domingo, 22 de dezembro de 2013

De espaços outros. por Michel Foucault

Nesta conferência, proferida durante o período em que foi professor visitante na Tunísia e
 publicada quase vinte anos mais tarde, Michel Foucault parte de sua seminal tese sobre o
 fato de o século XX ser o século do espaço, a fim de alertar para a importância de uma
história do espaço, na experiência ocidental. Diferenciando entre espaço de localização
 (medieval), de extensão (evidenciado por Galileu) e de alocação (contemporâneo),
cabe problematizar em particular a heterogeneidade deste último por referência ao
 "espaço do fora", conjunto de relações que definem alocações irredutíveis umas
às outras. Nesse âmbito, que conta com dois grandes tipos de alocações -
utopias e heterotopias -, interessam em especial essas últimas, utopias efetivamente
realizadas que o autor "descreve" - em sua "heterotopologia" - como marcadas por
 seis princípios, explicitados um a um com o auxílio de exemplos inspiradores.
A grande obsessão do século XIX foi, sabe-se, a história: temas do desenvolvimento e da estagnação, temas da crise e do ciclo, da acumulação do passado, do grande excesso de mortos, do resfriamento ameaçador do mundo. Foi no segundo princípio da termodinâmica que o século XIX encontrou a essência de seus recursos mitológicos. A época atual seria talvez sobretudo a época do espaço. Estamos na época da simultaneidade, estamos na época da justaposição, na época do próximo e do distante, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo é experimentado, creio, menos como uma grande vida que se desenvolveria através do tempo, do que como uma rede que liga pontos e entrecruza seu emaranhado. Talvez seja possível afirmar que alguns dos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desenrolam entre os devotos descendentes do tempo e os aferrados habitantes do espaço. O estruturalismo, ou ao menos aquilo que é agrupado sob esse nome ligeiramente genérico, é o esforço para estabelecer, entre elementos que podem ter sido distribuídos através do tempo, um conjunto de relações que os faz aparecer como justapostos, opostos, implicados um pelo outro; em resumo, que os faz aparecer como uma espécie de configuração. E, na verdade, não se trata, desse modo, de negar o tempo, mas uma determinada maneira de tratar aquilo que é chamado de tempo e também de história.
É preciso, entretanto, notar que o espaço que aparece hoje no horizonte de nossas inquietações, de nossa teoria, de nossos sistemas não é uma inovação; o próprio espaço tem, na experiência ocidental, uma história, e não é possível ignorar esse entrecruzamento fatal do tempo com o espaço. Poder-se-ia dizer, para reconstituir bem grosseiramente essa história do espaço, que, na Idade Média, ele era um conjunto hierarquizado de lugares: lugares sagrados e lugares profanos; lugares protegidos e lugares, ao contrário, abertos e sem defesa; lugares urbanos e lugares rurais (isso para a vida real dos homens); para a teoria cosmológica, havia os lugares supracelestes opostos ao lugar celeste, o qual, por sua vez, opunha-se ao lugar terrestre; havia os lugares onde as coisas se encontravam alocadas,2 por terem sido deslocadas violentamente, e ainda os lugares onde, ao contrário, as coisas encontravam sua alocação3 e sua base naturais. Toda essa hierarquia, essa oposição, esse entrecruzamento de lugares constituíam o que se poderia denominar bem grosseiramente de espaço medieval: espaço de localização.4
Esse espaço de localização se abriu com Galileu, pois o verdadeiro escândalo de sua obra não é tanto o de ter descoberto, ou melhor, redescoberto que a Terra girava em torno do sol, mas de ter constituído um espaço infinito, e infinitamente aberto; de tal modo que o lugar da Idade Média aí se encontrava, de certa maneira, dissolvido; o lugar de uma coisa não era mais do que um ponto no interior de seu movimento, assim como o repouso de uma coisa não era senão seu movimento indefinidamente desacelerado. Em outras palavras, a partir de Galileu, a partir do século XVII, a extensão substitui a localização.
Atualmente, a alocação substitui a extensão, que, por sua vez, substituiu a localização. A alocação é definida pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente, elas podem ser descritas como séries, árvores, grades.
Por outro lado, sabe-se da importância dos problemas de alocação na técnica contemporânea: armazenamento da informação ou dos resultados parciais de um cálculo na memória de uma máquina; circulação de elementos discretos, de saída aleatória (como tão simplesmente os automóveis ou, por fim, os sons numa linha telefônica); identificação de elementos, marcados ou codificados, no interior de um conjunto que é seja distribuído ao acaso, seja classificado segundo uma classificação unívoca, seja classificado segundo uma classificação plurívoca etc.
