sábado, 2 de novembro de 2013

Darcy Ribeiro e o romance: visão de Maíra


Em Maíra, Darcy Ribeiro nos ajudava, os deserdados pelo país através da ditadura, a nos perdermos dos silêncios dos anos de chumbo e a nos reecontrarmos.


Flávio Aguiar
Arquivo
“Obrigado, Artigas!”.

A frase arrancou aplausos entusiasmados do auditório completamente lotado, com gente de pé nas alas entre as cadeiras. Estas eram 800; mas devia haver ali o dobro de gente.

O local era o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo. Mais precisamente, o auditório que, apesar de enorme, ficava e fica até hoje numa espécie de subsolo deste prédio exemplar da chamada “Escola Paulista de Arquitetura”, planejado e construído na Cidade Universitária entre 1961 e 1969. A ocasião era a 30ª. reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em 1978, em S. Paulo, no campus da USP.

No ano anterior a reunião da SBPC realizara-se excepcionalmente em S. Paulo. Deveria ter acontecido em Fortaleza, no Ceará. Mas as reuniões da entidade estavam se politizando cada vez mais, tornando-se verdadeiros congressos abertos contra a ditadura militar. Em represália, o governo Geisel – impossibilitado de proibir a reunião pela enorme repercussão negativa que isto teria no exterior – cortou as verbas de financiamento da mesma. Num lance de gênio (iluminado pelo Espírito Santo?) o Cardeal D. Evaristo Arns, arcebispo de S. Paulo, ofereceu a PUC para que o encontro se realizasse. E assim aconteceu. A SBPC virara uma verdadeira “protest song” da intelighenzia brasileira, coisa que depois se diluiria, com o passar do tempo e da ditadura. Mas quem viveu, verá aqueles momentos para sempre, mesmo que seja apenas no filme em sépia da memória.

Em 1978, na USP, o clima era mais desanuviado, mas não menos animado. E aquela frase, naquele contexto, era e é até hoje um ícone daquela animação. Seu autor era o antropólogo Darcy Ribeiro, retornado há dois anos do exílio a que se vira forçado depois do golpe de 1964.

Há uma versão rocambolesca – romanesca mesmo – que então corria para o seu retorno. Era a de que ele pedira para voltar porque iria morrer, com um câncer no pulmão. Na esteira da “distensão lenta, segura e gradual”, promovida aos trancos e barrancos (certamente muitos trancos) pelo governo Geisel e liderada pelo então Ministro da Educação, Ney Braga, apesar da dura vigilância do Ministro da Justiça, Armando Falcão, a volta foi autorizada. Mas Darcy, contrariando as expectativas, não morreu. Dizia-se que fora  operado, perdeu um pedaço do pulmão ou um inteiro, e sobreviveria até 1997, tomando  várias iniciativas de vulto na política, na cultura, na educação e nas letras nacionais – talvez para desespero de quem autorizara a sua prematura volta, já que ele seria anistiado formalmente apenas em 1979.

Nunca pude verificar a autenticidade desta versão. Mas então, naqueles rocambolescos anos em que se misturavam as esperanças de redemocratização com a fadiga da ditadura e da vida sob ela, a versão casava com a aura que Darcy levava com ele, fazendo-o uma espécie de personagem romanesco de si mesmo e do desejo que levávamos de que a vida voltasse a nos supreender.

A frase de abertura deste artigo é dele, Darcy, depois de um périplo ousado pelo campus da USP. Darcy Ribeiro fora convidado pela disciplina de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP para falar sobre seu romance Maíra, publicado pela Editora Civilização Brasileira no ano de seu retorno do exílio, em 1976. Acontece que havia uma verdadeira multidão para ouvi-lo, e a sala designada era pequena demais. Naquele tempo não havia telões disponíveis. Apesar do seu tamanho e variedade de prédios, as salas da USP estavam tomadas –e na universidade estrategicamente a ditadura vetara ou pelo menos dificultara a construção de grandes salões para muitas pessoas, por motivos óbvios. Darcy Ribeiro então saiu pelo campus – com a multidão literalmente trotando atrás dele – atrás de uma sala onde coubessem todos.

Acabou encontrando-a no prédio da FAU, cujo planejamento fora anterior ao advento do regime de 64, cujo auditório, feliz e inexplicavelmente estava desocupado naquele momento. A reunião começou assim com algumas horas de atraso, já ao entardecer. Quando Darcy sentou-se no palco, ao crepúsculo, um providencial raio de sol se esgueirou entre os blocos de concreto, entrou no auditório e foi bater direto na sua figura, iluminando-a com um tom rubro. Foi então que ele formulou a frase, que fazia  referência ao arquiteto João Batista Vilanova Artigas, que planejara o prédio, e que também fora cassado pelo regime, vivendo no exílio no Uruguai, como Darcy.

Embora já tivesse retornado ao país, só retornaria à FAU, onde fora professor, depois da Lei da Anistia de 1979. O aplauso enurdecedor que se seguiu foi tanto para Darcy quanto para Artigas, tanto para o prédio quanto para o raio de sol que, por estes acasos que criam e descriam universos, criara ali uma metáfora ousada do que podia estar ali se prefigurando: o crepúsculo do regime, a aurora de alguma outra coisa que não sabíamos bem o que era, ou seja, as confusões que hoje vivemos.

Não me lembro especificamente, confesso, do que Darcy falou naquela ocasião. Tudo se mistura com depoimentos dele, posteriores, sobre a criação de seu romance, de como ele o escreveu, perdeu o manuscrito entre as barafundas do exílio, e voltou a escrevê-lo depois, parece que pelo menos por duas vezes.
Lembro-me que depois daquele encontro ao mesmo tempo feérico e meteórico, fomos – alguns jovens professores e outros mais veteranos – com ele ao Café Paris, que então existia, ainda recém inaugurado, na entrada da avenida que vai para a Cidade Universitária, ao lado da Praça da Paineira, que então também ainda existia, antes de ser assassinada pelo progresso avassalador. Lá ele nos contou e encantou com suas histórias de exílio e voltas. Um romance, aquele homem.

É por razões como esta que penso ser Maíra – mais que seus outros três romances – um personagem de nossa construção literária, num país – o nosso – que é prenhe de construções de si mesmo através da literatura. Alguns anos depois, num encontro da Unesp, em Marília, interior de S. Paulo, apresentei o ensaio “O exílio interior, ou onde cala o sabiá”, sobre o romance de Darcy. Este texto foi recentemente republicado na revista eletrônica Alabastro, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (v. 1, n* 2, 2013), num dossiê sobre Darcy Ribeiro.

O ensaio procura captar a dialética entre crepúsculo de um mundo e nascimento de um outro, através da análise da consciência narrativa da tradição do povo mairum – uma criação ficcional de Darcy Ribeiro amalgamando sua experiência como antropólogo – bem como do protagonista Avá, batizado Isaías, o membro da tribo que foi a Roma estudar para ser seminarista e volta à floresta diante da impossibilidade de completar seu projeto. No entanto, ao voltar, descobre que ele já não é um mairum: os outros o vêem como um fantasma de um ser que existiu entre eles, e partiu; ele mesmo, que deveria ser um chefe,  quer assumir um outro destino, tornando-se uma ingterrogação viva, um ícone de um mundo que está desaparecendo e de outro que, nascente, não se sabe o que será.

Impossível melhor metáfora do Brasil e seus desencontros consigo mesmo, do país secularmente à espera de si mesmo, país que a sua intelighenzia vê (um tanto injustamente, deve-se dizer) como desmemoriado, sem passado, mas que reabre continuamente seu futuro.

Toda este drama converge para a intrincada relação entre o mundo dos mairum e seu criador, Maíra, o deus que não pode existir sem seu povo. Se este desaparecer, ele também perecerá, Criador que depende simbioticamente da suas criaturas. No dizer do ensaio:

“Maíra, o personagem que dá o título ao romance, é parte do mundo criado a partir de um deus velho, e na criação ele é uma espécie de força vital que anima os homens, chegando a coabitar com seus corpos, corações e mentes. Os mairuns são o povo de Maíra, e a presença desse deus-espírito num homem é um momento único para ambos, que assim se revelam mutuamente, se encaixam no mesmo plano da existência. Esse momento separa a mitologia mairum da cristã, pois nesta, se o seu deus se encarna no plano da existência humana, ele, supostamente, permanece com um pé no céu. O homem corre o risco de destruição; o deus cristão não, pois é eterno; os deuses e os espíritos mairuns desaparecerão, se os mairuns desaparecerem, e estes são seres fadados à essa desaparição.”

Mais adiante:

“Portanto, na consciência mairum construída no romance há uma perfeita reciprocidade entre os planos humano e divino; um não existe sem o outro, e o desaparecimento de um acarreta o desaparecimento do outro, quando então a treva retornaria e os poderes infernais engolfariam a existência. De certo modo este processo agônico já começou, mas tragicamente os mairuns não têm outra possibilidade a não ser a de estarem agora em oposição a um mundo terrível que, entre outras barbaridades, dispôs a sua capital no altiplano (Brasília) que encerra a bôca do inferno e da treva. A chegada da civilização põe este povo - pelo menos na consciência ilustrada de seu profeta, o Avá/Isaías, à beira da aniquilação absoluta, do fim da história. Essa chegada da civilização, com seus novos dominadores e dominados, é a chegada do Brasil a seus confins. Se o Brasil é a terra das palmeiras, onde canta o sabiá, imagem que é a contra-facção do próprio poeta que canta a sua terra, aqui, neste confim, ele ameaça perder a voz, porque se é verdade que os destruídos serão os mairuns, isso significa que essa civilização-Brasil perdeu a sua alma (nome, aliás, de uma personagem que morre no romance) e está, portanto, mais que morta, reduzida à condição de alma penada, fantasma de si mesma, corpo sem ñee, ou seja, portadora de uma palavra destituída do seu espírito. O romance, portanto, morde a cauda, e o drama mairum é o drama universal, de um ser humano que talvez tenha chegado ao limite de sua existência.”

Na metáfora mairum transparece, portanto, uma leitura daquele Brasil agônico de 1976 – 1978, onde havia uma sensação esquisita de que poderíamos “renascer” da experiência ditatorial, mas “outros que não nós mesmos”, talvez espectros perdidos de um povo desaparecido, talvez nascituros de um mundo ainda em estado de porvir.

A viagem de Avá/Isaías, no romance, termina num projeto contraditório, em que ele está traduzindo a Bíblia cristã para a língua mairum, ou melhor, está reinventando aquela nesta. Com isto ele também está reinventando a língua mairum, num registro escrito que ela não conhecia. Embora ameaçados de extinção, os mairum poderão estar também no limiar de um novo mundo, com todas as experiências trágicas, dramáticas, agônicas e parteiras de novas e velhas identidades que ela carrega conosco e para nós.

É evidente que os outros romances de Darcy – O mulo (1981), Utopia Selvagem (1982) e Migo (1988) – também merecem ser lidos, sendo todos eles viagens entre a percepção solidária de seu autor em relação ao povo brasileiro e a confissão algo autobiográfica de suas próprias tensões internas de pensador deste enigma chamado Brasil.

Entretanto para mim, como leitor, crítico e memorialista, a magia e re-magia da leitura e da re-leitura, sempre por se completarem, se concentra mesmo em Maíra, romance com que Darcy nos ajudava, os deserdados pelo país através da ditadura, a nos perdermos dos silêncios terríveis dos anos de chumbo e a nos reecontrarmos neste mundo “cheio de som e fúria” que é o nosso.

Obrigado, Darcy.

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