– 9 DE JUNHO DE 2015
Crônica fotográfica de uma viagem, em palavras e imagens: nos ferros retorcidos dos brinquedos que ainda restam, meninos e meninas se divertem, como se não tivessem a infância roubada
Texto e fotos de João Laet*, na Adital
É indescritível a experiência de percorrer os bairros da Faixa de Gaza e ver de perto o cenário de guerra deste pequeno território — um enclave palestino pobre e superpovoado, controlado pelo Hamas. Diante do quadro trágico com que nos deparamos, nos perguntamos se não é otimista a previsão da ONU [Organização das Nações Unidas] de que a situação de miséria dos cidadãos desta região poderá se modificar ao longo dos próximos 15 anos, se o bloqueio imposto por Israel e Egito for suspenso. Centenas de prédios públicos e privados, escolas, parques, pontes e grande parte da infraestrutura não resistiram aos sucessivos ataques lançados pelo exército israelense por terra e ar.
Ao mesmo tempo, impressiona observar a persistência e a capacidade de resistência heroica dos sobreviventes, que insistem em tentar manter a rotina de vida e de trabalho em meio aos escombros de suas lojas e casas comerciais deste pequeno território de 352 km², situado junto ao Mediterrâneo, a sudoeste de Israel e na fronteira com o Egito, onde vivem 1,5 milhão de palestinos.
Talvez tenha sido a capacidade dos palestinos que ali vivem de resistir aos sucessivos ataques que sofrem há décadas, com maior ou menor intensidade, que me levaram a decidir viajar para a região e registrar, como fotógrafo, aquela realidade tão cruel. O número de vítimas desta guerra sem fim é alarmante. Só na operação Borda Protetora, desencadeada por Israel no período de 8 de julho a 26 de agosto, 2.157 palestinos morreram em Gaza, entre eles crianças, mulheres e idosos. Outros 11 mil ficaram feridos. Do lado israelense, as baixas foram muito menores: 73 mortos, dos quais 69 soldados e 4 civis. Esses dados revelam com nitidez o desequilíbrio de forças entre os dois lados.
Na verdade, os conflitos entre palestinos e israelenses começaram no início do século passado. Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, quando houve uma migração em massa de judeus procedentes de vários países para a Palestina. Como não podia deixar de ser, isso mudou totalmente a demografia local. A região, habitada majoritariamente por árabes, passou a receber uma população judaica a cada dia em maior número.
Hoje, apesar da destruição que se vê por toda parte, os homens continuam trabalhando e as mulheres mantêm, como podem e apesar das inúmeras dificuldades, os afazeres domésticos do dia a dia. Em vários bairros, as crianças convivem com a tragédia da guerra, que é o dia a dia delas. Uniformizadas, vão para o que restou das escolas com as paredes perfuradas por balas, assistem às aulas, brincam no recreio, cantam e dão vivas a Alá. As jovens professoras parecem conseguir manter uma certa normalidade. A maioria delas não se deixa fotografar. Nos ferros retorcidos dos brinquedos que ainda restam nos locais onde um dia existiram parques, meninos e meninas se divertem, como se não tivessem a infância roubada pela guerra fratricida dos adultos.
Um israelense que conheci em Jerusalém contou que durante o último conflito o Hamas lançou 4.594 foguetes a partir de Gaza. Seiscentos foram interceptados pelo Iron Dome, o sistema antimíssil de Israel. Sessenta atingiram áreas habitadas e o restante caiu no mar ou no deserto.
Depois de 10 dias em Jerusalém, parti para Gaza, o foco de minha viagem. Contratei um carro para me levar para o GPO (Goverment Press Office) e, de lá, seguir direto para Gaza. O desafio era não ter nenhum tipo de problema ou demora para pegar a carteira de imprensa local, sem a qual não entraria em Gaza, e chegar a tempo no Portão Erez, único acesso via Israel para Gaza, que fechava às 15h30min.
Cruzei a fronteira com uma equipe do Médicos sem fronteiras, que conhecera em Jerusalém. A entrada na Faixa de Gaza lembra um pequeno aeroporto. Chega-se através de um corredor, com um pé direito muito alto, envidraçado, com várias placas de vidro quebradas pelo abalo dos bombardeios e apenas dois guichês funcionando. A sensação é de estar entrando em um presídio moderno, com detectores de metais e diversas portas giratórias. Ao fundo, uma porta automática que lembra a de um elevador de carga. Depois dela, finalmente, a Faixa de Gaza.