De maneira ainda mais concreta, o problema do local ou da alocação se propõe para os homens em termos demográficos. E este último problema da alocação humana não é simplesmente a questão de saber se haverá espaço suficiente para o homem no mundo - problema que é, afinal, bem importante -; mas é também o problema de saber quais relações de vizinhança, qual tipo de armazenamento, de circulação, de identificação, de classificação dos elementos humanos devem ser adotados preferencialmente, nesta ou naquela situação, para atingir este ou aquele fim. Estamos em uma época em que o espaço se apresenta a nós sob a forma de relações entre alocações.
Em todo caso, creio que a inquietude de hoje concerne fundamentalmente ao espaço, sem dúvida muito mais do que ao tempo; o tempo aparece provavelmente apenas como uma das operações de distribuição possíveis entre os elementos que se distribuem no espaço.
Ora, apesar de todas as técnicas que o cercam, apesar de toda a rede de saber que permite determiná-lo ou formalizá-lo, o espaço contemporâneo talvez não esteja ainda totalmente dessacralizado - à diferença, sem dúvida, do tempo, o qual foi dessacralizado no século XIX. De fato, ocorreu uma certa dessacralização teórica do espaço (aquela sinalizada pela obra de Galileu), mas talvez não tenhamos ainda alcançado uma dessacralização prática do espaço. E, talvez, nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições nas quais não se pode tocar, e que a instituição e a prática até agora não ousaram atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas - por exemplo, entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de trabalho; todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização.
A obra - imensa - de Bachelard,5 as descrições dos fenomenologistas nos ensinaram que não vivemos em um espaço homogêneo e vazio; mas, ao contrário, em um espaço que é todo carregado de qualidades, um espaço que é talvez também assombrado por fantasmas. O espaço de nossa percepção primeira, o de nossos devaneios, o de nossas paixões, detém em si qualidades que são como intrínsecas; é um espaço leve, etéreo, transparente ou, então, é um espaço obscuro, caótico, saturado: é um espaço do alto, um espaço dos cimos ou é, ao contrário, um espaço de baixo, um espaço da lama; é um espaço que pode ser corrente como a água viva; é um espaço que pode ser fixado, imobilizado como a pedra ou como o cristal.
Essas análises, no entanto, embora fundamentais para a reflexão contemporânea, concernem, sobretudo, ao espaço do dentro. É sobre o espaço do fora que eu gostaria de falar agora.
O espaço em que vivemos, pelo qual somos lançados para fora de nós mesmos, no qual se desenrola precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo e de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos erode é também, em si mesmo, um espaço heterogêneo. Em outras palavras, nós não vivemos em uma espécie de vazio, no interior do qual seria possível situar indivíduos e coisas. Nós não vivemos no interior de um vazio que se revestiria de diferentes espelhamentos; nós vivemos no interior de um conjunto de relações que definem alocações irredutíveis umas às outras, e absolutamente não passíveis de sobreposição.
Evidentemente, poder-se-ia empreender a descrição dessas diferentes alocações, procurando o conjunto de relações pelo qual se pode defini-las. Por exemplo: descrever o conjunto das relações que definem as alocações de passagem, as ruas, os trens (um trem é um extraordinário feixe de relações, pois é algo através do qual se passa, é também algo pelo qual se pode passar de um ponto a outro, e, ainda, algo que igualmente passa). Poder-se-ia descrever, pelo feixe das relações que permitem defini-las, essas alocações de parada transitória que são os cafés, os cinemas, as praias. Poder-se-ia igualmente definir, por sua rede de relações, a alocação de descanso, aberta ou semiaberta, que constituem a casa, o quarto, a cama etc. Mas o que me interessa, dentre todas essas alocações, são algumas que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todas as demais alocações; mas, de um modo tal, que elas suspendem, neutralizam, ou invertem o conjunto das relações que são por elas designadas, refletidas ou reflexionadas. Esses espaços que, de alguma forma, estão ligados a todos os outros, e que, no entanto, contradizem todas as outras alocações, são de dois grandes tipos.
Primeiramente, há as utopias. Essas são as alocações sem lugar real. São as alocações que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou invertida. É a própria sociedade aperfeiçoada, ou é o inverso da sociedade; mas, de toda forma, essas utopias são espaços fundamentalmente, essencialmente, irreais.
