Teórico argentino destrincha as razões desse fenômeno político
Livro de Ernesto Laclau publicado agora no Brasil revê o populismo em chave bem diversa do menosprezo e desdém em geral atribuído a ele. Para o pesquisador, a prática política representa uma articulação profunda por mudanças institucionais e teve papel preponderante na consolidação da democracia na América Latina.
O populismo foi essencial na construção de governos nacionais e populares na América Latina e "teve um papel enormemente positivo para a democracia no continente". A visão é do sociólogo e historiador argentino Ernesto Laclau, 78, um especialista no tema que divide o debate político e horroriza setores conservadores.
Parafraseando o célebre "Manifesto Comunista", de Karl Marx, ele afirma: "Há um fantasma que assombra a América Latina e esse fantasma é o populismo".
Professor emérito de teoria política da Universidade de Essex (Grã-Bretanha), Laclau mergulha no fenômeno em "A Razão Populista" [trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Três Estrelas, R$ 69,90, 384 págs.].
Para ele, a ascensão de movimentos de massas no continente provoca mudanças em governos, que assumem características nacional-populares. Há batalhas por alterações institucionais e inevitáveis choques com elites. Institucionalismo versus populismo --aí está o embate.
"A participação democrática das massas, com seus ideais comunitários, não se ajusta a Estados liberais tradicionais", afirma ele, em entrevista à Folha.
Afinal, as instituições nunca são neutras. "Elas são a cristalização de uma relação de forças entre grupos sociais. Quando mudam essas relações, as instituições --e até as constituições-- precisam ser modificadas. Estamos num processo de mudança no qual as novas forças sociais estão fazendo novas demandas e, naturalmente, vão se chocar com vários aspectos constitucionais estabelecidos anteriormente, em sociedades que eram muito diferentes", analisa.
É para bloquear essa ascensão das massas que o poder conservador trata de se agarrar a essas antigas formas institucionais e faz uma cruzada antipopulista, avalia Laclau. "Não que as instituições tenham que ser abolidas, mas precisam ser reformadas", pondera. "As instituições da República Velha do Brasil não funcionariam na sociedade contemporânea", exemplifica o professor.
Laclau se refere especialmente às mudanças institucionais ocorridas na Bolívia, no Equador e na Venezuela.
Nesse último país, diz que houve uma mudança radical, que deixou para trás uma sociedade desestruturada e com pouca participação de massas. Destaca o papel das "misiones" (os programas sociais chavistas), que formam grupos autônomos em distintos níveis da comunidade. "Essa sociedade necessita instituições novas, e os conservadores querem manter as instituições mais tradicionais."
Também no Equador o debate foi para mudar leis dos anos 1990, que refletiam o apogeu do neoliberalismo e das ideias do Consenso de Washington implantadas no país. Situações semelhantes ocorrem na Bolívia, com participação indígena, e na Argentina.
Pergunto sobre o alegado viés autoritário que, segundo alguns, está embutido em mudanças nesses países. Laclau diz que a acusação é absurda. Cita as eleições periódicas que ocorrem hoje no continente. E lembra as ditaduras que proliferaram por aqui no século 20, especialmente do Chile de Augusto Pinochet.
"Se houve um ataque autoritário às instituições, esse ataque não veio do populismo, veio do neoliberalismo", declara.
RETÓRICA O populismo é alvo de achincalhe, menosprezo, desdém. Muitas vezes, é apontado como simples retórica. É o que Laclau descreve, com exemplos históricos, em todo um capítulo. "O populismo não só tem sido degradado mas também denegrido. Seu rechaço tem sido parte da construção discursiva de certa normalidade, de um universo político ascético do qual sua lógica perigosa teria que ser excluída", diz.
É dessa concepção de um mundo sem ação das massas que surgem as conhecidas ideias de que governos devem ser exercidos por técnicos e gestores teoricamente competentes? "Trocar a política pela administração tem sido sempre a ideologia conservadora das elites econômicas da América Latina", responde Laclau.
E observa que não é à toa que na bandeira brasileira consta o lema positivista "ordem e progresso".
E o que é, então, o populismo? Para Laclau, é "uma forma de construir o político, não é uma ideologia". Supõe uma divisão da sociedade em dois campos e ocorre quando os "de baixo" interpelam o poder. Surge quando as instituições já não são capazes de absorver as reivindicações dos "de baixo". "Tais demandas tendem a se aglutinar fora do sistema, num ponto de ruptura com o sistema. É o corte populista", define.
É na construção desse conceito que se desenrola o livro "A Razão Populista", publicado originalmente na Grã-Bretanha em 2005. Na apresentação da edição brasileira, os professores Alice Casimiro Lopes e Daniel de Mendonça frisam que o populismo "não é uma anomalia ou mesmo um subdesenvolvimento irracional da democracia representativa".
Eles ressaltam que o populismo, na concepção de Laclau, não pode ser resumido apenas à relação entre liderança política e população, ao seu carisma. Mas representa uma articulação política muito mais profunda, uma "construção do povo contra o seu inimigo" --pobres versus ricos, nacionais versus estrangeiros. O povo não é uma categoria estática, mas sempre uma construção discursiva, com as mais diversas experiências e tendências ideológicas.
