Uma caracterização sistemática de nossa época - ou seja, a época da globalização ou mundialização do capital, caracterizada pelo predomínio de políticas neoliberais - é uma tarefa ainda não concluída por parte dos marxistas. Para levá-la a cabo, é necessária uma ampla análise de natureza teórica e empírica, que traga até nosso tempo, atualizando-as e revisando-as quando preciso, as categorias da crítica da economia política iniciada por Marx e continuada por muitos de seus principais seguidores. Uma tal análise certamente já começou a dar os seus primeiros frutos; mas, em minha opinião, eles são ainda insuficientes para fornecer uma visão marxista global - que se me permita o jogo de palavras- da globalização.
Carlos Nelson Coutinho
Por me saber incompetente para tanto, não tenho a menor intenção de fazer, nem aqui nem alhures, sequer um breve esboço desta análise; nem mesmo tenho a pretensão de apresentar um balanço da já extensa literatura marxista sobre este tema. Contudo, creio que pode contribuir para esta obra ainda em gestação uma discussão - de resto, já em curso na literatura gramsciana - sobre a possibilidade de compreender características essenciais da contemporaneidade à luz do conceito gramsciano de revolução passiva. Antecipo minha conclusão, certamente provisória e, portanto, sujeita a correções: sou cético em face desta possibilidade. Creio que, antes de falar em revolução passiva, seria útil tentar compreender muitos fenômenos da época neoliberal através do conceito de contra-reforma, que - como veremos - também faz parte, ainda que só marginalmente, do aparato categorial de Gramsci.
1. Revolução passiva
Antes de mais nada, recordemos brevemente as principais características da revolução passiva, termo que Gramsci recolhe do historiador napolitano Vincenzo Cuoco, mas atribuindo-lhe um novo conteúdo. Trata-se de um instrumento-chave de que Gramsci se serve para analisar inicialmente os eventos do Risorgimento, ou seja, da formação do Estado burguês moderno na Itália. Mas o conceito é também utilizado por Gramsci como critério de interpretação de fatos sociais complexos e até mesmo de inteiras épocas históricas, bastante diversas entre si, como, por exemplo, a Restauração pós-napoleônica, o fascismo e o americanismo.
Essa possibilidade de generalização foi assumida mais tarde por autores que se inspiraram nas reflexões gramscianas. Recordo aqui só poucos exemplos. Christine Buci-Glucksmann e Göran Therborn realizaram uma análise da ação da socialdemocracia européia e da construção do Welfare State com base no conceito de revolução passiva1. Dora Kanoussi, após transformá-lo no conceito central da reflexão gramsciana2 , afirma até mesmo a possibilidade de compreender toda a modernidade como revolução passiva3 . E, mais recentemente, Giuseppe Chiarante valeu-se do conceito para definir a democracia pós-fascista na Itália como um caso particular de revolução passiva4 . A noção de revolução passiva foi também utilizada entre nós para tentar conceituar momentos fundamentais da história brasileira5 . Sem discutir aqui a justeza (ou não) destes e de outros usos do conceito, devemos admitir que eles são metodologicamente autorizados pelo próprio Gramsci, já que foi ele mesmo o primeiro a estender a noção de revolução passiva para inteiras e diferentes épocas históricas.
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