Há igualmente - e isso provavelmente em toda cultura, em toda civilização - lugares reais, lugares efetivos, lugares que são desenhados na própria instituição da sociedade e que são espécies de contra-alocações, espécies de utopias efetivamente realizadas, nas quais as alocações reais, todas as outras alocações reais que podem ser encontradas no interior da cultura, são simultaneamente representadas, contestadas e invertidas; espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis. Por serem absolutamente outros quanto a todas as alocações que eles refletem e sobre as quais falam, denominarei tais lugares, por oposição às utopias, de heterotopias. E creio que entre as utopias e essas alocações absolutamente outras, essas heterotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista, conjugada, que seria o espelho. O espelho, afinal de contas, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície; estou ali onde não estou; uma espécie de sombra que me confere minha própria visibilidade, que me permite olhar-me ali onde sou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente e tem, no local que eu ocupo, uma espécie de efeito de retorno; é a partir do espelho que me descubro ausente do local onde estou, já que me vejo ali. A partir desse olhar, que de certa forma se dirige a mim, do fundo desse espaço virtual do outro lado do vidro, eu retorno a mim e recomeço a dirigir meus olhos a mim mesmo e a me reconstituir ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia, no sentido de que ele torna esse local, que eu ocupo no momento em que me olho no vidro, ao mesmo tempo absolutamente real, em ligação com todo o espaço que o cerca, e absolutamente irreal, já que tal local precisa, para ser percebido, passar por esse ponto virtual que está ali.
Quanto às heterotopias propriamente ditas, como se poderia descrevê-las, qual sentido elas têm? Poder-se-ia supor não digo uma ciência, pois é um termo demasiado desgastado, atualmente, mas uma espécie de descrição sistemática que teria por objeto, em uma sociedade determinada, o estudo, a análise, a descrição, a "leitura" - como se gosta de dizer hoje - desses espaços diferentes, esses outros lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço onde vivemos: tal descrição poderia ser chamada de heterotopologia. O primeiro princípio é que, provavelmente, não existe uma só cultura no mundo que não constitua heterotopias. Eis aí uma constante de todo grupo humano. Contudo, as heterotopias assumem evidentemente formas muito variadas, e talvez não se encontre uma única forma de heterotopia que seja absolutamente universal. Entretanto, elas podem ser classificadas em dois grandes tipos.
Nas sociedades ditas "primitivas", existe uma determinada forma de heterotopia que eu chamaria de heterotopia de crise; ou seja, que há lugares privilegiados, ou sagrados, ou proibidos, reservados aos indivíduos que, em relação à sociedade e ao meio humano no interior do qual vivem, se encontram em estado de crise: os adolescentes, as mulheres na época dos ciclos menstruais, as parturientes, os idosos etc.
Em nossa sociedade, essas heterotopias de crise não cessam de desaparecer, embora se encontrem ainda alguns resíduos delas. Por exemplo, o colégio em sua forma do século XIX ou o serviço militar para os rapazes desempenharam certamente tal papel, com as primeiras manifestações da sexualidade viril devendo ter lugar precisamente "alhures", e não na família. Para as moças existia, até a metade do século XX, uma tradição chamada de "viagem de núpcias", que era um tema ancestral. A defloração da moça tinha de ocorrer "nenhures", e, nesse momento, o trem, o hotel da viagem de núpcias eram exatamente esse lugar de nenhuma parte, essa heterotopia sem referências geográficas.
Mas hoje essas heterotopias de crise vêm desaparecendo, e sendo substituí-das, creio, por heterotopias que poderíamos chamar de desvio: aquele em que se alocam os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média, ou à norma exigida. São as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas; e são, certamente também, as prisões. E seria preciso aí incluir, sem dúvida, os asilos para aposentados, que, de certo modo, estão no limite entre a heterotopia de crise e a heterotopia de desvio; pois, afinal, a velhice é uma crise, mas igualmente um desvio, já que em nossa sociedade, onde o lazer é a regra, a ociosidade constitui uma espécie de desvio.
O segundo princípio dessa descrição das heterotopias é que, ao longo de sua história, uma sociedade pode fazer funcionar de um modo muito diferente uma heterotopia que existe e que não deixou de existir. Com efeito, cada heterotopia tem um funcionamento preciso e determinado no interior da sociedade, e a mesma heterotopia pode, segundo a sincronia da cultura em que se encontra, ter um funcionamento ou outro.