A porta se fechou atrás de mim. Dali, seguimos 800 metros andando num corredor gradeado. A impressão de estar numa cidade presídio se repetiu ao longo da viagem e, principalmente, na volta, quando a revista israelense foi muito mais minuciosa.
Em novembro de 1998, os moradores de Gaza receberam com euforia a inauguração do primeiro aeroporto, batizado Yasser Arafat, em homenagem ao ex-líder da Autoridade Palestina e presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Entretanto, dois anos depois, o aeroporto foi destruído pelos conflitos com Israel. Hoje, as pistas se transformaram em local de passagem de beduínos e suas ovelhas.
Em Gaza, fiquei hospedado no hotel Oriente. O quarto era mais espaçoso que o do hotel em que ficara em Jerusalém: cama de casal e outra de solteiro, banheiro com uma grande pia, escrivaninha, frigobar, armário, acarpetado, de frente para o mar. Embora não tenha sido atingido por bombardeios até minha estadia lá, as consequências da guerra são visíveis: a água é salobra, há goteiras em todos os cômodos e, apesar de um barulhento gerador, só há fornecimento de energia durante seis horas por dia.
Hospitalidade
Um traço comum nos palestinos é a hospitalidade. Todos que, de alguma forma, me ajudaram e também às pessoas com as quais trabalhei — tradutor, guia e motorista — fizeram questão de me receberem para jantares e almoços. Em todos esses momentos, apenas os homens confraternizam. As mulheres, embora cobertas da cabeça aos pés, não participam.
Gaza é um território pobre, mas não miserável. Nos bairros que percorri, não vi morador nem criança vivendo na rua. Não encontrei áreas de lazer frequentadas por homens e mulheres solteiros: nem cinema, nem teatro. Drogas e bebida alcoólica, nem pensar. Uma curiosidade: não existe sinal de trânsito.
Chamou minha atenção o fato de não existir violência urbana em Gaza. Andei sozinho à noite pelo centro de Gaza, no cais do porto, na praia, a qualquer hora do dia e da noite. Em Jerusalém e Tel Aviv presenciei confrontos entre militantes israelenses e palestinos, mas não vi assaltos.
Médicos sem fronteiras
Mais de dez mil feridos mantêm os hospitais de Gaza no limite do atendimento, enquanto os profissionais de saúde do Médicos sem fronteiras se desdobram. Estrangeiros e palestinos, homens e mulheres, formam uma equipe incansável. Com a ajuda de voluntários, eles fazem verdadeiros milagres para salvar vidas mutiladas por bombas e mísseis. Percorri o centro de fisioterapia com total liberdade. A única orientação que recebi foi a de tomar cuidado antes de fotografar mulheres, por razões culturais, e homens jovens, porque poderiam ser pessoas procuradas pelo governo de Israel.
Além dos feridos pela guerra e por acidentes de trânsito, vi muitas crianças queimadas por água fervendo, devido ao hábito de tomar chá e café. Como todos os palestinos que moram em Gaza, os médicos locais não podem sair dali. Só os resta aguardar o próximo ataque.
No caminho para o escritório da organização Médicos sem fronteiras, muita destruição. Cerca de 50 mil casas e edifícios públicos sofreram danos graves ou foram totalmente destruídos pelos bombardeios israelenses, que provocaram o deslocamento de mais de 100 mil palestinos.
Quem teve a residência destruída foi para casas de parentes ou está abrigado nas escolas da ONU. Chamou minha atenção o fato de muitas famílias voltarem para suas casas, apesar do estado precário das construções. Elas vivem o cotidiano em meio aos escombros quase com naturalidade.
Hamdan Hamada mostra o depósito de sua fábrica de molhos totalmente destruído. Ele espera ansioso a chegada dos materiais de construção para poder reativar sua indústria, que tem 60 funcionários, agora sem ter como ganhar dinheiro para sobreviver. “Não demiti ninguém, mas eles não têm o que fazer”, disse o palestino, que importa produtos, inclusive café do Brasil.
As opções profissionais são escassas nessa economia em frangalhos: o desemprego atinge 40% da população, percentual que, entre os jovens, chega a 63%. E um dado ainda mais alarmante: cerca de 80% dos habitantes de Gaza conta com ajuda humanitária para sobreviver.