Licenciado em história pela Universidade de Buenos Aires, Laclau foi para a Inglaterra nos anos 1970. Dirigiu o Centro de Estudos Teóricos em Humanidades e Ciências Sociais em Essex. Escreveu "Política e Ideologia na Teoria Marxista" (Paz e Terra, 1978) e "Emancipação e Diferença" (Eduerj, 2011).
Por telefone, desde Londres, o historiador afirma que na República Velha brasileira os canais para as demandas ocorriam por meio do coronelismo e outras formas de poder. "Em certo momento, as demandas das massas começaram a ser mais amplas do que os canais institucionais tradicionais podiam absorver. Então começam a ser produzidos momentos de ruptura: a Coluna Prestes, a Revolução de 1930, o Estado Novo. É um processo de rompimento com os canais tradicionais de absorção das demandas e de formulação das demandas."
Como comparar Getúlio Vargas com Juan Domingo Perón?
"Perón encarnava um populismo mais radical", avalia Laclau. A Argentina naquela época tinha núcleos industriais bem definidos (Buenos Aires, Rosario, Córdoba) e uma sociedade mais homogênea. "Vargas encontrou uma base social muito mais heterogênea. O Brasil é mais regionalizado do que a Argentina. Getúlio foi um líder populista impuro, mas um articulador de interesses muito visíveis."
Laclau lembra que o processo de construção da democracia na América Latina tem características específicas. Na Europa, o Legislativo assumiu um papel de protagonista, ao levar as reivindicações populares ao poder monárquico centralizador. Aqui, aconteceu o contrário.
"O poder parlamentar era o poder das oligarquias locais, de proprietários de terras, de interesses agrários que se organizavam em torno do Estado. Na América Latina, o Poder Executivo tem sido mais democrático que o Legislativo e segue sendo central na democracia de hoje", analisa.
ORIENTAÇÃO Segundo Laclau, o populismo pode ser de direita ou de esquerda --é indeterminado do ponto de vista de sua orientação ideológica. "O fascismo italiano e o maoísmo na China foram populismos", defende. Se atualmente, na América Latina, "o populismo está ligado à ascensão de regimes de esquerda e se fundamenta na construção de uma ordem nacional e popular que rompa com os ditames do Consenso de Washington", na Europa é diferente.
Lá, aponta o sociólogo, "temos um populismo étnico em países do Leste, após a desintegração do sistema soviético; um populismo também de direita na Europa Ocidental, baseado na xenofobia e no repúdio aos imigrantes". São casos de um populismo "conservador e reacionário, que não é progressivo em nenhum aspecto". Ao contrário do que ocorre na América Latina, aí o populismo é negativo na classificação de Laclau.
Na história brasileira, ele inclui Adhemar de Barros entre os populistas, comparando-o com Mao Tse-tung. São dois exemplos extremos. Na Grande Marcha chinesa, há a tentativa de constituir "o povo' como ator histórico a partir de uma pluralidade de situações antagônicas". O contexto é de guerra civil, invasão japonesa. Existe a intenção de romper com a ordem institucional e construir outra.
Já em Adhemar, do lema "rouba, mas faz", Laclau enxerga um clientelismo e um sistema de corrupção que, à primeira vista, pouco têm a ver com o projeto emancipatório de Mao. Mas ele define os dois como populistas. "O elemento comum é fornecido pela presença de uma dimensão anti-institucional, de certo desafio a uma normalização política, à ordem habitual das coisas'. Em ambos os casos ocorre um chamado aos despossuídos", argumenta.
Há a atração popular pelo criminoso de alto coturno, por alguém que está fora do sistema legal e o desafia, diz Laclau, acrescentando que "o clientelismo não é necessariamente populista".
O que acha o sociólogo sobre o "lulismo"? "É um fenômeno altamente positivo na sociedade brasileira", responde, especialmente porque elabora um equilíbrio entre uma nova participação de massas e a transformação do Estado.
E Lula é um populista? Parcialmente, diz. "Lula foi um construtor de uma sociedade civil nova", declara. Para ele, o ex-presidente foi muito importante para "valorizar a integração latino-americana", estruturando o Mercosul e rechaçando a implantação da Alca, almejada pelos EUA.
Apesar das muitas nuances e diferenças, Laclau avalia que, "no essencial, o Brasil acompanhou o processo de afirmação nacional e popular no continente". Os protestos recentes mostram que não há ligação direta entre a melhoria das condições econômicas e as manifestações por mudança.
Pelo mundo, ele identifica um elo entre as várias revoltas que eclodiram a partir da crise de 2008: a menor capacidade das instituições tradicionais de absorver as demandas das massas. "As pessoas não se reconhecem no sistema político e começam a se mobilizar fora dele", advoga.
Na visão de Laclau, "uma das coisas boas dos regimes populares da América Latina é que conseguiram combinar bastante bem as mobilizações dos de baixo' com uma tentativa de mudar a estrutura do Estado. Isso funcionou na região muito melhor do que na Europa, que é mais impermeável a modificações. Lá as pessoas percebem que há poucas possibilidades de mudanças dentro do sistema".
Esse fato, segundo ele, ajuda a explicar os problemas que a esquerda enfrenta no velho continente. De um lado, há burocratização de regimes distanciados das massas; de outro, massas que protestam sem almejar o Estado e sem maior organização.
"Não creio no discurso que diz não se importar com o poder estatal. A mobilização das massas, se não é acompanhada de um projeto de transformação política, tende à dispersão", alerta. Para ele, os movimentos precisam buscar autonomia e "transformar o Estado".
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