documentos aos aldeões cambojanos e disseram: "Esta terra agora nos pertence".

Dezenas de agricultores tentaram deter os tratores quando começaram a destruir suas plantações de arroz. A polícia chegou ao local, disparos foram feitos e uma manifestante foi ferida. Uma cerca de arame farpado agora cerca os campos, que foram transformados em uma plantação de cana-de-açúcar. O agricultor Teng Kao, 53, passa pelas cercas, pula sobre valas e finalmente aponta para um local ao longe. "Ali", ele diz. "Meus campos ficavam ali."

Duzentas famílias de Chouk perderam seu meio de subsistência naquele dia. "Nós não éramos pobres --nós éramos muito pobres", diz o agricultor Chea Sok. "Eu não consigo mais sustentar três refeições por dia." Muitos jovens deixaram Chouk, com alguns se transformando em trabalhadores imigrantes na Tailândia e na Malásia.

Muitos cambojanos sofreram o mesmo destino que os aldeões de Chouk. Empresas e elites privilegiadas, frequentemente membros do Partido do Povo Cambojano do governo, sob o primeiro-ministro Hun Sen, estão tomando posse dos campos e áreas florestais.

As empresas, frequentemente estrangeiras, recebem "concessões econômicas de terras" do governo quando precisam de terras para plantações e fábricas. Organizações não-governamentais cambojanas estimam que cerca de 400 mil pessoas foram expulsas desse modo desde 2003.
'Grande injustiça'
A tomada de terras é um fenômeno mundial, mas o Camboja é único, porque o governo alemão exerce um papel controverso lá. Segundo ativistas de direitos humanos, dinheiro do contribuinte alemão está sendo usado para financiar um programa que beneficia inadvertidamente os tomadores de terras.

"Nós estamos no caminho de nos tornarmos uma sociedade de grandes proprietários de terras", diz Lao Mong Hay, um ativista de direitos civis cambojano veterano. Com sua barba branca, ele se parece um estudioso de Confúcio. "A elite do governo está aliada às grandes empresas, e juntas estão ganhando dinheiro fácil", ele diz. Ele pressiona seus dedos juntos para ilustrar essa aliança profana. "Tudo o que eles precisam é de terras, algumas poucas serras e alguns tratores", ele diz, "e num instante a floresta é cortada".

As empresas estão tirando proveito de uma situação legal não clara. Ninguém sabe exatamente que terra é propriedade privada e que terra pertence ao governo, em parte porque os documentos relevantes desapareceram anos atrás. O Khmer Vermelho, que governou o país de 1975 a 1979, declarou cada centímetro quadrado do território cambojano como sendo de propriedade do governo.

O Parlamento aprovou uma legislação que dá direito a cada cambojano à terra que ele ou ela cultivou por pelo menos cinco anos. Se a terra for tomada, o proprietário precisa ser indenizado. Mas há uma "grande injustiça", diz Lao Mong Hay. "As leis são ruins e são mal implantadas."
Véu de sigilo
Christina Warning da Ação Agrária Alemã (Welthungerhilfe) presenciou isso pessoalmente. "Em uma aldeia", ela diz, "eles embebedaram as pessoas para que colocassem suas digitais no fim do contrato. Tudo o que receberam como indenização foi roupas, remédios e celulares". E deixaram de ser proprietários de seus campos.

No ano passado, o relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos no Camboja relatou que apenas uma minoria se beneficia com a concessão de terras, enquanto as empresas operam "por trás de um véu de sigilo".

A situação no Camboja também coloca em dúvida o grau com que os trabalhadores de ajuda humanitária podem trabalhar com um regime autoritário. A tomada de terras provavelmente será tema das negociações entre Alemanha e Camboja em Phnom Penh, no início de dezembro. Thilo Hoppe, um político do Partido Verde alemão, quer que Berlim "suspenda a cooperação do governo" se necessário. O Banco Mundial tomou uma medida semelhante quando cancelou empréstimos ao Camboja em 2011 por causa dos despejos de pobres proprietários de terras.