Tomarei como exemplo a curiosa heterotopia do cemitério. O cemitério é certamente um lugar outro, comparativamente aos espaços culturais comuns; é um espaço que está, no entanto, ligado ao conjunto de todas as alocações da cidade ou da sociedade ou do vilarejo, já que cada indivíduo, cada família se vê tendo familiares no cemitério. Na cultura ocidental, o cemitério praticamente sempre existiu. Mas ele sofreu transformações importantes. Até o final do século XVIII, o cemitério era alocado no coração mesmo da cidade, ao lado da igreja. Ali existia toda uma hierarquia de sepulturas possíveis. Havia a vala comum, na qual os cadáveres perdiam até o último traço de individualidade, havia algumas tumbas individuais, e ainda havia aquelas no interior da igreja. Essas tumbas eram de dois tipos: ou simplesmente lápides com uma inscrição, ou mausoléus com estátuas. Esse cemitério, que se alojava no espaço sagrado da igreja, adquiriu nas civilizações modernas um aspecto totalmente diverso; e, curiosamente, foi na época em que a civilização se tornou, como se diz muito grosseiramente, "ateia" que a cultura ocidental inaugurou o que se denomina de culto dos mortos.
No fundo, era bem natural que, na época em que se acreditava efetivamente na ressurreição dos corpos e na imortalidade da alma, não se conferisse uma importância capital aos restos mortais. Ao contrário, a partir do momento em que não mais se tem tanta certeza de se possuir uma alma, de que o corpo ressuscitará, seja talvez necessário dar muito mais atenção a esses restos mortais, que são, afinal, o único traço de nossa existência no mundo e nas palavras.
Em todo caso, é a partir do século XIX que cada indivíduo teve direito à sua caixinha para sua pequena decomposição pessoal; mas, de outro lado, é somente a partir do século XIX que se passou a colocar os cemitérios no limite exterior das cidades. Correlativamente a essa individualização da morte e à apropriação burguesa do cemitério, nasceu a obsessão da morte como "doença". São os mortos, supõe-se, que trazem as doenças aos vivos, e é a presença e a proximidade dos mortos bem ao lado das casas, bem ao lado da igreja, quase no meio da rua, é essa proximidade que propaga a própria morte. Esse grande tema da doença difundida pelo contágio dos cemitérios persistiu no final do século XVIII; e é somente no decorrer do século XIX que os cemitérios começam a ser deslocados para os arrabaldes. Os cemitérios não mais constituem, assim, o vento sagrado e imortal da cidade, mas a "outra cidade", onde cada família possui sua morada escura.
Terceiro princípio: a heterotopia tem o poder de justapor em um único lugar real vários espaços, várias alocações que são em si mesmas incompatíveis. É assim que o teatro faz suceder, sobre o retângulo do palco, toda uma série de lugares que são estranhos uns aos outros; e é assim que o cinema é uma sala retangular bem curiosa, no fundo da qual, sobre uma tela de duas dimensões, se vê projetar-se um espaço de três dimensões; mas, talvez, o exemplo mais antigo dessas heterotopias na forma de alocações contraditórias seja o jardim. Não se deve esquecer de que o jardim, espantosa criação agora milenar, tinha, no Oriente, significações muito profundas e como que superpostas. O tradicional jardim dos persas era um espaço sagrado que, dentro de seu retângulo, devia reunir quatro partes representando os quatro cantos do mundo, tendo no meio um espaço mais sagrado ainda que os demais, que era como o centro, o umbigo do mundo (onde ficavam a fonte e o jato d'água); e toda a vegetação do jardim devia distribuir-se nesse espaço, dentro dessa espécie de microcosmo. Já os tapetes, eles eram, originalmente, reproduções de jardins. O jardim é um tapete em que o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica; e o tapete é uma espécie de jardim móvel através do espaço. O jardim, essa é a menor parcela do mundo, e, então, essa é a totalidade do mundo. O jardim é, desde o início da Antiguidade, uma espécie de heterotopia feliz e universalizante (daí os nossos jardins zoológicos).
Quarto princípio: as heterotopias estão associadas, muito frequentemente, a recortes do tempo; isto é, elas se abrem para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronias. A heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com o seu tempo tradicional. Vê-se, assim, que o cemitério é mesmo um lugar altamente heterotópico, pois ele tem início com essa estranha heterocronia que é, para um indivíduo, a perda da vida, e essa quase eternidade em que ele não cessa de se dissolver e de desaparecer.
