sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

David Harvey

David Harvey adquiriu fama com a publicação, em 1989, de Condição pós-moderna. Esse livro tornou-se, rapidamente, uma das referências centrais do debate, então acesso, acerca do fim da modernidade. Nele, Harvey associa a mudança nas práticas culturais, subjacentes ao termo pós-modernismo, com alterações político-econômicas que teriam se iniciado em 1972. Mais especificamente, relaciona as novas experiências frente ao tempo e ao espaço (o engendramento de uma nova sensibilidade ou do sentimento qualificado como pós-moderno) com a emergência de modalidades diferentes, mais flexíveis de acumulação do capital, isto é, ao início de um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço na organização do capitalismo”. Isso não significa, no entanto, que ele endosse a tese do surgimento de uma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial, ao contrário.

Ricardo Musse

13.12.18_Ricardo Musse_David Harvey

Um dos pontos fortes de Condição pós-moderna consiste na atenção que dedica à experiência urbana nas grandes cidades – um tópico essencial das teorias sobre a modernidade e também sobre a pós-modernidade. De certo modo, atualiza as considerações, de Georg Simmel, na passagem do século XIX para o XX, nas quais se ressalta o processo de abstração patente nos novos estilos de vida, na experiência do choque, na atitude de reserva, na disseminação da relação monetária etc. Para Harvey, o pós-modernismo não significa apenas uma mudança no estatuto da produção cultural, sinaliza também uma modificação no próprio modo de vida com a generalização de novas práticas, experiências e formas de vida.
Em sua obra anterior, Os limites do capital (1982), Harvey examinou a teoria marxista das crises econômicas. Nesse registro, compreende o pós-modernismo como uma ruptura com o modelo de desenvolvimento do capitalismo prevalecente no pós-guerra. Desde a recessão de 1973, a forma de acumulação predominante, o fordismo, foi minada pela crescente competição internacional, por baixas taxas de lucros corporativos e por um processo inflacionário em aceleração, processo esse que mergulhou a economia capitalista numa crise de superacumulação.
A resposta da classe capitalista e dos governos dos países centrais a essa situação desdobrou-se como um novo regime de acumulação “flexível”, no qual o capital ampliava sua margem de manobra intensificando a flexibilidade dos mercados de trabalho – privilegiando contratos temporários, a incorporação de força de trabalho imigrante etc. –, dos processos de fabricação – pela via da transposição de unidades fabris para outros países ou regiões –, da produção de mercadorias – por processos just in time, por lotes de encomendas etc. –, nos mercados financeiros – desregulamentados nas transações atinentes ao câmbio, ao crédito e aos investimentos.
Essa nova forma de acumulação fornece a base para a cultura pós-moderna, para uma sensibilidade ligada à desmaterialização do dinheiro, ao caráter efêmero das moedas, à instabilidade da “nova economia”.
Em 2003, Harvey reformulou seu diagnóstico do presente histórico, em O novo imperialismo. Procurou levar em consideração a nova ordem engendrada pela reação do Estado norte-americano aos atentados de 11 de setembro de 2001, em especial as invasões sucessivas do Afeganistão e do Iraque. Tais desdobramentos causaram perplexidade geral. Afinal, a disposição de ocupar esses países não estaria na contramão de uma política cuja hegemonia se firmara ao longo do século XX graças ao discurso e à prática em favor da autonomia nacional? Além disso, como entender a legitimidade obtida pelo governo Bush – uma singular coalizão de militaristas, neoconservadores e cristãos fundamentalistas, acusada de fraude eleitoral –, confirmada com sua escolha para exercer um segundo mandato?
As mudanças na ação externa e no cenário interno suscitaram a onda de explicações que colocou na boca de liberais e conservadores um termo que a esquerda utiliza há muito para caracterizar o Estado norte-americano: imperialismo. A ocupação neocolonial de territórios, seu denodo em determinar os rumos do capitalismo, o estado de guerra permanente (41% dos gastos do governo são destinados a atividades militares) e até mesmo o revezamento de poucas famílias no comando da nação, tudo isso aponta para o ressurgimento de um poder imperial.
Essa inusitada convergência disseminou e banalizou ao extremo a palavra “imperialismo”. Quando se debruçou sobre o tema, David Harvey, para qualificar o debate, procurou reestabelecer as determinações conceituais e históricas da teoria marxista do imperialismo. Mas, paradoxalmente, poucos anos depois, a atualidade de O novo imperialismo reporta-se menos às análises de conjuntura – em geral brilhantes e muitas vezes proféticas –, do que ao arcabouço teórico que o livro desenvolve.