O governo cambojano ao menos está prometendo estabelecer uma maior certeza legal. Segundo seu plano, todos os cidadãos poderão registrar suas propriedades com a criação de um órgão de registro de terras. Cerca de 2 milhões de pessoas possuíam títulos de terras até o final de 2012.
O papel alemão
A Alemanha está auxiliando o governo cambojano no desenvolvimento do órgão. Especialistas em registro de terras da Sociedade Alemã para a Cooperação Internacional (GIZ) prestam consultoria às autoridades cambojanas desde 2002. Mas agora "os alemães se tornaram parte do problema", diz Eang Vuthy, da ONG Camboja Equitativo.

Outros ativistas de direitos civis e trabalhadores de ajuda humanitária alemães acusam a GIZ de encobrir o fato de o primeiro-ministro Hun Sen estar apenas usando o projeto para criar a impressão de que as tomadas de terras são legais, e argumentam que ele não tem nenhuma intenção de distribuir terras justamente.

Por exemplo, os alemães não são autorizados a viajar para o interior para verificar se a concessão dos títulos de propriedade de terras está de fato sendo implantada. Segundo Vuthy, o premier Hun Sen consideraria uma interferência nos assuntos internos do seu país se os alemães analisassem os casos individuais para assegurar que o projeto deles está de fato proporcionando justiça. "Mas os alemães precisam saber o que está sendo feito com o dinheiro de seus contribuintes", diz Vuthy.

O escritório do diretor regional da GIZ, Adelbert Eberhardt, fica localizado em um prédio próximo do Monumento da Independência em Phnom Penh. Ele está familiarizado com as críticas ao seu programa. Todavia, ele diz, "se você quiser que algo aconteça, é preciso trabalhar com os órgãos do governo. Isso deixa você vulnerável. É um ato de equilibrismo que temos que tolerar". Mas Eberhardt nota que os benefícios do programa superam seus revezes. "Nós criaremos uma certeza legal para 6 milhões de pessoas", ele diz. "Dois milhões de pessoas já contam com ela."

O Ministério das Relações Exteriores em Berlim também defende a cooperação com Hun Sen. Em uma discussão a portas fechadas sobre o programa de terras com especialistas em Phnom Penh, um diplomata apontou que o governo alemão não pode forçar o primeiro-ministro a fazer algo. Um "envolvimento construtivo" é melhor do que encerrar o acordo de cooperação com Hun Sen. "Nós não podemos conseguir tudo em toda parte ao mesmo tempo", diz o diplomata.
Resolução da UE
Manfred Hornung, da Fundação Heinrich Böll, que trabalha a poucos quilômetros do escritório de Eberhardt, diz: "O pessoal da GIZ não tem prova dos 2 milhões de títulos de propriedade de terras. Afinal, eles não estiveram no interior e não têm ideia do que está acontecendo".

A abordagem da União Europeia é ainda mais controversa, porque facilita indiretamente a tomada de terras. Em 2009, Bruxelas concedeu ao Camboja o direito de exportar açúcar para a UE sem tarifas alfandegárias. Mas isso apenas exacerbou o problema, diz Evi Schueller, uma advogada americana da organização de direitos humanos cambojana Licadho. "Milhares sofrem quando perdem suas terras para dar espaço à plantações de cana-de-açúcar", ela diz.

Em 2012, o Parlamento Europeu adotou uma resolução em relação ao açúcar, criticando o que chama de "violações sérias de direitos humanos ligadas às concessões de terras".

Mas a Comissão Europeia se recusa a suspender o privilégio do Camboja de acesso livre de tarifas para todas as suas exportações. "Ela não reconhece o relatório do relator especial da ONU", diz Schueller. "Em vez disso, ela quer um do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra. Isso é absurdo."
Tradutor: George El Khouri Andolfato

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