De modo geral, em uma sociedade como a nossa, heterotopia e heterocronia se organizam e se arranjam de um modo relativamente complexo. Há, primeiramente, as heterotopias do tempo que se acumula indefinidamente: por exemplo, os museus, as bibliotecas; museus e bibliotecas são heterotopias nas quais o tempo não cessa de se amontoar e de se sobrepor a si mesmo, embora no século XVII, e até ainda no seu final, os museus e as bibliotecas fossem a expressão de uma escolha individual. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de constituir uma espécie de arquivo geral, a vontade de encerrar em um lugar todos os tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os gostos; a ideia de constituir um lugar de todos os tempos, que seja ele mesmo fora do tempo, e inacessível a sua corrosão; o projeto de organizar, assim, uma espécie de acumulação perpétua e indefinida do tempo em um lugar que não se moveria: enfim, tudo isso pertence a nossa modernidade. O museu e a biblioteca são heterotopias próprias da cultura ocidental do século XIX.
Diante dessas heterotopias que estão associadas à acumulação do tempo, há heterotopias que estão ligadas, ao contrário, ao tempo no que ele tem de mais fútil, demais passageiro, de mais precário, e isso no modo de festa. São heterotopias não mais eternitárias,6 mas absolutamente crônicas. Assim são as feiras, essas maravilhosas alocações vazias nos limites das cidades, que se povoam, uma ou duas vezes por ano, de barracas, de estandes, de objetos heteróclitos, de lutadores, de mulheres-serpente, de videntes. Bem recentemente também, inventou-se uma nova heterotopia crônica, que são as estâncias de férias; essas aldeias polinésias que oferecem três semaninhas de uma nudez primitiva e eternal aos habitantes das cidades. E vocês observam, aliás, que, pelas duas formas de heterotopias, se juntam aquela da festa e a da eternidade do tempo que se acumula; as cabanas de Djerba são, em certo sentido, semelhantes a bibliotecas e museus, pois, ao se encontrar a vida polinésia, abole-se o tempo, mas é, da mesma maneira, o tempo que se reencontra; é toda a história da humanidade que remonta à sua origem, como uma espécie de grande saber imediato.
Quinto princípio: as heterotopias pressupõem sempre um sistema de abertura e de fechamento que simultaneamente as isola e as torna penetráveis. Em geral, não se acede a uma alocação heterotópica como a um local onde é possível entrar e sair sem restrições.7 Ou bem se é para lá coagido - como no caso da caserna, da prisão -, ou bem é preciso submeter-se a ritos e purificações. Só se pode entrar nela com uma certa permissão e desde que se tenha feito uma determinada quantidade de gestos. Há mesmo, aliás, heterotopias que são inteiramente consagradas a tais atividades de purificação, purificação semirreligiosa, semi-higiênica, como nas termas dos muçulmanos; ou, então, purificação de aparência puramente higiênica, como nas saunas escandinavas.
Há outras, ao contrário, que parecem puras e simples aberturas, mas que, geralmente, escondem curiosas exclusões. Todo o mundo pode entrar nessas alocações heterotópicas, mas, a bem da verdade, isso é apenas uma ilusão: crê-se adentrar e se está, pelo próprio fato de entrar, excluído. Penso, por exemplo, nesses famosos quartos que existiam nas grandes fazendas do Brasil e, em geral, da América do Sul. A porta para neles entrar não dava para o cômodo central onde vivia a família, e todo indivíduo que passava, todo viajante tinha o direito de empurrar essa porta, entrar no quarto e então ali dormir por uma noite. Ora, esses quartos eram tais que o indivíduo que por aí passava não tinha jamais acesso ao seio mesmo da família; ele era simplesmente o hóspede de passagem, ele não era verdadeiramente o convidado. Esse tipo de heterotopia, agora praticamente desaparecido em nossas civilizações, talvez possa ser reencontrado nos famosos quartos dos motéis americanos, onde se entra com o carro e a amante, e onde a sexualidade ilegal está absolutamente garantida e escondida, mantida a distância, sem ser, entretanto, consentida.
Enfim, o último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante, uma função. Esta se desenvolve entre dois pólos extremos. Ou bem elas têm o papel de criar um espaço de ilusão, que denuncia como mais ilusório ainda todo o espaço real, todas as alocações no interior das quais a vida humana é compartimentada (talvez seja esse o papel que, por muito tempo, tiveram os famosos bordéis, dos quais estamos agora privados). Ou então, ao contrário, o papel das heterotopias é criar um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arranjado quanto o nosso é desordenado, mal disposto e bagunçado. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação, e eu me pergunto se não é um pouco dessa maneira que algumas colônias funcionaram.
Em alguns casos essas desempenharam, ao nível da organização geral do espaço terrestre, o papel de heterotopias. Penso, por exemplo, na época da primeira leva de colonização, no século XVII, nessas sociedades puritanas que os ingleses fundaram na América, e que eram outros lugares absolutamente perfeitos.
Penso também nessas extraordinárias colônias de jesuítas fundadas na América do Sul: colônias maravilhosas, absolutamente regradas, nas quais a perfeição humana estava efetivamente cumprida. Os jesuítas do Paraguai tinham fundado colônias nas quais a existência era regulada em cada um de seus aspectos. A aldeia era distribuída segundo uma disposição rigorosa em torno de uma praça retangular, no fundo da qual havia a igreja; de um lado o colégio, de outro o cemitério, e ainda, diante da igreja, abria-se uma avenida cruzada por outra em ângulo reto. As famílias tinham cada qual a sua pequena cabana ao longo desses dois eixos, reproduzindo-se assim, exatamente, o signo do Cristo. A cristandade marcava assim, com seu signo fundamental, o espaço e a geografia do mundo americano.
A vida cotidiana dos indivíduos era regrada não pelo apito, mas pelo sino. O despertar era fixado para todo mundo na mesma hora; o trabalho começava para todo mundo na mesma hora; as refeições, ao meio-dia e às cinco horas da tarde; depois se dormia, e à meia-noite havia o que se chamava de despertar conjugal, significando que, ao toque do sino do convento, cada um cumpria seu dever.
Bordéis e colônias, esses são dois tipos extremos de heterotopia. E se se imagina, enfim, que o barco é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado sobre si e é entregue, ao mesmo tempo, ao infinito do mar, e que, de porto em porto, de bordo em bordo, de bordel em bordel, vai até as colônias buscar o que elas guardam de mais precioso em seus jardins, vocês compreenderão por que o barco foi para a nossa civilização, desde o século XVI até nossos dias, ao mesmo tempo não só, evidentemente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso que eu falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio, essa é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos definham, a espionagem substitui a aventura, e a polícia, os corsários.
Notas
1 Conferência proferida no Cercle d'Études architecturales em 14 de março de 1967, e publicada originalmente em Architecture, Mouvement, continuité, n.5, outubro 1984, p.46-9. Foucault somente autorizou a publicação deste texto, escrito na Tunísia em 1967, na primavera de 1984 [Nota do Editor do Original]. A Organizadora do dossiê "O espaço na vida social" agradece a Sérgio Adorno, Marcio Alves da Fonseca, Armand Ajzenberg, Dario Luis Borelli e Alfredo Bosi o incentivo e apoio durante o processo de viabilização da cessão dos direitos de reprodução deste texto, e em especial ao editor Francisco Bilac Pinto Filho, da Editorial Forense e Forense Universitária, que gentilmente autorizou a tradução e a publicação do texto em estudos avançados. Mas agradece em particular também a Rainer Domschke por cruciais sugestões de revisão linguística. (N.O.)
2 No original, "placées". Para além das várias acepções de "place" e seus derivados em português ("placer", "emplacement"), optou-se por "local" e seus derivados ("alocar", "alocação") no intuito de evidenciar a distinção explícita que Foucault faz entre "place" e "position", e que também aparece em Bourdieu. (N.R.)
3 No original, "emplacement". (N.R.)
4 No original, "localisation". (N. R.).
5 Cf. a respeito em especial Gaston Bachelard, La poétique de l'espace, Paris: PUF, 1957. (N.R.)
6 No original, "éternitaires", um neologismo. Na tradução para o inglês ("Of Other Spaces", de Jay Miskowiec, em Diacritics, v.16, n.1, 1986, p.26), a formulação é "oriented toward the eternal". (N.R.)
7 No original, "comme dans un moulin", expressão idiomática que conota um local de acesso social irrestrito. (N.R.)
Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, foi professor de Filosofia na Universidade Clermond-Ferrand entre 1962 e 1966, professor visitante de Filosofia em Túnis entre 1966 e 1968, e titular da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France a partir de 1970.
Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Revisão técnica de Fraya Frehse. O original em francês - "Des espaces autres", publicado em Dits et écrits (v.5, Paris: Gallimard, 1994, p.752-62) - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

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