Até mesmo para trabalhar corre-se o risco de ser assassinado. Os barcos dos pescadores só podem se distanciar da costa até seis milhas náuticas do litoral. Se passarem deste limite, são baleados, e isso acontece com certa frequência, inclusive depois do cessar fogo.
Agricultura e construção civil arrasadas
Em Khanyunis, sul de Gaza, vi agricultores trabalhando na colheita de azeitona, para fabricação de azeite de oliva. Os 1,8 milhão de habitantes de Gaza têm uma produção agrícola muito inferior às necessidades. Dependem de bens importados, que só podem chegar ao seu território de duas maneiras oficiais: pela fronteira com o Egito, em Rafah, sul de Gaza, e pelas passagens liberadas por Israel.
Entre 2007 e 2010 só era permitida a entrada de bens considerados essenciais e em quantidades limitadas. O cimento, por exemplo, que pode ter uso militar, foi banido. Isso significou a paralisação total da construção civil. As exportações também foram restritas.
Segundo a ONU, o bloqueio feito por Israel, que impede a entrada de materiais de construção e outros bens, impossibilita o desenvolvimento econômico na Faixa de Gaza. E foi em decorrência de tantas restrições que os túneis clandestinos, construídos e controlados pelo Hamas para contrabandear armamentos, passaram a ser importantes para os palestinos receberem combustível, mantimentos, cigarros, todo tipo de produto.
Os túneis são bem construídos, iluminados, com abertura suficiente para um adulto transitar de um lado a outro deitado. Os primeiros caminhões carregando o que Gaza precisa mais no momento — material de construção — começaram a chegar somente no dia 14 de outubro, um mês e meio após o fim do conflito. O primeiro carregamento tinha 75 caminhões. O segundo tinha apenas 28. Mas, enquanto estive na região, nenhuma obra foi iniciada e a situação piorou com as chuvas torrenciais daquele período, que obrigaram as autoridades locais a declarar estado de emergência. Economistas de Gaza calculam que seria necessário o envio de 400 caminhões por dia ao longo de seis meses.
Alto índice de alfabetização
Na escola primária de Beit Hanoon, marcas de tiros nas paredes e muros. Há seis meses sem receber salário, os professores fizeram greve de 24 horas. A escola funciona em um prédio de três andares. O terceiro está interditado. No segundo, muitas salas de aulas não têm portas nem janelas. Por um buraco de bala na parede, fotografei uma aula. Numa outra sala, um buraco ainda maior servia de comunicação entre as crianças que passavam pelo corredor.
Na hora do recreio, os estudantes perceberam meu equipamento e vieram em minha direção fazendo com os dedos o V da vitória contra Israel e o indicador apontado para o alto, que significa Alá, deus único. Um dado impressiona: apesar de anos de conflitos, a taxa de alfabetização é de 97% e a consciência política é muito grande.
Hamas
Em conversa com um militante do Hamas, ele contou que a população de Gaza aplaudiu a decisão da presidente [do Brasil] Dilma Rousseff de condenar os ataques israelenses. Fiquei surpreso ao constatar que, em meio à tragédia da guerra, eles acompanham a política no Ocidente, tão distante da realidade local.
O diretor de Operações da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) em Gaza, Robert Tumer, afirma que não existe um governo palestino efetivo ou unido na Faixa de Gaza. E adverte: se não houver um cessar fogo a curto prazo, se não houver um alívio no bloqueio, outro conflito ocorrerá. O desequilíbrio entre as forças militares é flagrante. Tumer considera também essencial para uma relativa estabilidade política a formação de um governo nacional palestino.
As estimativas mais recentes indicam que a reconstrução levará de dois a três anos. E a extensão dos danos e do número de desabrigados é inimaginável.
* João Laet é fotógrafo desde 2000. Trabalhou para a Comissão Pastoral da Terra, no Sul do Pará, em 2004 e 2005. Fotografa para o jornal O Dia desde 2005. No ano de 2011, recebeu o prêmio Award of Excellence, da Society for News Desing, na categoria Photography/Multiple Photos, pelo projeto fotográfico “Rio em dois tempos”. Na Faixa de Gaza, tenta compreender como vive os moradores do território.
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