Ao contrário do que se crê, a discussão sobre o imperialismo não é episódica no corpus marxista, resquício da “era dos impérios” e do leninismo. Quando bem dimensionada, ocupa um lugar central na compreensão teórica e histórica do capitalismo. Se Marx, por um lado, caracteriza a dinâmica desse modo de produção como o desdobramento da acumulação de capitais (numa lógica estritamente econômica), por outro lado, em um capítulo crucial de O capital(“A assim chamada acumulação primitiva”) mapeia, uma a uma, as práticas extraeconômicas que favorecem a acumulação capitalista.
O debate polarizou-se entre os que consideram a “acumulação primitiva” como mera etapa necessária à emergência do capitalismo, e os que a situam como momento estrutural de seu dinamismo histórico. A questão, no fundo, remete às relações entre economia e política, um dos muitos pontos que Marx apenas esboçou e não teve tempo de desenvolver em sua obra.
Harvey é partidário decidido da segunda alternativa. Para ele, o processo de “acumulação interminável de capital”, que configura histórica e geograficamente o capitalismo, combina, de forma contraditória, a lógica econômica, os processos moleculares de acumulação e as estratégias políticas, diplomáticas e militares que denomina “acumulação por espoliação”, renomeando o arsenal de práticas que Marx chamava de acumulação primitiva.
A predecessora mais ilustre dessa posição foi Rosa Luxemburgo. Harvey compartilha com ela a tese de que a acumulação capitalista não prescinde de alguma espécie de ambiente externo. Discorda, no entanto, que esse “outro” seja sempre uma forma de produção pré-capitalista. O próprio capitalismo, em sua geografia e história, pode produzir esse “exterior”, como no caso do desemprego em massa que amplia o exército industrial de reserva. Tampouco concorda que a sucessão de crises que perpassa o capitalismo seja explicável pelo “subconsumo”. Para Harvey, as crises advêm da dificuldade em absorver de forma lucrativa os excedentes de capital e são, portanto, “crises de sobreacumulação”. Sua resolução acarreta tanto a desvalorização de ativos e a destruição de regiões como configura uma nova paisagem espaço-temporal para acomodar a perpétua acumulação de capital e, sua companheira inseparável, a acumulação interminável de poder.
Harvey não despreza os ensinamentos de Lenin sobre o imperialismo, em especial a denúncia da assimetria entre Estados no interior de um sistema global de acumulação de capital. Mas em vez de descrevê-lo como uma fase “última” do capitalismo prefere vê-lo, na fórmula de Hannah Arendt, como “o primeiro estágio do domínio político da burguesia”. A partir dessa premissa reconstitui, com alguns deslocamentos decisivos, a hipótese de uma sucessão de Estados hegemônicos desenvolvida por Giovanni Arrighi.
Entre 1870 e 1945 imperialismos rivais assentados no nacionalismo e no racismo conduziram as nações a uma série de crises e guerras. A hegemonia norte-americana após 1945 se torna incontestável, dissimulando seu domínio sob a capa de um universalismo abstrato: a defesa das classes proprietárias de todo o mundo em sua luta contra o comunismo. A partir de 1973, o modelo de acumulação altera-se completamente com a criação de um sistema monetário desmaterializado.
Nesses três períodos convivem, com pesos diferenciados, a acumulação molecular de capital e a acumulação por espoliação. Esta vigorou no período 1870-1945 e voltou a prevalecer a partir de 1973, após o interregno dos “trinta anos dourados”. A face imperialista do capitalismo torna-se ostensiva nos momentos em que predomina o acúmulo por espoliação, mas nunca deixa de atuar, sobretudo porque também deriva, de forma complexa, da reprodução expandida do capital. 
Essa teoria permite a Harvey explicar de forma convincente os principais fenômenos político-econômicos dos últimos 35 anos, apresentando a financeirização, a globalização e a política neoliberal como estratégias da “acumulação por espoliação”. Seu predomínio manifesta-se na vida política por meio da cisão dos movimentos antiglobalização, divididos entre a esquerda socialista – cuja ênfase na reprodução ampliada coloca como central a luta anticapitalista –, e os novos movimentos sociais que tendem a assumir formas difusas, fragmentárias e avessas ao controle do aparelho de Estado, posto que seu combate prioritário é contra a espoliação. 
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: contraponto, 1996.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. C: Loyola, 2005.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
LENIN, Vladimir I. O imperialismo. Fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2008.
 LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital. Estudo sobre a interpretação econômica do imperialismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
MARX, Karl. O capitalCrítica da economia política. São Paulo: Boitempo,2013.
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário