Historiador chileno Igor Goicovic conta como agentes do país atuaram no fornecimento de armas,
treinamento e serviços de inteligência aos governos ditatoriais da América do Sul
treinamento e serviços de inteligência aos governos ditatoriais da América do Sul
Igor Carvalho
Um plano articulado entre ditaduras de seis países vitimou, entre as décadas de 1970 e 1980, mais de uma centena de milhares de latino-americanos. Porém, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Argentina e Bolívia contaram com um forte aliado na criação da Operação Condor. O diretor do departamento de História da Universidade de Santiago de Chile, Igor Goicovic, ressalta, em entrevista à Fórum, o papel dos Estados Unidos no fornecimento de armas, treinamento e serviços de inteligência aos governos da América do Sul, servindo para a manutenção de regimes autoritários no continente.
Na entrevista abaixo, Goicovic descreve a atuação de agentes norte–americanos infiltrados nas Forças Armadas chilenas, exercendo protagonismo em operações realizadas no país pelo regime do general Augusto Pinochet.
Fórum – Como foi o começo da Operação Condor no Chile?
Igor Goicovic – A Operação Condor teve na Direção de Inteligência Nacional (Dina) um dos seus organismos mais importantes. Até hoje, Manuel Contreras, ex-diretor dessa organização, sustenta que a ideia de montar um plano dessa natureza surgiu dentro da Dina. O ponto é que, em março de 1974, data oficial do seu fechamento, esse organismo, em colaboração com órgãos de segurança do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, montou operações de assassinatos, detenções, sequestros, desaparecimentos, torturas e transporte de presos políticos.
Um dos efeitos imediatos do golpe de Estado de setembro de 1973 foi o exílio de milhares de chilenos. Muitos deles seguiram para a Argentina, onde se somaram às tarefas de apoio da resistência no Chile. Porém, outros se alinharam à luta político-militar, desdobrada naquele momento pelo Partido Revolucionário do Povo e Exército Revolucionário do Povo [PRT-ERP] da Argentina. Em meados de 1974, esse trabalho havia avançado e cooperou para a consolidação da Junta de Coordenação Revolucionária [JCR], que agrupava os tupamaros do Uruguai, o ELN [Exército de Libertação Nacional] da Bolívia, o PRT-ERP da Argentina e o MIR [Movimento de Esquerda Revolucionária] chileno.
Conscientes da gravidade que apresentava essa aliança, as agências de segurança dos EUA e as forças de segurança das ditaduras regionais ativaram o Plano Condor, voltado inicialmente ao combate das organizações de orientação militar, para, mais tarde, passar a liquidar qualquer tipo de oposição, mesmo que não fosse armada. O assassinato dos chilenos Carlos Prats e Orlando Letelier, o homicídio do ex-presidente da Bolívia Juan José Torres e o sequestro do dirigente do MIR, Edgardo Enríquez, constituem os feitos mais emblemáticos da Operação Condor.
Porém, houve, também, as ações diárias que afetaram milhares de latino-americanos. Um dos casos que destaco foi a execução de 119 chilenos que estavam nas mãos da Dina, muitos tinham sido presos na Argentina. Fez-se crer que eles haviam sido assassinados por seus próprios companheiros. Brasil, Chile e Argentina organizaram uma manobra através dos meios de comunicação locais para respaldar a versão de dissidência entre os revolucionários. Posteriormente, se confirmou que os 119 haviam sido previamente detidos por agências parceiras da Dina, torturados, mais tarde assassinados e desapareceram com seus corpos.
Fórum – Quais as consequências da Operação Condor?
Igor Goicovic – Por mais doloroso que pareça ser ao se reconhecer isso, a Operação Condor se mostrou muito efetiva. Essa ideia de “terrorismo de Estado internacional” permitiu identificar e aniquilar uma boa parte dos militantes da esquerda revolucionária latino-americana, precipitando, assim, uma profunda crise nessas organizações. O PRT-ERP não conseguiu sobreviver à repressão; outras, como o MIR, superaram a fase mais aguda, mas logo depois entraram em crise; o MLN-Tupamaros foi destruído e ressurgiu como uma organização integrada ao sistema institucional.
Igor Goicovic – Por mais doloroso que pareça ser ao se reconhecer isso, a Operação Condor se mostrou muito efetiva. Essa ideia de “terrorismo de Estado internacional” permitiu identificar e aniquilar uma boa parte dos militantes da esquerda revolucionária latino-americana, precipitando, assim, uma profunda crise nessas organizações. O PRT-ERP não conseguiu sobreviver à repressão; outras, como o MIR, superaram a fase mais aguda, mas logo depois entraram em crise; o MLN-Tupamaros foi destruído e ressurgiu como uma organização integrada ao sistema institucional.
A esquerda brasileira não conseguiu se recuperar da investida repressiva do ciclo 1968-1975. Alguns dos principais responsáveis pela repressão foram detidos, processados e encarcerados. São os casos do argentino Jorge Rafael Videla, do uruguaio Gregorio Álvarez e do chileno Manuel Contreras. As organizações que dirigiam desapareceram; porém, muitos outros repressores e torturadores estão impunes. A busca por verdade e justiça se tornou um novo campo de batalha. O objetivo das organizações de direitos humanos é impedir que órgãos como a Dina não voltem a operar e que projetos como a Operação Condor não se repitam. Do outro lado, está em jogo a soberania dos Estados da região, no intuito de anular os esforços dos EUA para impor novos modelos de controle político e militar.
Fórum – No Brasil, houve influência norte-americana no golpe militar de 1964. Há relatos de agentes infiltrados nas forças de oposição ao regime militar. No Chile, o que se pode dizer sobre o trabalho do serviço secreto dos EUA nesse período?
Igor Goicovic – A presença norte-americana no Chile se reforçou a partir da Segunda Guerra Mundial. Efetivamente, um pouco antes, na 3ª reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores, realizada no Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, quando os Estados latino-americanos (com exceção da Argentina) se aliaram ao esforço de guerra norte-americano. Isso levou à ruptura das relações diplomáticas com os países do Eixo e à hostilidade aos cidadãos de origem alemã e japonesa. Houve, também, uma crescente funcionalização dos meios de produção locais de materiais estratégicos demandados pelos norte-americanos e uma evidente vinculação entre o Exército nacional e as orientações de defesa hemisférica do Pentágono.
Igor Goicovic – A presença norte-americana no Chile se reforçou a partir da Segunda Guerra Mundial. Efetivamente, um pouco antes, na 3ª reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores, realizada no Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, quando os Estados latino-americanos (com exceção da Argentina) se aliaram ao esforço de guerra norte-americano. Isso levou à ruptura das relações diplomáticas com os países do Eixo e à hostilidade aos cidadãos de origem alemã e japonesa. Houve, também, uma crescente funcionalização dos meios de produção locais de materiais estratégicos demandados pelos norte-americanos e uma evidente vinculação entre o Exército nacional e as orientações de defesa hemisférica do Pentágono.
Após a Segunda Guerra Mundial, a presença norte-americana no país e sua conseguinte influência nos assuntos internos de Estado se reforçaram. Prova disso foi a ruptura de relações diplomáticas do Chile com a União Soviética, em 1948, e o decreto da Lei de Defesa Permanente da Democracia, também de 1948, que retirou da legalidade o Partido Comunista e permitiu o encarceramento e confinamento de seus principais dirigentes. A partir do triunfo da Revolução Cubana, os vínculos entre os EUA e o Chile se fortaleceram. A manifesta presença da esquerda marxista (comunistas e socialistas) na liderança das organizações sindicais, camponesas e estudantis, a notável representação política no Parlamento e a emergente figura de Salvador Allende como potencial presidente da República acentuaram a preocupação dos EUA com o Chile.
Não é à toa que os principais responsáveis pelas violações aos direitos humanos, cometidas no Chile a partir de 1973, haviam sido alunos da Escola das Américas. Este é o caso de, entre outros, Manuel Contreras Loyola (ex-diretor da Direção de Inteligência Nacional), Raúl Iturriaga Neumann, Miguel Krassnoff Marchenko e Álvaro Corbalán Castilla. Para as Forças Armadas chilenas, a Operação Unitas, de 1959, funcionou como uma anexação institucional, que permitia o desenvolvimento de manobras navais entre a esquadra nacional e a força-tarefa do Pacífico Sul, da Marinha dos EUA. Por último, tenho de destacar que a denominada Comissão Church, de 1975, constituída de senadores dos EUA para investigar as operações das agências norte-americanas no exterior, acreditou amplamente na participação da CIA e do FBI no assassinato do comandante-chefe do Exército chileno, René Schneioder, em 1970, e também em outras manobras de desestabilização do governo de Salvador Allende.
Fórum – Os EUA forneceram armas e treinamentos para os chilenos?
Igor Goicovic – Não há nenhuma dúvida sobre isso. Desde a década de 1940 até a década de 1970, os EUA tiveram o controle e o monopólio sobre a provisão de armas e tecnologia bélica no Chile. Da mesma maneira, como já falei, sobre a presença de assessores e instrutores norte-americanos no interior das Forças Armadas do Chile. Fica evidente que o período é o mesmo da criação da Escola das Américas. Não obstante, é importante consignar que o anticomunismo das Forças Armadas chilenas não surge com a influência norte-americana, ele apenas se reforça. Efetivamente, as Forças Armadas chilenas operam como braço armado das elites.
Igor Goicovic – Não há nenhuma dúvida sobre isso. Desde a década de 1940 até a década de 1970, os EUA tiveram o controle e o monopólio sobre a provisão de armas e tecnologia bélica no Chile. Da mesma maneira, como já falei, sobre a presença de assessores e instrutores norte-americanos no interior das Forças Armadas do Chile. Fica evidente que o período é o mesmo da criação da Escola das Américas. Não obstante, é importante consignar que o anticomunismo das Forças Armadas chilenas não surge com a influência norte-americana, ele apenas se reforça. Efetivamente, as Forças Armadas chilenas operam como braço armado das elites.
Também é preciso lembrar que, a partir de 1976, as Forças Armadas chilenas tiveram de implantar novas estratégias para atender à demanda de armamentos que recebiam dos EUA. A denominada Emenda Kennedy, de 1976, impediu, até o começo da década de 1990, a comercialização de armas vindas dos EUA. Assim, essa Emenda obrigou a ditadura militar a recorrer a intermediários no mercado negro e a estimular a produção de armamentos dentro do país. De toda forma, a assessoria e acompanhamento da ditadura militar chilena, por parte de agências norte-americanas, não parou. Uma demonstração disso é que uma relevante informação [dos serviços] de inteligência permitiu detectar e apreender armamentos da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), destinada à Revolta Nacional de 1986; quem transmitiu essa informação aos organismos de segurança do Chile foi a CIA.
Fórum – Militantes de esquerda, que estiveram detidos, foram interrogados ou torturados por agentes norte-americanos? Qual o papel de Michael Townley no Chile?
Igor Goicovic – A figura de Michael Townley sempre foi controversa. As informações a seu respeito ainda não são muito precisas, porém, acredita-se que tenha sido um agente da CIA, infiltrado no Chile em 1969. Nessa condição, participou da formação paramilitar dos grupos de ação da Frente Nacionalista Pátria e Liberdade, um grupo de extrema direita que cometeu muitos atos terroristas no Chile durante o governo de Allende. Por exemplo, está judicialmente provado que Townley participou, em março de 1973, na cidade de Concepción, do assassinato do trabalhador Jorge Henriquez González. Esse trabalhador, de filiação socialista, operava uma antena de interferência que impedia a transmissão do principal canal de televisão que se opunha ao governo Allende.
Igor Goicovic – A figura de Michael Townley sempre foi controversa. As informações a seu respeito ainda não são muito precisas, porém, acredita-se que tenha sido um agente da CIA, infiltrado no Chile em 1969. Nessa condição, participou da formação paramilitar dos grupos de ação da Frente Nacionalista Pátria e Liberdade, um grupo de extrema direita que cometeu muitos atos terroristas no Chile durante o governo de Allende. Por exemplo, está judicialmente provado que Townley participou, em março de 1973, na cidade de Concepción, do assassinato do trabalhador Jorge Henriquez González. Esse trabalhador, de filiação socialista, operava uma antena de interferência que impedia a transmissão do principal canal de televisão que se opunha ao governo Allende.
Depois do golpe de Estado, em setembro de 1973, Michael Townley começou a trabalhar com a Dina e, em sua condição de agente duplo (CIA e Dina), realizou o desenho operativo e participou da execução do ex-comandante e chefe do Exército do Chile Carlos Prats González e de sua esposa Sofía Cuthbert, em Buenos Aires, em 1974, além de ter matado Orlando Letelier del Solar, ex-ministro da Defesa de Salvador Allende.
Townley também esteve presente no planejamento do atentado contra o dirigente democrata Bernardo Leighton e sua esposa Ana María Fresno, em Roma, em 1975. A operação contou com o apoio de militantes neofascistas italianos comandados por Stefano delle Chiaie, que tinham o apoio logístico da Dina chilena. O casal ficou ferido, porém, sobreviveu. Todas essas ações atestam o estreito vínculo entre a CIA e a Dina, por meio da figura de Michael Townley. Não à toa, Townley vive hoje nos EUA, protegido pelas autoridades norte-americanas.
Fórum – É possível fazer um paralelo entre a espionagem norte-americana nas décadas da ditadura e a espionagem dos EUA da atualidade, na internet?
Igor Goicovic – Estamos diante de cenários distintos. As ditaduras desapareceram e, junto com elas, se difundiu o medo. As sociedades latino-americanas, em especial as classes populares, voltam aos poucos a recuperar seus sonhos e utopias. Em nossa região, se abrem novamente caminhos para velhos e novos movimentos sociais, que, com suas demandas e programas, ameaçam os interesses das burguesias e do Império. As velhas táticas de controle social empregadas pelos Estados ditatoriais neste momento, como execuções sumárias, desaparecimentos e torturas, carecem de espaço social e institucional, do qual dispuseram na década de 1970. Se fez necessário pensar novos mecanismos e recursos de controle social. Assim, em países como a Colômbia, onde a insurgência armada continua constituindo uma ameaça para o sistema dominante, a presença militar dos EUA é evidente. Porém, nos outros países onde se exige respeito pela soberania interna, os procedimentos precisam ser mais elaborados. Está noticiado, pela própria imprensa norte-americana, que a Agência Nacional de Segurança (NSA) tem acesso ao correio eletrônico e sistema de telefonia de vários países. Para organismos como esse, a informação se constitui na chave para a luta pela continuidade do poder imperial. Por outro lado, para os povos da região, essa mesma ferramenta pode se converter na arma para a emancipação.
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